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CAPÍTULO 2 – A MORTE E O MORRER NA CAMPINAS OITOCENTISTA

3.1 A Província Paulista e a “Romanização” Católica

No que se refere às questões religiosas católicas, o século XIX, em especial a sua segunda metade, foi marcado por intensas transformações, cunhadas pela historiografia com a insígnia da romanização. Entre os principais autores que sustentam esta assertiva, citam-se Roger Bastide, nos anos 1950, José Oscar Beozzo, Augustin Wernet e Ralph Della Cava. Em linhas gerais, este conceito se referiria a um processo de afirmação da Igreja, institucional e hierarquizada, que buscava, sobretudo na figura de seu episcopado, assumir o controle de questões em torno da fé, doutrina, instituições e educação do clero e dos leigos. Dessa forma, procurava-se colocar novamente a igreja brasileira no compasso das normativas católicas praticadas na Sé romana, mesmo que isso contrariasse os interesses políticos locais367.

O termo teve forte uso nos anos 1970, amparado por movimentos como a Teologia da Libertação e por membros das cadeiras do Centro de Estudos da História da Igreja Latino Americana (CEHILA) que o entendia como um momento de elitização da Igreja brasileira, somando-se aos autores já apontados os nomes de Riolando Azzi, Eduardo Hoonaert, Oscar

366 Apesar da importância, ressalta-se que o objetivo desta pesquisa não é explorar o tema da romanização e suas implicações. Para tanto, limito-me a citar as pesquisas de Pedro Rigolo Filho, A romanização como cultura religiosa: as práticas religiosas de D. João Batista Correa Nery, Bispo de Campinas, 1908-1920 (Dissertação de Mestrado. Departamento de Pós-Graduação em História, UNICAMP, Campinas. 2006) e de Gustavo de Souza Oliveira, Entre o rígido e o flexível: D. Antônio Ferreira Viçoso e a reforma do clero mineiro (1844- 1875) (Dissertação de Mestrado. Departamento de Pós-Graduação em História, UNICAMP, Campinas. 2010). 367 CAVA, Ralph Della. Milagre em Joazeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. p 43.

151 Lustosa, Francisco Cartaxo Rolim. Contudo, é necessário certo cuidado ao utilizar rótulos como “catolicismo ultramontano”, “igreja reformada”, “romanização”, uma vez que os mesmos tendem a simplificar processos muito mais complexos, algo explorado por Ítalo Santirocchi368.

Um ponto importante, deste modo, é distinguir romanização de ultramontanismo. Para David Gueiros Vieira, a corrente ultramontana teria sido disseminada no Brasil na primeira metade do século XIX por religiosos brasileiros que viveram na Europa, onde haviam tomado contato com esta cultura religiosa369. Por sua vez, Wernet afirma que a romanização seria “(...) a integração sistemática da Igreja brasileira, no plano que institucional, quer ideológico, nas estruturas altamente centralizadas da Igreja Católica Romana, dirigida de Roma”370. Por mais que seja possível o uso das terminologias concomitantemente, há autores como Rigolo Filho que preferem usar o termo romanização para eventos acontecidos após a Proclamação da República, em 1889, momento em que a Igreja pode realinha-se sistematicamente com as estruturas de Roma371.

A Regulamentação para o clero de Dom Antônio Joaquim de Melo para a Província de São Paulo, datada de 1852, é um exemplo importante deste primeiro momento de reforma do aparato institucional católico no século XIX, norteado pelas ordenações do papa Pio IX372. Nela é possível desvelar os traços de um dos mais proeminentes bispos do período que, ao lado de figuras como a de Dom Antônio Ferreira de Viçoso (1787-1875), na Diocese de Mariana, procurou reassumir o controle e disciplina católica e se voltar para Roma e ao

368

SANTIRROCHI, Ítalo. “Uma questão de revisão de conceitos: romanização – ultramontanismo – reforma”. Temporalidades, vol. 2, no 2, Ago/Dez 2010.

369 VIEIRA, David Gueiros. O Protestantismo, a Maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil. Brasília: UnB, 1989. p 27-58.

370

WERNET. Op cit. p 178.

371 RIGOLO FILHO, Pedro. A romanização como cultura religiosa: as práticas religiosas de D. João Batista Correa Nery, Bispo de Campinas, 1908-1920. Dissertação de Mestrado apresentada ao IFCH/Unicamp. Campinas, 2006. p 3.

372

A pertinência de reestruturar um posicionamento hierárquico, da Igreja local para com o papado romano, pode estar relacionada, entre outros, a posturas como a do sacerdote e estadista brasileiro Diogo Antônio Feijó (1784-1843). Destacado como regente do Império brasileiro entre 1835 e 1837, Feijó tinha uma leitura particular do catolicismo, praticado em cidades como Itu, Santana de Parnaíba e Campinas, unindo religião e política em jogos de poder que transitavam em diferentes frentes. Com uma postura evangelizadora e moralizante, propunha que o clero brasileiro adotasse medidas como o fim do celibato clerical e o respeito maior a decisões dos sacerdotes em âmbito regional, sem que houvesse a necessidade de passá-las diretamente ao papa. Apesar destas ideias não terem prosperado, deixou diversos seguidores. Para mais informações, ver RICCI, Magda Maria de Oliveira. Assombrações de um padre regente: Diogo Antônio Feijó (1784-1843). Tese de Doutorado apresentada ao IFCH/Unicamp. Campinas, 1998.

152 Papado. Segundo o estudo de Augustin Wernet, Dom Antônio Melo teve profunda importância no processo de reestruturação do catolicismo na Província de São Paulo ao chamar para si a autoridade de chefe máximo de sua circunscrição eclesiástica e remodelar o clero de modo geral, marcando o “(...) início e a evolução do processo de suplantação do catolicismo iluminista e regalista pelo ultramontano”373

. Para Wernet,

O catolicismo predominante em São Paulo nos anos de 1759 a 1851 não se orientava pelos decretos tridentinos, pois o regime do padroado e o predomínio da mentalidade regalista e jansenista, especialmente depois da expulsão dos jesuítas, oferecia poucas condições para que se pudessem efetivamente introduzir as reformas tridentinas374.

Um aspecto principal destes bispos estava relacionado a diagnosticar, repensar e manter o catolicismo sob as tramas hierárquicas, já que, na época, este se assentava em lideranças leigas, em especial caracterizadas pelas irmandades e ordens terceiras. Portanto, um ponto inicial era reforçar o poder do bispo e sua autoridade sobre o clero regular, secular e associações leigas. Nos contextos locais, isto recaía sobre os padres, responsáveis máximos pelos grupos de leigos, organizados ou não. Segundo Caes,

No processo de destituição da autonomia do leigo, a Igreja procurou intervir também sobre as próprias manifestações de fé dos católicos, indicando as formas corretas de uso dos espaços, de frequencia aos ritos e de comportamento devocional, caracterizando tudo que não estivesse adequado às normas católicas, como superstições375.

No que se refere aos instrumentos para moralizar o povo paulista376 e reformar as práticas das associações religiosas leigas, um de grande valor foi “a substituição das devoções tradicionais por devoções em voga na Europa” e, ao romper com superstições, práticas exteriores, sentimentalismos e devocionalismos exagerados, uma das consequências foi, justamente, o “(...) desmantelamento das antigas irmandades voltadas para os santos tradicionais e a sua substituição por novas associações leigas, voltadas para a devoção aos

373 WERNET. Op cit. p 163. 374 Idem. p 171.

375

CAES, André Luiz. As portas do inferno não prevalecerão: a espiritualidade católica como estratégia política (1872-1916). Tese de Doutorado apresentada ao IFCH/Unicamp. Campinas, 2012. p 123.

376 Segundo Wernet, “essa moralização do povo ligada à religião, ideia fundamental do catolicismo iluminista e preconizada pela elite do poder, poderia ser melhor obtida em aliança com o catolicismo renovado; não apenas por causa da sua organização eclesiástica altamente centralizada e da existência de um clero dependente e mais disciplinado, mas também devido ao próprio código ético e ao auto-entendimento da religião”. Op cit. p 186.

153 “novos” santos”377

. As novas devoções, apoiadas pela vinda dos padres capuchinhos de Sabóia, grandes colaboradores de D. Antônio, associavam-se a também novas ligas que estavam atreladas às atividades paroquiais, fortalecendo o vínculo dos católicos com questões mais próxima das lutas institucionais378. Entre elas, estão a do Sagrado Coração de Jesus e o Apostolado da Oração; São Vicente de Paula e os vicentinos; Nossa Senhora e as Filhas de Maria. Conforme Quintão, “embora sejam associações de leigos, sua direção está sempre diretamente subordinada ao vigário, que estatuariamente faz parte da diretoria e, de fato, tem sob seu controle as decisões concernentes à entidade”379.

Entre as irmandades, confrarias e ordens terceiras, os padres tinham apenas a função de realizar ofícios, celebrar as missas e bênçãos solenes. Os clérigos, deste modo, vinculavam-se mais a questões de engajamento político e econômico que às religiosas, assumidas pelas associações religiosas leigas. Assim, era comum a vida dos padres estarem ligadas a divertimentos, valorização exacerbada da situação econômica, embriaguez e concubinato. Como aponta Xavier, Dom Antônio procurou “(...) erigir a imagem de um clero que estava pronto para abandonar as questões políticas [entenda-se o mundo secular], atos que em sua opinião eram desmoralizadores por si mesmos, em favor da vida espiritual380”. Como reconhecia a demora neste processo de mudança de vida e mentalidade de seus sacerdotes mais antigos, empenhou-se na edificação e organização de um Seminário Episcopal, inaugurado em nove de novembro de 1856, cujo intento era a construção de um modelo de clero ideal: “(...) o de um padre asceta, espiritual, zeloso e apóstolo pastoral com a tendência de se isolar do mundo; o de um homem de oração, de vida retirada e de sacrifícios”381

.

Para isso, ainda em sua Regulamentação de 1852, ocupou-se em revalorizar os símbolos, como o uso do hábito clerical, além de proibir a presença de sacerdotes em jogos, divertimentos públicos de cunho profano, atividades comerciais, tornando-os homens instruídos às normas do Concílio de Trento. “Esta ênfase no mundo espiritual não parecia significar, contudo, uma ruptura com o mundo material, mas antes, uma firmação de seu

377

QUINTÃO, Antonia Aparecida. Irmandades Negras: outro espaço de luta e resistência (São Paulo: 1870- 1890). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2002. p 58.

378 CAES. Op cit. p 131. 379 QUINTÃO. Op cit. p 58. 380

XAVIER. Op cit. 113. 381 WERNET. Op cit. p 165.

154 poder como mediador entre ambos”382. Este modelo mais “ortodoxo”383, pautado em elementos sacramentais e evangélicos, contudo, colocado em práticas por alguns sacerdotes que desejavam que todas as atividades religiosas acontecessem sob seus auspícios e respeitando sua autoridade, entrou em choque com as estruturas mantidas pelas irmandades e ordens terceiras, organizações autônomas com diretoria própria e faculdade para deliberar sobre seus próprios fins, gerando contendas que invadiam a imprensa e corriam pelas ruas das pequenas vilas e cidades oitocentistas.

Neste aspecto, outra estratégia para tornar o catolicismo mais clerical foi substituir as antigas festas e procissões religiosas populares, retirando das irmandades as prerrogativas da organização. Nestas, anteriormente, o padre surgia como responsável apenas pelas bênçãos e celebrações litúrgicas, cabendo aos grupos manter e escolher todas as demais estruturas. Preparar estas atividades era central para qualquer associação religiosa leiga, presente nas disposições dos estatutos e compromissos. Assim, sem as festas,

(...) as antigas irmandades começam a perder suas funções propriamente religiosas e vão se extinguindo, passando para o controle paroquial ou vendo suas atividades reduzidas às finalidades beneficentes para os próprios membros384.

Com isso, uma nova forma de pensar a religião na província paulista começou a ganhar força a partir dos anos 1850, quando as irmandades e os leigos, de um modo geral, passaram, gradativamente, para uma posição de maior passividade. Mesmo assim, é sensato afirmar que este processo foi permeado por conflitos, negociações e alianças entre a Igreja e os irmãos, quando sacerdotes e o episcopado, por vezes, apropriavam-se das vivências e práticas tradicionais da religiosidade popular para afirmar a sua jurisdição, porém as dotando de um novo sentido.

Portanto, por mais que houvesse um processo de inserção de novas devoções, a pretensão do clero era ocupar o espaço já sedimentado pelas irmandades e devoções por elas sustentadas, uma garantia de que estas práticas devocionais em torno dos santos e da virgem

382

Idem.

383 Este modelo, para Caes, estaria voltado “(...) pelo discurso doutrinal e pelo estabelecimento de práticas e experiências cuja vivência demandava uma compreensão intelectual, isto é, a manifestação de fé, a partir daí, deveria decorrer mais do entendimento, alcançado pela frequência à catequese, que da espontaneidade”. CAES. Op cit. p 125.

155 sustentassem um novo modelo definido de religião, alicerçado por cartas e decretos pastorais385. Vale apontar que Dom Joaquim de Melo escreveu, entre os anos de 1852 e 1861, cerca de 14 cartas pastorais e dois regulamentos.

Este remodelamento e disciplina das práticas litúrgicas vigentes estenderam-se também para as representações culturais fúnebres. Assim, “(...) os cortejos fúnebres e as procissões foram gradualmente incorporando a nova liturgia, mais austera, (...)”, longe de elementos que indicassem indícios de imoralidade e/ou profanidade, do mesmo modo que “(...) encíclicas e pastorais iam circunscrevendo, regularizando e obrigando o cumprimento de preceitos tridentinos junto às paróquias e aos paroquianos”386

. O contexto pode ser bem elucidado a partir do estudo dos significados dos dramas da Semana Santa e de outras práticas culturais sobre a morte e os mortos na Campinas da segunda metade do século XIX, como será visto a seguir.