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A propaganda feita para o regime

No documento War and Propaganda in the XXth Century (páginas 197-199)

PUCRS e UCM

4. A propaganda feita para o regime

Além da propaganda feita pelo regime, havia aquela feita para o regime. Pra ser mais exato, tratava-se de

efeitos de propaganda de certos discursos veiculados em meios de comunicação “de massas”670, como

programas televisivos, jornais e revistas, assim como em meios circunscritos ao campo da educação superior, como panfletos e pequenos periódicos estudantis (que não serão analisados aqui por questões de espaço). Tais discursos apresentavam-se como a opinião de grupos específicos, supostamente apolíticos e sem vínculos com o regime, o que incrementava significativamente seu potencial para a violência simbólica.

Desse tipo de propaganda feita de modo parcialmente espontâneo671 por grupos e empresas da sociedade

civil para o regime, optei por buscar exemplos: (1) na grande imprensa; (2) em programas televisivos.

4.1. Grande imprensa

Algumas matérias do Jornal do Brasil (JB) contribuíram com essa forma de propaganda do regime, a qual, com raras e importantes exceções, foi realizada com frequência pela grande imprensa.672 No emblemático

editorial do JB de 01/04/1964, o apoio ao golpe era total. Jango, segundo o texto, teria dirigido-se “a

667 Exemplo: Brasil/AN (1977c). 668 Exemplo: Brasil/AN (1977b). 669 Exemplo: Brasil/AN (1977a).

670 Compartilho aqui das críticas propostas por John Thompson (1995, p. 287) em relação à noção de “comunicação de

massas”.

671 Parcialmente espontâneo porque o contexto impunha uma série de restrições e expectativas. Assim, a análise da

colaboração com o regime por parte de certas empresas de comunicação deve levar em consideração não apenas eventuais congruências ideológicas, mas também as diferentes estratégias de mercado adotadas por tais empresas em um contexto político de exceção. Obviamente, essa ressalva não implica em considerar que tais empresas foram coagidas à colaboração, o que constituiria um erro crasso.

672 O jornal Última Hora foi uma dessas raras exceções. Sua história é bastante conhecida: fundado em 1951 por Samuel

Wainer, esteve desde o princípio fortemente vinculado com o trabalhismo. Após o golpe de 1964, sofreu sérios ataques por parte de partidários do novo regime, e Wainer teve seus direitos políticos cassados. Mesmo assim, o jornal conseguiu manter-se até 1971. Neste estudo, utilizo Última Hora como uma espécie de contraponto na análise da propaganda do regime realizada pela grande imprensa. Isso, obviamente, sem nunca deixar de ter em conta as diversas formas de pressão sofridas por aquele periódico após abril de 1964, da censura à autocensura. APESP/UH (s/d).

subalternos extremados, em reunião política, em linguagem e pregação subversivas, em tom degradante” e, por isso, teria perdido “o direito de ser chamado de Presidente da República”. Goulart não mais mereceria, assim, “a lealdade dos verdadeiros brasileiros”, que estariam “restabelecendo a legalidade democrática”, “expurgada do objetivo de comunização do Brasil”. Consideravam que “o reformismo do Sr. João Goulart”, ou seja, seu apelo às Reformas de Base, fosse “comunização disfarçada em reformismo” (Fora da lei, 1964).

Na mesma linha, em matéria de capa de 01/07/1968, o JB afirmava que diversos órgãos estudantis, como “as extintas UNE e UME” e vários diretórios acadêmicos, teriam realizado uma “reunião secreta” para organizar formas de pressionar o governo a “soltar os presos”, “acabar com a repressão policial e com a censura artística” e “reabrir o Restaurante do Calabouço”. Informava ainda da prisão de dezenas de estudantes em Porto Alegre, do apoio do padre d. Helder Câmara aos estudantes em Recife e que, em São Paulo, estudantes estariam planejando voltar às ruas para protestar “contra a prisão de seus colegas”, “dispostos a

prender policiais para trocá-los pelos estudantes detidos” (MEC-USAID, 1968).

A revista Veja, criada em 1968 pelo grupo Abril, também deu sua contribuição à manutenção daquela ordem social, disseminando alguns dos principais valores do regime. No trecho seguinte, é possível ver como são mobilizadas as noções de subversão, esquerdismo e guerra interna, fundamentais para a desqualificação de qualquer forma de oposição ao regime:

Dois temas preferidos dos universitários esquerdistas cariocas - o Vietnam e as guerrilhas - estão sendo debatidos esta semana na Praia Vermelha, a poucos metros das faculdades da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mas desta vez não há perigo de intervenção da DOPS: a reunião é na Escola de Comando do Estado-Maior do Exército, onde delegados de dezoito países participam da VIII Conferência dos Exércitos Americanos. Sobre o Vietnam fala o General William Westmoreland, 54 anos, ex-comandante das tropas dos Estados Unidos em Saigon. Sobre guerrilhas falará, por exemplo, o representante do Exército da Bolívia - que combateu e matou Che Guevara. A conferência de Westmoreland e o depoimento boliviano sobre guerrilhas são encarados apenas como “troca de experiências militares”. O tema central da Conferência será a defesa do continente e a contribuição dos exércitos para o desenvolvimento nacional. A tese do Brasil afirma que a segurança da América depende do desenvolvimento econômico, político e social de cada país. (...) Toda a teoria da Escola Superior de Guerra, do Brasil, baseou-se, nos últimos vinte anos, na hipótese de uma terceira guerra mundial. Os armamentos, dentro dessa teoria, supunham a guerra externa. Agora, os militares estão mais preocupados com eventuais inimigos internos (Os exércitos, 1968, grifos meus).

Nesse trecho, também são mobilizadas as noções de segurança e desenvolvimento, pilares ideológicos daquele regime, conforme comentado anteriormente.

Em outra passagem da mesma edição de Veja, a noção de esquerdismo é novamente mobilizada, desta vez para criticar estudantes cariocas que teriam se desentendido com um de seus professores, em um episódio que gerou na ocasião uma certa polêmica nos meios de comunicação (Novo terror, 1968, grifos meus).673 Em parte

através das palavras do intelectual católico ultraconservador Gustavo Corção, Veja assumiu a defesa do professor e destilou crítica feroz aos estudantes “de esquerda” que estariam praticando “terrorismo cultural” na universidade. Alunos que, segundo a fala tomada de empréstimo de outro professor, seriam ‘indisciplinados’ e estariam deixando de assistir as aulas para “discutir política”, algo altamente “subversivo” naquele contexto. Conjuntamente, Veja fazia coro com outros veículos de comunicação, que acusavam a diretora daquele instituto de conivência com os “estudantes de esquerda”.

4.2. Programas televisivos

A televisão também cumpria função fundamental na disseminação dos principais valores do regime. Analisarei duas importantes redes televisivas da época: Tupi e Globo.

Na Tupi, duas das manchetes do Edição Extra (EE) de 06/04/1964 são emblemáticas da adesão do programa ao movimento golpista: “Considera-se certa a eleição [sic] do general Castello Branco para a Presidência da República” e “Maurício Loureiro Gama salienta, na sua crônica política de hoje: ‘depois de uma fortaleza vermelha, só mesmo um Castelo Branco: presidente ideal para passar a limpo o Brasil’” (TV Tupi, 1964a). Em 09/04/1964, o EE afirmava: “o famigerado ISEB, que era um curso comunista de extensão

universitária, vai ser extinto, segundo informa o Diário da Noite (...)” (TV Tupi, 1964c).674 Em 07/08/1964,

informava o noticiário da Tupi sobre a decisão de Castello “em prosseguir nas reformas, democraticamente e sem demagogias”, e que a “concentração de críticas contra o governo” seria parte “de um esquema de grupos

673 Sobre a polêmica, ver, a título de exemplo: Filosofia (1968). 674 Sobre o Instituto Superior de Estudos Brasileiros, ver Toledo (1997).

interessados em que as principais reformas democráticas não sejam realizadas” (TV Tupi, 1964b).Já em 27/02/1969, na seção Ponto final, de Maurício Loureiro Gama, afirmava-se que os cinejornais iriam ser “obrigados a apresentar também assuntos de interesse educativo, nos termos do sábio, oportuníssimo decreto assinado pelo Presidente da República”, e louvava a iniciativa de impor aos meios de comunicação “mais espaço dedicado a elevar os níveis moral, cívico e cultural do povo” (TV Tupi, 1969).

A vaga e flexível noção de “povo” também serviu por diversas vezes à propaganda realizada pela Globo para o regime. Tomemos aqui um exemplo bastante representativo. Trata-se do programa O Povo e o

Presidente, criado em 1982 na Rede Globo, em horário nobre (aos domingos, após o programa Fantástico), com a participação do então presidente, o general Figueiredo, convidado pessoalmente por Roberto Marinho. No programa nº 25, veiculado em 23/01/1983, o ditador era questionado por um suposto ouvinte quanto à pequena oferta de vagas para cursos como Engenharia ou Medicina no turno da noite, inviabilizando a participação de trabalhadores que desejassem aprofundar seus estudos. Figueiredo, contradizendo o suposto ouvinte, afirmou que existia no país “um número considerável de cursos de ensino superior em horários vespertinos ou noturnos”. Na área de Engenharia, segundo o general, já haveria “cerca de 40 cursos vespertinos e noturnos e a tendência verificada, nos últimos anos, é de uma ampliação na proporção de cursos oferecidos à tarde e à noite”, resultando em “um maior número de opções para aqueles que, além de trabalhar, desejam cursar estudos de nível superior” (Brasil/PR/GC/SID/CD, 1983, p. 38). O que não estava sendo dito é que a referida ampliação da oferta de cursos havia ocorrido majoritariamente através do crescimento da educação privada, o que, na prática, continuava a inviabilizar, para muitos trabalhadores, a frequência ao curso.675 A narrativa dinâmica da televisão, contudo, induz a maioria dos espectadores a uma interpretação

pouco ou nada crítica do conteúdo veiculado. Fundamentalmente, o que deveria ficar daquela passagem do programa da rede Globo, para muitas pessoas, eram ideias do tipo “só não estuda quem não quer”. Cumulativamente, tais ideias acabam sendo assimiladas pelo senso comum e reproduzidas através de diversas formas, inclusive por meio de chavões e ditados como o referido, executando uma função de sedimentação ideológica da mais alta importância para a manutenção de uma determinada ordem social.

No documento War and Propaganda in the XXth Century (páginas 197-199)

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