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A psicanálise da periferia ao centro do interesse de Lacan

Lacan, um intelectual

“Kant avec Sade” foi publicado pela primeira vez na revista Critique, nº 191, em abril de 1963 após ter sido rejeitado pelo editor das obras do Marquês de Sade, onde deveria figurar como prefácio à La philosophie dans le boudoir311. Em 1966 foi publicado nos Écrits, juntamente com outros artigos reunidos pelo próprio Lacan a pedido da Éditions du Seuil de Paris.

O convite não teria sido de maneira nenhuma despropositado. Jacques Lacan compunha à época, juntamente com Claude Lévi-Strauss, Michel Foucault e Roland Barthes, o mais alto expoente da intelectualidade francesa de sua época. Compunha com eles o quadro daqueles que na França poderiam pensar o vazio do homem desaparecido, uma obstinação para o estruturalismo e sua crítica a modernidade.312

Mais precisamente, neste momento, Lacan era reconhecido como um dos expoentes desse mesmo estruturalismo, e investia maciçamente na relação entre a psicanálise e as influências do signo, dos significantes, da linguagem, enfim.

Lacan via nessa relação do inconsciente com a linguagem uma das grandes possibilidades de inserção das descobertas de Freud no campo das ciências humanas. Seu intento era demonstrar que Freud, ao falar de “texto” nos sonhos, atos falhos, interpretação, cura pela fala, sentido no sintoma e etc., nada mais fez que antecipar todo o movimento estruturalista de investigação da linguagem. Percebe-se que sua convicção

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Paris: Cercle du livre précieux, 1963, 15 vols.

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era a de que o próprio Freud, poderia, ele mesmo, caso tivesse tido a oportunidade de deparar-se com as contribuições da lingüística moderna, ter chegado a conclusão de que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”.

Ocorre, porém, que esse seu envolvimento com a produção intelectual francesa, sua constância em articular a psicanálise com os outros campos do pensamento humano, sua insistência em afirmar as relações entre o inconsciente e as estruturas de significante e significado minorando a importância das questões biológicas e organicistas, tudo isso, não foi bem aceito por todos os seus colegas psicanalistas. Valeu-lhe, na verdade, a acusação de haver criado uma “teoria intelectualista”. Essa acusação lhe incomodava bastante pois não aceitava que comparassem seu projeto com qualquer tentativa de racionalização da experiência psicanalítica:

“Ali podem ver e ler isto: caso vocês se remetam, por exemplo, ao artigo “Das Unbewuste”, o ponto que ali aparece mais sensível, o ponto onde se encontra algo que seria outra coisa que elementos significantes, coisas que os que não compreendem nada do que aqui articulo, chamam uma teoria intelectualista.”.313

Aquilo que os psicanalistas chamavam de intelectualismo, Lacan entendia como retirada da psicanálise do campo do obscurantismo no qual os pós-freudianos a haviam encerrado ao abandonarem o caráter científico do trabalho de Freud e se apegarem aos sentimentalismos e afetividades de uma prática muito mais baseada no senso comum do que no debate de idéias da academia. Retornar a psicanálise a uma prática cuja base se finca sobre uma teorização rigorosa e atenta aos avanços de seu tempo era uma das colunas da crítica de Lacan aos rumos da comunidade psicanalítica.

Esse embate teórico, acrescido à polêmica causada pelas sessões curtas, a teoria do corte, além de todo um folclore em torno do estilo de Lacan conduzir seus tratamentos, foram gerando no seio da IPA um grande desconforto. Desconforto que redundou num grande entrave político que culminaria em um pedido de afastamento, em agosto de 1961 (portanto, um ano depois do seminário “A ética da Psicanálise” e um ano antes do artigo “Kant com Sade”), por parte da IPA, do nome de Jacques Lacan, dentre outros, dos quadros de analistas didáticos daquela instituição314.

Ou seja, este momento em que Lacan se debruça sobre a ética é um momento riquíssimo no seu trajeto: de ruptura e estabelecimento daquilo que

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LACAN, VI, Classe de 26 de Novembro de 1958.

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diferenciaria o seu ensino e, porque não dizer, daquilo que possibilitaria para ele enunciar a psicanálise como uma práxis que se separaria da medicina ou da psicologia e estabelecê-la como disciplina irredutível que pensa seu próprio fazer e que produz uma mudança no mundo.

Lacan pré-psicanalítico: o fascínio da “vanguarda”

É do senso comum a suposição de que ambos, teórico e teoria, foram feitos um para o outro desde antes da fundação mundo. Num certo sentido isso poderia ser verdade já que não é por qualquer motivo que um sujeito abraça uma determinada causa. Porém, tal conclusão pode nos fazer — e certamente faz — perder de vista a maneira extremamente singular com que cada sujeito se apropria do mundo e se refere a ele. Isso é, de fato, fazer naufragar o sujeito nos rígidos destinos das estruturas do mundo.

Algumas “biografias” a respeito de Lacan referem-se a ele como um psicanalista desde sempre. É como se toda a sua vida fosse reduzida a uma militância convicta nas fileiras do freudismo na qualidade de fiel escudeiro do mestre. Para alguns, é quase possível imaginar um “menino Lacan” surpreendendo aos “mestres da lei” freudianos com suas incríveis palavras sobre o inconsciente. Muito pelo contrário. Até mesmo esse tema crucial da psicanálise, o inconsciente, foi, em certo momento inicial, uma problemática séria diante da qual Lacan se via em grandes dificuldades de assumir- se enquanto psicanalista.

Assim, para poder compreender um pouco o que motivava o seu interesse no campo das ciências humanas fazendo-o possibilitar, como ninguém, um debate sempre frutífero entre a psicanálise e esses outros campos, penso ser importante, nesse primeiro momento averiguar, ainda que de maneira superficial, um pouco de sua trajetória intelectual.

Lacan era mais um membro dessa que Bataille chamou de uma “geração tumultuosa” marcada pelas angustias e desencantamentos do entre guerras:

“A geração a que pertenço é tumultuosa.

Nasceu para a vida literária nos tumultos do surrealismo. Nos anos que se seguiram à Primeira guerra mundial, houve um sentimento

que transbordava. A literatura sufocava nos seus limites. Parecia que trazia em si revolução.”315

Já aos 14 anos, Jacques-Marie Émile Lacan começava suas investidas pelo campo do conhecimento. Como nos afirma Roudinesco:

“...Lacan pertencia à média burguesia católica e conservadora. ...Depois de estudos no Colégio Stanislas, Lacan rompe com o catolicismo. Com a idade de 16 anos, admirava a ética de Baruch Spinoza (1632-1677). Um ano depois, voltou-se para o nietzscheísmo, e durante algum tempo ficou fascinado com Charles Maurras (1868-1952), cujo estetismo e gosto pela língua adotou. Enfim, interessou-se pela vanguarda literária”316.

Esse interesse precoce põe em relevo o que iria, de certa forma, marcar a formação de Lacan como um grande intelectual e literato. Também compõe, certamente, o caráter sempre inquieto, investigativo, rigoroso e amplamente bibliográfico de sua pesquisa. O interesse futuro em fazer dialogar psicanálise e outros campos como a filosofia está, antes de tudo, pautado na sua formação intelectual rica e construída desde muito cedo. É para se pensar que o seu esforço em fazer convergir a descoberta freudiana com a história das ciências humanas, não seja apenas fruto de uma preocupação com os descaminhos da psicanálise, mas também de seu espírito apaixonado pelo pensamento humano e por toda produção cultural.

A inserção do sujeito

Lacan toma parte numa tradição moderna que vai de Hegel e Marx até Nietzsche e Heidegger de insistir na acusação de que a própria modernidade, ao fundar a razão como princípio de subjetividade, mesmo denunciando e minando todas as formas de opressão e alienação, faz somente “implantar em seu lugar a dominação inatacável de sua racionalidade”. Segundo Habermas:

“Uma vez que esse regime de uma subjetividade dilatada em falso absoluto transforma os meios da conscientização e da emancipação em

315

BATAILLE , 1980, pág. 03

316

outros tantos instrumentos da objetivação e do controle, ele se proporciona uma imunidade sinistra nas formas da dominação oculta.”317

Damos então, um salto até 1932, quando da defesa de sua “De la psychose

paranoïaque dans se rapports avec la personalité”,318 tese de doutoramento em psiquiatria. Neste primeiro tempo dos trabalhos de Lacan que incluíam a pesquisa psicológica, a psicanálise figura apenas como coadjuvante de uma tarefa maior. Como afirma Richard Simanke, “esta incorporação de elementos freudianos está subordinada a um projeto teórico bastante preciso, cujas linhas de força, contudo, emanam de outro lugar”.319

Tal projeto teórico poderia ser identificado como uma tentativa de retirar a psicologia do reducionismo biologizante, do naturalismo psicológico, que a medicina, mais especificamente a psiquiatria, à vinha colocando. Uma tarefa que poderá ser percebida até mesmo quando acusará, mais tarde, as tendências psicobiologizantes dos seus colegas psicanalistas pós-freudianos. Como afirma Simanke:

“Lacan tornar-se-á um dos maiores empreendedores da desmedicalização cabal da psicanálise, despojando as entidades clínicas de sua significação patológica, ao redefini-las em termos de estruturas da subjetividade, da mesma forma que afasta da prática psicanalítica sua intenção terapêutica, caracterizando em termos de um 'ganho ético' os resultados da análise”.320

O apoio a essa tarefa, Lacan não retirará ainda da psicanálise mas, principalmente, das suas articulações com o campo das ciências sociais. Para construir uma psicologia não reduzida ao realismo biológico uma porta de saída mais próxima e mais atual seria as produções e as pesquisas instigantes das ciências sociais e da antropologia que percebiam a experiência humana como fruto de emaranhado social e da relação do indivíduo com esse emaranhado. Lacan deparava-se com os benefícios e com as possibilidades de incluir em sua tarefa os avanços de uma teoria que pudesse dar conta da forma como o individuo percebe o mundo, como ele se percebe neste mundo e como se sente percebido por ele. Essa relação especular abre caminho para o primeiro grande movimento de Lacan no campo da psicologia não reducionista, a saber, a fundação de uma teoria do imaginário. Como afirma Simanke:

317

HABERMAS, 2000, pág. 80

318

Publicado no Brasil como Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1987.

319

SIMANKE, 2002, pág.18

320

“Na medida em que essa teoria, no seu propósito de reformar e renovar a ciência psicológica, buscou cada vez mais apoio e a sua fundamentação necessária nas disciplinas que se ocupavam do funcionamento da sociedade (sociologia, antropologia), viu-se reafirmar, por esta via, a idéia de que a realidade humana é, essencialmente, uma realidade social — portanto, construída e não dada —, refutando, de outro ponto de vista uma postura empirista, desde o início incompatível com o projeto lacaniano.”321

Esse recurso à uma visão sociológica não é motivado apenas por interesses intelectuais de Lacan. Notadamente, é seu engajamento clínico que o obriga a recorrer às ciências humanas. Um engajamento clínico associado à sua preocupação em re- introduzir na medicina a problemática do sujeito; de um sujeito como participante ativo da construção da realidade que lhe atravessa. Uma psiquiatria naturalista e biologizante não pode suportar a participação do sujeito na sua morbidade.

Contudo a introdução da questão do sujeito traz consigo problemas sérios em termos metodológicos. Primeiramente, estabelecer o sujeito como objeto além de formalmente contraditório, implica a imposição de uma objetividade artificial ao sujeito do experimento que coloca em risco a viabilidade mesma desse experimento. Em segundo lugar, como vencer a complexidade da legitimação dos dados de uma pesquisa em que um objeto (o sujeito) está tão apto a adaptar-se à lógica do experimentador e oferecer-lhe o resultado que espera – posto que recebeu dele as categorias que balizam a formulação dos problemas?322 Nos anos subseqüentes à sua tese, Lacan dedicar-se-á, em parte, a resolução deste problema.

Não é exagero, no entanto, afirmarmos que aqui se encontra uma das questões centrais na exposição que Lacan faz em “Kant com Sade”. O seu projeto de inclusão do sujeito permanece vivo. Sua aposta na psicanálise como disciplina destacada das outras justamente por possibilitar a inclusão do sujeito é o que vai sustentar sua crítica à exclusão que também a filosofia procura exercer sobre o sujeito:

“...sustentamos que a alcova sadiana iguala-se aos lugares dos quais as escolas da antiga filosofia retiraram seu nome: Academia, Liceu, Stoá. Aqui como lá, prepara-se a ciência retificando a posição da ética. Nisso, sim, opera-se um aplanamento que tem que caminhar cem anos nas profundezas do gostopara que a via de Freud seja viável. Contem mais sessenta para que digamos o porquê de tudo isso.”323

321 SIMANKE, 2002, pág. 526 322 SIMANKE, 2002, pág. 154 323

“Retificar a posição da ética” não seria exatamente tirar o sujeito de cena? Não seria isso que se consegue ao transformar a ação humana em uma pura forma? Percebemos, assim, como “Kant com Sade” é um texto importantíssimo e esclarecedor de certo movimento que Lacan empreendeu sobre a psicanálise.

É na tentativa de reintroduzir o sujeito na medicina que a antropologia, notadamente a de Marcel Mauss, ganhará lugar de destaque. A hipótese da tese é de que não só a psicose é um fenômeno de conhecimento mas o conhecimento humano como um todo é essencialmente paranóico, posto que insiste em supor uma rigidez ilegítima na realidade.

Richard Simanke, em sua “Metapsicologia Lacaniana: os anos de formação”, ressalta ainda o papel importantíssimo que, neste momento, a partir de 32, Georges Politzer exerce sobre as idéias de Lacan, principalmente em seu “Critique des

fondements de la psychologie” onde propunha uma crítica pesada aos fundamentos de

toda psicologia, incluindo aí a psicanálise:

“A inspiração para a tarefa positiva de fundação de uma ciência psicológica à altura das necessidades clínicas da psiquiatria e de uma abordagem concreta da realidade humana vai ter que ser buscada em outro lugar. É, de fato, no turbulento pensamento de Georges Politzer que Lacan vai apoiar-se inicialmente.”324

A presença de Politzer será sentida com maior vigor em Lacan na sua tese de doutoramento, no entanto, sua influência será ainda ecoada em textos um pouco posteriores como “Para-além do ‘princípio de realidade’” de 1936, onde Lacan começa a tomar a psicanálise como um tipo de psicologia bem-sucedida:

“A psicologia constitui-se como ciência quando a relatividade de seu objeto é por Freud postulada, ainda que restrita aos fatos de desejo.”325

Essa afirmação feita em 1936, já coloca por si só, à mostra, a utilidade que a psicanálise começa a ter nesse projeto lacaniano de inclusão da subjetividade nas questões da psicologia. Desde a tese Lacan procura demonstrar que, antes de ser reduzido a epifenômenos de processos neurais, os sintomas psicóticos possuem uma dimensão significativa, significável. Agora, a psicanálise poderia compor o quadro de

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seus aliados com algum destaque, pois o que Freud havia demonstrado na sua teoria era que o sintoma psicológico, traz consigo um sentido, uma significação. Mesmo ainda não superando o dilema epistemológico de se colocar o subjetivo como objeto, Lacan não deixava de reverenciar a psicanálise como um grande avanço na tentativa de apreensão objetiva do sentido na investigação dos fenômenos psíquicos:

“A nova psicologia não reconhece à psicanálise apenas o direito de cidadania; recortando-a incessantemente no progresso de disciplinas oriundas de outros âmbitos, demonstra seu valor de via pioneira”326.

Já podemos imaginar que a convicção da psicanálise como “via pioneira” é que vai possibilitar a maneira tão engajada que Lacan, nos anos seguintes, investirá nela como um campo de pesquisa também irredutível. Na discussão que é o centro de nossa pesquisa (a questão da ética) podemos começar a perceber que as relações entre filosofia – como um campo interessado nos limites da moral e da ética – e psicanálise vão deixando ser meramente alegóricas, ilustrativas, para transformarem-se num debate onde a psicanálise pode ser uma proposta inédita e uma alternativa à abordagem do sujeito já o mesmo viés que a filosofia. Em 63, tanto quanto em 32, Lacan continua defendendo a originalidade da descoberta freudiana apesar da insistência, até mesmo de seus pares, em reduzi-la a uma “incidência normal”.327 A psicanálise, para Lacan, tem algo a dizer.

A psicanálise se mostrava, então, uma grande ferramenta. No entanto ela ainda estava presa demais à necessidade de responder aos problemas usando duas vias que para Lacan eram por demais complicadas, a saber, os pressupostos biológicos, por um lado, e certo ranço metafísico da psicologia abstrata do outro.

Aqui já percebemos surgir o broto do que seria mais um dos grandes estandartes da crítica lacaniana aos descaminhos da psicanálise pós-freudiana que o acompanharia até a década de sessenta quando da escrita de “Kant com Sade”. A psicanálise só serviria a Lacan se ela pudesse ser retirada do obscurantismo e do sentimentalismo com que vinham sendo tratados os seus temas cruciais. Era preciso iluminar a psicanálise, esclarecê-la. Era preciso fazê-la encontrar-se com a Aufklärung.

325

LACAN, Para-além do “Princípio de Realidade”, pág. 77

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LACAN, Para-além do “Princípio de Realidade”, pág. 77

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A gênese do eu: do eu imaginário à divisão subjetiva

Estamos, neste momento, no período que vai da tese até o seu “Para-além

do ‘princípio de realidade’” onde um encontro torna-se determinante para Lacan

principalmente na sua tarefa de esclarecimento da psicanálise.

Na esteira da problemática da subjetividade um ponto era importante ser esclarecido: a gênese do eu. Era preciso desfazer certa “mitologia metafísica” com que a psicanálise, principalmente aquela influenciada pela “psicologia do eu”, vinha se apegando ao acreditar num “núcleo humano”, em algum tipo de essência interior que constituísse as individualidades.

É sua freqüência ao curso de Alexander Kojève, “Introdução à leitura de Hegel”, na escola de Altos Estudos de Paris que lhe permitiu iniciar-se na filosofia hegeliana e interrogar-se sobre a gênese do eu por intermédio de uma reflexão filosófica concernente à consciência de si.

Kojève possibilita a Lacan estabelecer um elo entre o desejo baseado no reconhecimento (ou desejo do desejo do outro) e o desejo inconsciente (realização no sentido freudiano). Era a possibilidade de utilizar o discurso filosófico para conceituar uma visão freudiana que lhe parecia insuficiente e, ao mesmo tempo, antropologizar o desejo humano — ainda que o colocando no lugar da consciência hegeliana que remetia a descoberta do psicanalista vienense a uma idéia de desejo inconsciente que mais tarde foi problematizada dentro de uma perspectiva fenomenológica. É pública e notória a influência de Kojève na construção de um dos pilares de todo edifício teórico lacaniano: a noção de desejo e sua relação com o seu conceito de subjetividade.

É sob esses efeitos que Lacan apresenta, em 1936, por ocasião do congresso de Marienbad, a primeira formulação de sua famosa teoria do “estágio do espelho” num trabalho intitulado “O estádio do espelho como formador da função do eu”328.

O “estádio do espelho” designa um momento específico na história de desenvolvimento do indivíduo. Entre os seis e os dezoito meses de idade a criança forma uma representação de sua unidade corporal por identificação com a imagem do

outro. O que antes era uma vivência de um corpo despedaçado, transforma-se, por um processo de identificação ao outro, numa primeira demarcação de si, numa distinção entre o interior e o exterior. Ao procurar a realidade de si, ela encontra apenas a imagem do outro com a qual se identifica e na qual se aliena. A experiência exemplar que marca esta fase é a da satisfação que a criança tem ao perceber sua própria imagem num espelho. Será, então, na relação com esse outro especular, mas também nos equívocos, nos conflitos, enfim, nos impasses dessa relação com o outro, notadamente, um outro que lhe é próximo, familiar, que um indivíduo pode começar a se constituir como si mesmo. Como afirma Simanke:

“... a experiência do reconhecimento especular ganha uma significação paradigmática para essas operações em que o sujeito se constitui por uma identificação imaginaria que se antecipa à sua maturação

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