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Este estudo partiu do pressuposto de que a produção do fenômeno da variação da

4 TRAÇO E CONCORDÂCIA DE GÊNERO

4.3 A PROPOSTA DE ANÁLISE

Os dados em (105)-(112) acima citados podem agora ser vistos a partir da noção de subespecificação de traços. Como destacado por Carvalho (2011, p. 93-95), para fins de concordância, é necessário apenas que haja identidade entre o nó raiz das árvores de traços dos elementos que estão em configuração de concordância para que esta seja bem sucedida. Assim, em (105), por exemplo, o núcleo nominal radia teria uma configuração [CLASS[FEMININE]] para a categoria gênero. Já o determinante o apresenta uma configuração em que [FEMININE] é subespecificado, apresentando pelo menos o nó raiz [CLASS] em comum com o núcleo, estabelecendo-se a configuração de concordância de gênero no DP, como ilustrado em (113) abaixo:

(113) radia=[CLASS[FEMININE]]

o=[uCLASS]

Assim, pode-se assumir a configuração em (114) abaixo para (105) acima, em que o núcleo nominal apresenta uma composição totalmente especificada para gênero, enquanto o determinante apresenta subespecificação para [FEMININE]. Podendo ser mais especificado que a sonda, o alvo carrega os traços interpretáveis, que valorarão os da sonda, não- interpretáves. Portanto, a configuração do alvo, mesmo mais especificada que a da sonda, favorece as condições para valoração estabelecidas acima. Dessa forma, havendo intersecção entre o nó raiz do alvo e da sonda, a operação Agree opera:

Pode-se pensar o mesmo para o exemplo (106). O núcleo nominal perna teria uma configuração [CLASS[FEMININE]] para a categoria gênero, enquanto que o determinante o apresenta uma configuração em que [FEMININE] é subespecificado, apresentando pelo menos o nó raiz [CLASS] em comum com o núcleo, estabelecendo-se a configuração de concordância de gênero no DP, como ilustrado em (115) abaixo:

(115) perna=[CLASS[FEMININE]] o=[uCLASS]

Logo, pode-se assumir a configuração em (116) abaixo para (106) acima, em que o núcleo nominal apresenta uma composição totalmente especificada para gênero, enquanto o determinante apresenta subespecificação para [FEMININE]. Assim como ocorreu com o exemplo (105), o alvo, podendo ser mais especificado que a sonda, carrega os traços interpretáveis, que valorarão os traços não-interpretáves da sonda. Portanto, a configuração do alvo, mesmo mais especificada que a da sonda, favorece as condições para valoração

estabelecidas acima. Assim, havendo intersecção entre o nó raiz do alvo e da sonda, a operação Agree opera, como ilustrado abaixo:

Mesmo apresentando uma frequência de variação muito menor que a presente em Helvécia-BA, como apontado na seção 2.5, os exemplos (107) e (108) da fala da comunidade de Muquém-AL vão poder ser analisados pelo menos esquema montado por Carvalho (2011). Sendo assim, pode-se assumir as configurações em (117) para o exemplo em (107) acima, em que o núcleo nominal apresenta uma composição totalmente especificada para gênero, enquanto o determinante e o núcleo adjetival apresentam subespecificação para [FEMININE].

(117) pessoa=[CLASS[FEMININE]] Aquele=[uCLASS]

Assim como se viu até agora, o alvo, podendo ser mais especificado que a sonda, carrega os traços interpretáveis, que valorarão os traços não-interpretáves da sonda. Portanto, a configuração do alvo, mesmo mais especificada que a da sonda, favorece as condições para valoração estabelecidas acima. Assim, havendo intersecção entre o nó raiz do alvo e da sonda, a operação Agree opera, como ilustrados em (118) abaixo:

Já no exemplo (108), pode-se perceber uma configuração diferente para os traços, uma vez que tanto o determinante quanto o núcleo adjetival apresentam uma composição totalmente especificada para gênero, enquanto o núcleo nominal apresenta subespecificação para [FEMININE], como ilustrado em (119) abaixo:

(119) dia=[CLASS]

a=[CLASS[FEMININE]] última=[CLASS[FEMININE]]

Aqui, o mecanismo utilizado para Agree entre o núcleo nominal e os outros elementos visto nos exemplos anteriores não vai se aplicar, uma vez que são as sondas que estão mais especificadas que o alvo. Desta forma, pode-se assumir (120) para (108):

Como é possível perceber, o exemplo (108) não pode se encaixar na proposta de Carvalho (2011), já que, neste caso, match será comprometido.

Por outro lado, diferentemente do que ocorre nessas comunidades afrodescendentes supracitadas, tem-se o português urbano falado atualmente no Brasil, como ilustrados em (109) e (110) acima, um português que, aparentemente, não possui variação na concordância de gênero, apresentando marca explicita de gênero em todos os elementos envolvidos na concordância. Em (109), especificamente, há um exemplo com quantificador, contudo o mesmo mecanismo é utilizado para Agree, sendo que agora há dois elementos subespecificados para [FEMININE], como ilustrado em (121) abaixo:

(121) anos=[CLASS] uns=[uCLASS]

Partindo disso, tem-se o chamado match-match na hora da valoração dos traços do alvo e da sonda, como mostrado em (122) a seguir:

A mesma coisa vai acontecer em (110), em que tanto o núcleo nominal quanto os determinantes vão apresentar subespecificação para [FEMININE], como visto em (123) abaixo, acontecendo match-match entre os traços dos elementos na derivação, como ilustrado em (124):

(123) primos=[CLASS] os=[uCLASS] outros=[uCLASS]

Como dito anteriormente, enquanto pode-se perceber variação de gênero nas comunidades afrodescendentes de Helvécia-BA e Muquém-AL, o mesmo não ocorre significativamente no atual português falado no país. Enquanto as primeiras parecem ainda preservar marcas de uma língua afetada pelo massivo e intenso contato do português com outras línguas, sobretudo com as línguas africanas, no seu processo de formação, o último já caminha para a eliminação dessas variações provavelmente por conta de uma ação normativizadora vigente em nossa sociedade. O curioso é notar que embora historicamente (e socialmente) constituídos de formas distintas, a proposta de análise de Carvalho (2011) se aplicou perfeitamente aos exemplos ilustrados aqui, evidenciando a universalidade de tal proposta.

Tal universalidade fica ainda mais evidente ao se trazer exemplos da língua crioula de base português falada em Cabo Verde. Tal língua vai no sentido contrário a essa tendência de fortalecimento na concordância do gênero vista no atual português falado no nosso país, uma vez que o intenso processo de transmissão linguística irregular que deu origem a essas línguas afetou sensivelmente a concordância de gênero, conservando-se apenas as marcas que estavam mais intimamente ligadas a uma função de prover referencial, como se pode ver em (111) e (112) acima. Nesta língua, não existe marcação explícita de gênero no determinante, já que os falantes utilizam uma marca genérica kel tanto para se referir ao masculino quanto para se referir ao feminino, como apontado no estudo de Baptista (2002). Dessa forma,

seguindo a proposta de Carvalho (2011), (111) e (112) assumem as configurações ilustradas abaixo: (125) libru=[CLASS] kel=[CLASS] (126) cosa=[CLASS[FEMININE]] kel=[CLASS]

Enquanto em (111) há tanto o núcleo nominal quanto o determinante subespecificando o traço [FEMININE], em (112) há a mesma configuração vista em (113) e (115) acima, com o núcleo nominal apresentando uma configuração [CLASS[FEMININE]] para a categoria

gênero, enquanto que o determinante kel apresenta uma configuração em que [FEMININE] é

subespecificado, apresentando pelo menos o nó raiz [CLASS] em comum com o núcleo, estabelecendo-se a configuração de concordância de gênero no DP, como ilustrado em (127) e (128) abaixo, respectivamente:

Assim, conclue-se que embora aconteça um contínuo na marcação de gênero nessas comunidades supracitadas, em que o crioulo de Cabo Verde apresenta a não marcação explícita de gênero, as comunidades afrodescendentes apresentam variação nessa marca e o PB falado atualmente no país, por sua vez, apresenta marca explícita de gênero, a análise de subespecificação de traços para explicar a concordância proposta por Carvalho (2011) se aplicou a todas as línguas abordadas na presente pesquisa, mostrando uma proposta explicativa muito mais robusta e sólida para explicação de concordância que fuja das convencionais quantificações e comparações sem cunho explicativo e que levem em considerações apenas os aspectos formais da língua. Contudo, encontra-se um exemplo que apresentou problemas para match, uma vez que as sondas eram mais especificadas que o alvo, mostrando que a proposta de Carvalho (2011), de alguma forma, precisa ser revista.

Porém, mesmo apresentando esse exemplo destoante, a análise acima mostra que é possível um mecanismo de concordância unificado para os fenômenos que envolvem traços-ϕ. Da mesma forma que para as categorias pessoa e número, uma análise baseada na subespecificação de traços é possível para gênero. Assim, a postulação de apenas uma operação Agree é suficiente para concordância tanto em contextos que apenas superficialmente aparentam dessemelhança quanto para contextos em que a marca de gênero é explícita.