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A Promessa que não se cumpre, ou a incerteza da Eternidade

CAPÍTULO 1: Entre as colunas da ordem e da desordem: ressonância & dissonância

1.2 A arte como código

1.2.1 A Promessa que não se cumpre, ou a incerteza da Eternidade

Somos os primitivos da era atômica, as primeiras testemunhas dum universo em elaboração, que geme com as dores do parto. Em pé nos rios de asfalto, assistimos à queda da Babilônia. Suspendemos as nossas liras de ferro nestes salgueiros de hoje, que são os monumentos de concreto armado (MENDES, 2014, p. 248).

Que significa o fato de existir, mover-se, respirar, agir? Qual o destino da cultura? Subsistirão, após a provável próxima catástrofe, os textos da Divina Commedia, da Odisséia, de Os Lusíadas, de Hamlet, das Soledades, de Les Fleurs du Mal, de Finnigans Wake, de Corpo de Baile? Subsistirão os templos hindus, o Partenon, a Pietà Rondanini, Les Demoiselles d’Avignon, as partituras de Don Giovanni e as películas de Luzes da Cidade, O Couraçado Potemkin, Blow up, as ruínas, o tempo e o espaço, a memória de Deus e a do homem? (MENDES, 1994, p. 1472).

Dez anos – já de vida em solo italiano – distanciam a escrita dos dois registros dos quais provêm os excertos acima, respectivamente, 1959 e 1969. A intenção de aproximá- los, neste ponto, visa colocar em foco a aparente guinada perspectiva do autor, que, entretanto, expõe a potencialização cronológica de um sentimento, ou paisagem de entornos amargos; revelando também um deslocamento intertextual do eixo religioso, indo da imagética e ainda esperançosa queda da Babilônia ao emparelhamento amargo da

38 dúvida que estende asas sombrias sobre a memória de Deus e do homem, com sua aproximação imagética do conceito originalmente religioso de destino daquele que representa seu principal enfoque em sua criação mais recente, cultura – uma figura apenas mantêm sua autonomia opressiva e intacta durante o afastamento histórico que é delineado pelos panoramas representados nos dois textos: a catástrofe.

É no interregno diacrônico das duas datas elencadas acima (mais precisamente entre 1963 e 196635) que se dá a composição da segunda obra que analisamos -

Convergência. É claro que, devido à imensa quantidade e complexidade das soluções poéticas alcançadas por Murilo na obra em questão, a pesquisa aqui empreendida se propõe singela. Fato é que, como exposto por Júlio Castañon Guimarães, em seu posfácio à recente edição da obra, “Um livro, alguma história e um projeto” (2014), as duas primeiras partes do livro, denominadas, respectivamente, “Grafitos” e “Murilogramas” revelam uma aproximação poética com a produção em prosa do poeta, muito constante no momento, em sua maioria textos de crítica de arte contemporânea de contornos ensaísticos e escritos memorialísticos, o que ilustra a preocupação do poeta exposta no último excerto transcrito acima.

Num plano macroscópico, pode ser útil notar que a produção final do poeta se situa já naquele momento que Jean-François Lyotard descrevera como o da crise dos metarrelatos, quando “as sociedades entram na idade dita pós-industrial e as culturas na idade dita pós-moderna”, passagem que começa mesmo no final dos anos 50 (LYOTARD, 1990, p. 3) – e é claro que a interpretação figural cristã é talvez um dos metarrelatos de maior alcance na história ocidental. Quanto à condição específica da poesia, nos encontramos no momento que Haroldo de Campos definira como aquele do florescimento do poema pós-utópico:

Veio o golpe de 64, recrudescimento ditatorial de 68, os longos anos de autoritarismo e frustração de expectativas no plano nacional: poesia em tempo de sufoco. No plano internacional, acelerou-se a crise das ideologias. O capitalismo imperial, selvagem e predatório, por um lado; por outro, o Estado burocrático, repressivo e uniformizador [...]. A poesia esvazia-se de sua função utópica [...] (CAMPOS, 1997, p. 268).

35 Júlio Castañon Guimarães por sua vez, em seu livro Territórios/Conjunções. Poesia e prosas críticas de

Murilo Mendes (1993), mapeando outros registros de textos da obra, irá citar as datas de composição entre,

39 Ademais, não é gratuito pensar-se o universalismo católico muriliano como um projeto muito particular, messiânico e, talvez, utópico, onde a Eternidade constituíra-se, por um tempo, como um verdadeiro u-topos lírico do poeta, no sentido de um não-lugar aqui, mas garantido no devir (parusia). Usando-se de termos que caem bem à poética muriliana, Haroldo de Campos aponta para uma sucessão de princípios no quadro geral da poesia do momento – “Ao princípio-esperança, voltado para o futuro, sucede o princípio-realidade, fundamento ancorado no presente” (CAMPOS, 1997, p. 268). Como uma poesia da “agoridade”, delineada por uma “história plural”, implicando uma crítica ao futuro – talvez como a que vimos esboçada no segundo excerto do poeta com que abrimos este tópico.

Frente à pretensão monológica da palavra única e da última palavra, frente ao absolutismo de um “interpretante final” que estanque a “semiose infinita”36 dos processos sígnicos e se hipostasie no porvir messiânico, o presente não conhece senão sínteses provisórias e o único resíduo utópico que nele pode e deve permanecer é a dimensão crítica e dialógica que inere à utopia. Esta poesia da presentidade, no meu modo de ver, não deve todavia ensejar uma poética da abdicação, não deve servir de álibi ao ecletismo regressivo ou à facilidade. Ao invés, a admissão de uma “história plural” nos incita à apropriação crítica de uma “pluralidade de passados”, sem uma prévia determinação exclusivista do futuro (CAMPOS, 1997, p. 269).

De Campos, evoquemos novamente aqui o crítico e poeta mexicano Octavio Paz, que, ao pensar no contexto poético latino-americano daquele momento, nos auxiliará na aproximação da condição de pluralidade com a perspectiva intertextual. Antecipando, inclusive, todo um conceitual que nos será proveitoso na leitura de Convergência.

Dentro desta nova condição de uma história plural, assaltado por uma pluralidade de passados,

o poeta não é o ‘autor’ no sentido tradicional da palavra, mas um momento de convergência das diferentes vozes que confluem num texto. A crítica do objeto e a do sujeito se entrecruzam nos dias de hoje: o objeto se dissolve no ato instantâneo; o sujeito é uma cristalização mais ou menos fortuita da linguagem (PAZ, 2013, p. 162, grifo nosso). Segundo Paz, entretanto, este paradigma não implicaria o fim da arte ou da poesia, mas da era e da arte dita moderna. Para o poeta mexicano, a crítica do objeto prepararia uma

36Não somos remetidos aqui ao “dilúvio onírico e alucinado”, ao qual se refere Luis Costa Lima ao tratar

40 “ressureição da obra de arte” (PAZ, 2013, p. 162-163), como uma presença a ser contemplada – e aqui devemos novamente fazer menção ao intenso trabalho de crítica artística de Murilo Mendes, principalmente durante sua residência europeia; reforçaremos ainda a aproximação com uma citação do já citado recente posfácio escrito por Castañon para Convergência, referente aos murilogramas e grafitos do livro:

Ainda que tratem de criadores tão diversos quanto de épocas muito diferentes, os poemas no geral podem ser tomados como poemas críticos. E são críticos como forma de abordar seus temas, mas também no sentido de uma indagação sobre as próprias concepções da poética de Murilo (CASTAÑON, 2014, p. 247).

Ainda segundo Octavio Paz, esta obra, então, longe de identificar-se com a arte pura e revogar a si mesma sua finalidade, se configuraria como uma “ponte, uma mediação”; o poeta desapareceria atrás de sua voz, “uma voz que é sua porque é a voz da linguagem, a voz de ninguém e de todos. Seja qual for o nome que demos a essa voz – inspiração, inconsciente, casualidade, acidente, revelação –, é sempre a voz da outridade” (PAZ, 2013, p. 163). Este conceito nos leva diretamente de volta à pequena apresentação de Ruggero Jacobbi, quando o crítico italiano diz que em Convergência a própria poesia é elevada ao quadrado, “como no sutil jogo verbal de Murilo por dentro de Mallarmé, de Rimbaud, ou de seus grandes conterrâneos, de Cecília Meireles a João Cabral de Melo Neto” (JACOBBI, 2014, p. 220).

Ao chegar neste ponto, fazemos referência à interessante dissertação de mestrado de Fabio Bianchi Junior, A expressão poética do religioso em Ipotesi, de Murilo Mendes: “Morte della Risurrezione” (2008). Em sua argumentação, o pesquisador irá mostrar como a expressão religiosa em Ipotesi37 mostra-se dissonante em comparação à sua

manifestação poética anterior; apontará também para a recorrência da tematização da morte e para as mudanças em suas configurações simbólico-religiosas. Bianchi irá mostrar como os poemas de Ipotesi tematizaram a morte da ressurreição, colocando em cheque o grande dogma temporal que configurara grande parte de sua poética. É o pesquisador quem também irá nos lembrar que, entre os anos de 1962 e 1965, a própria instituição católica passava por um momento de auto-questionamento e reconfiguração ecumênica, o que pode ser ilustrado no Concílio Vaticano II.

37 Obra escrita no arco cronológico de Convergência; a nosso ver, quanto aos seus procedimentos crítico-

intertextuais, o questionamento religioso manifesto nos versos em italiano complementa a abordagem distinta do livro dos murilogramas e grafitos,

41 Assim, quando nos referimos a uma mudança de ênfase quanto à prioridade religiosa na poética muriliana, após estas primeiras considerações, podemos então convocar a nosso favor a própria voz do poeta, que em seu texto já citado, “A poesia e o nosso tempo”, de 1959, irá utilizar-se de um conceito fulcral para nossa compreensão desta alternância de acento – “penso que a poesia deve propor não só um conhecimento, mas ainda uma transfiguração da condição humana, elevando-nos a um plano espiritual mais alto. Realizar isto sem ênfase, de acordo com os rumos atuais da estilística, eis o problema” (MENDES, 2014, p. 254 – grifo nosso). É, de fato, uma mudança de ênfase da função, digamos, essencialista de sua poesia, aquilo que implica parte do desdobramento intertextual e formal da poesia final de Murilo Mendes.

Com a evolução científico-cultural paralela à barbárie política do momento, e a sombra atômica da Guerra Fria, o poeta parece ser atingido por aquela espécie de incerteza angustiante já citada por Lyotard38 em sua descrição da condição pós-moderna. Essa incerteza será melhor esboçada nos versos italianos de Murilo, entretanto, suas consequências são exatamente as características responsáveis por grande parte dos melhores versos das duas primeiras partes do livro publicado em 1970.