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A PROVA DE LOCKE COMO DEMONSTRAÇÃO PELOS EFEITOS

2 O CONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE DEUS NO ENSAIO

2.7 A PROVA DE LOCKE COMO DEMONSTRAÇÃO PELOS EFEITOS

26 Na Idade Média, os Analíticos Posteriores ocuparam um papel fundamental no desenvolvimento do

conhecimento científico, principalmente através de comentários e discussões acerca dessa obra, cujo corpo filosófico produzido coincide com a Filosofia da Ciência Moderna. Embora as discussões seguissem de perto a Lógica Aristotélica, cada pensador desenvolveu uma releitura de modo a acomodar seu próprio sistema metafísico, tendo como ponto especial de disputa a exata natureza da demonstração por excelência (demonstratio potissima), bem como a natureza do conhecimento científico que dela deriva (LONGEWAY, 2009).

Considerando as premissas apresentadas no item supra, é possível sugerir que a demonstração lockeana da existência de Deus também é quia (a partir do efeito para a causa), ainda que os argumentos em si possuam diferenças marcantes em relação às cinco vias de São Tomás de Aquino: Locke apoia-se, à maneira cartesiana, na afirmação de que algo existe por exigência necessária da autoconsciência (LOCKE, 2013). Parte-se do efeito (a existência do eu) para a causa (a existência do Ente primeiro).

O uso dessa distinção escolástica pode parecer outro equívoco, considerando que Locke sequer a citou no Ensaio, era antipático à filosofia da Escola e se opôs ao silogismo aristotélico. De fato,

o currículo que Locke foi obrigado a seguir em quase nada era diferente daquele que havia irritado e entediado, cinquenta anos antes, o jovem Thomas Hobbes, e Locke reagiu a ele da mesma maneira. Ele adquiriu uma intensa antipatia pelo método escolástico de disputa intelectual e pelas sutilezas lógicas e metafísicas relacionadas a tal método (MILTON, 2011, p. 18).

Seus comentários acerca dos escolásticos transitam entre a crítica, a sátira e o desdém. Ele demonstrou-se particularmente crítico em relação à arte da disputatio, à falta de inteligibilidade da linguagem escolástica e à concepção de ciência baseada em máximas gerais (HILL, 2014).

Acerca do caráter antiescolástico do Ensaio, Abbagnano afirma:

De uma ponta até a outra do Ensaio percorre a polêmica contra o método da Escola, isto é, contra a lógica aristotélico-escolástica que ainda dominava as universidades inglesas e continentais no tempo de Locke. Particularmente, a crítica de Locke é dirigida contra o silogismo que, na tradição aristotélica, era a única forma possível de raciocínio, à qual todas as outras podiam e deviam ser reconduzidas (ABBAGNANO, 1971, p. 20, tradução nossa).

Porém, essa relação não está marcada apenas pela tensão: a filosofia de Locke possui mais continuidade com a Escolástica do que o próprio filósofo inglês estaria disposto a admitir. A título de exemplo, aponte-se que o empirismo lockeano fundamenta-se em dois princípios tomistas, a saber, a concepção da mente, no seu início, como uma tabula rasa e a afirmação de que nada há no intelecto que não passou primeiramente pelos sentidos (nihil est in intellectu quod non prius fuerit in sensu) (HILL, 2014). Além disso, Locke aceita a aquisição de conceitos por

abstração, vinculando-se à tese aristotélica amplamente favorecida na Escolástica (MEYERS, 2017).27

Confirmando o princípio fundamental do empirismo28, Locke afirma, ao final do manuscrito Deus, que a demonstração teísta é possível a partir dos efeitos, ou seja, parte-se daquilo que é mais conhecido por nós (a existência do eu) para demonstrar a existência de Deus:

A existência real só pode ser provada pela existência real; e, portanto, a existência real de um Deus só pode ser provada pela existência real de outras coisas. A existência real de outras coisas independentes a nós só nos pode ser evidenciada pelos nossos sentidos; mas nossa própria existência nos é conhecida por uma certeza ainda maior do que a que nos dão os nossos sentidos sobre a existência de outras coisas e essa é a percepção interior, a autoconsciência ou intuição; do que se pode portanto tirar, por uma sequência de ideias, a prova mais segura e incontestável de um Deus (LOCKE Apud MEYERS, 2017, p. 11).

Observe-se, adicionalmente, que Descartes utilizou expressamente a referida distinção escolástica. Segundo Etienne Gilson (1979), há duas passagens na obra cartesiana onde se afirma que a demonstração a priori é a mais nobre de todas: a) numa carta endereçada a Mersenne em janeiro de 1638; b) nos Princípios de Filosofia, primeira parte, cap. XXIV.

Eis o que consta nos Princípios de Filosofia, obra cartesiana que Locke teve a oportunidade de examinar:

Depois de assim termos conhecido [que Deus existe e] que é ou pode ser o autor de tudo, se passarmos do conhecimento que possuímos da Sua natureza para a explicação das coisas que Ele criou, estaremos a seguir o melhor método [de que nos podemos servir para descobrir a verdade]. E se tentarmos deduzi-lo das noções que naturalmente estão em nossas almas, lograremos uma ciência, isto é, conheceremos os efeitos pelas suas causas. Todavia, para que possamos empreendê-lo com mais segurança devemos lembrar-nos de que, ao examinar a natureza de alguma coisa, Deus, o seu autor, é infinito e que nós somos inteiramente finitos (DESCARTES, 1997, p. 36).

Ademais, ao elaborar sua reposta às Segundas Objeções das Meditações, Descartes deixa assentado que existem duas demonstrações para provar a existência de Deus: a propter quid e a quia:

27 No próximo capítulo, serão sugeridos outros antecedentes tomistas na metafísica lockeana.

28 O empirismo, de uma maneira abrangente, pode ser expresso como o seguinte ponto de vista: toda

Pois bem, sendo assim existem apenas duas vias para provar que Deus existe, a saber: uma por seus efeitos e outra por sua própria essência ou natureza; e, considerando que eu expliquei a primeira, o melhor que pude, na terceira meditação, creio que, depois disso, não deveria omitir a segunda (DESCARTES, 1977, p. 99, tradução nossa).29

Assim, feitas essas considerações, é possível afirmar que Locke, como muito outros filósofos30, inclusive Descartes, cria numa demonstração pelos efeitos31 da existência real e necessária de um Ente eterno, imaterial, cogitativo e sumamente poderoso, prova essa apresentada no livro IV, cap. 10, do Ensaio.

29“Ahora bien: siendo así que sólo dos vías hay para probar que existe Dios, a saber: una por sus

efectos, y la otra por su misma esencia o naturaleza; y teniendo en cuenta que yo he explicado la primera, lo mejor que he podido, en la tercera meditación, he creído que, tras esto, no debía omitir la segunda”.

30 Para um panorama sobre o assunto, vide CRAIG, 2001.

31 Nesse mesmo sentido, Edward Feser explica que Locke afirmou ser possível provar a existência de

Deus, porém somente através de uma via a posteriori, ao invés da argumentação a priori favorecida por Descartes (FESER, 2007).