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A psicopat ologia do laço pais-bebê

4.2 A PSICOPATOLOGIA DA GRAVIDEZ O LAÇO EM PERIGO

Habitada, durante 40 semanas de gestação, por um organismo em desenvolvimento, estrangeiro e familiar por sua vez, parte indissociável dela mesma, a futura mãe vai constituir com seu feto um laço de influência e de dependência recíprocas. O desenvolvimento desse laço vai depender dos jogos inegáveis de três fatores: a organização progressiva das capacidades sensoriais do feto, a intensidade mais ou menos grande das percepções sensoriais endossomáticas que assaltam a mulher grávida desde os primeiros meses e a aceleração de sua vida psíquica (BYDLOWSKY, 2004).

O estado materno, constituído por sentimentos de amor e ódio, fantasias, expectativas em relação a seu bebê, é determinante, junto com o ambiente que o cerca e o potencial inato do bebê para o desenvolvimento, na natureza do vínculo que vai se estabelecer entre ele e sua mãe (MARTINI, 2000).

Segundo Soubieux e Soulé (2005), todo objeto é investido no quadro de uma ambivalência, ou seja, com sentimentos positivos, mas também com sentimentos negativos violentos que vão até um desejo de destruição. Toda mãe investe, pois, seu bebê no quadro de uma ambivalência. Muito rapidamente, os mecanismos psíquicos vão lhe permitir conter,

recalcar, desviar seus sentimentos de ódio e resta o amor maternal que é, no melhor dos casos, exclusivamente positivo.

O feto, precursor do bebê, é investido igualmente na ambivalência. É notável ver que ele pode ser desinvestido ou objeto de um ódio assim que ele vem faltar com seus ‘deveres’, ou seja, assim que ele cessa de ser um objeto sobre o qual é possível projetar seu bebê imaginário e um ser que será capaz de preencher seu mandato transgeracional e de responder às expectativas maternal e paternal. O feto, que até este momento, era investido como precursor do futuro bebê, e se beneficiava desses mesmos investimentos positivos, cessa de ser este suporte. Com efeito, em razão das graves imperfeições, ele não aparece mais como capaz de assegurar o mandato transgeracional e de se tornar um parceiro para seus pais (SOUBIEUX; SOULÉ, 2005).

As mães descrevem bem que o feto, depois recém-nascido, é percebido como parte delas mesmas, no nível psíquico e somático. Esta relativa indistinção é o fundamento das projeções – freqüentemente massivas – que a mãe opera sobre o bebê, fazendo deste último, receptáculo de conteúdos psíquicos maternos. O futuro dessas projeções vai depender de vários fatores: o grau de recalque e de clivagem desses conteúdos psíquicos; do reforço dessas projeções por materializações do bebê que tendem a confirmá-las e pelas atitudes da mãe que tendem a substantificar e confirmar essas projeções; a capacidade do bebê de desmentir – ao contrário de validar - essas projeções (por suas características próprias). Esta conjunção de fatores dá uma originalidade particular ao funcionamento psíquico da mãe e do bebê em idade precoce, assim como as suas patologias respectivas (KREISLER; CRAMER, 2004).

Como afirma Verny (1993, p. 5),

a criança, antes do nascimento, é um ser dotado de sentimentos, de lembranças e de consciência. E porque ele é assim, tudo o que lhe acontece nos nove meses que separam o momento da concepção do nascimento tem

uma importância capital na formação e na estruturação da personalidade, da libido e dos impulsos.

Para se construir, para nascer e para crescer, mesmo os bebês têm necessidade de uma história – e não somente de uma história biológica ou genética, mas também de uma história relacional (GOLSE, 2003).

Mesmo nas relações parentais biológicas, o vínculo entre pais e filhos é construído no âmbito relacional; assim, a herança genética em si não garante uma relação parental saudável.

Para a criança, a identificação à mãe constrói sua primeira imagem narcísica. O bebê se ama da maneira que ele ama sua mãe. Crescendo, a criança se identifica às palavras da mãe e faz seu o discurso dela, seja positivo ou negativo (RIALLAND, 1994).

Zibini e Vasconcellos (2006) acreditam que a filiação se estabeleça a partir das relações e significados atribuídos à criança, os quais irão favorecer ou não seu pertencimento a um determinado núcleo familiar. Desse modo, entendem que filho “é aquele que pertence e que está inserido no espaço psíquico dos pais” (ZIBINI; VASCONCELLOS, 2006, p. 245).

Para Soler (2005), as violências que afetam a mãe grávida podem, qual seja a forma, deixar engramas negativos no bebê. O engrama, do latim grammae ‘letras, caracteres’, designa uma memória em longo prazo do vivido. O engrama pode ser positivo ou negativo e constitui um saber, mesmo se ele é ignorado conscientemente (SOLER, 2005).

A tonalidade emocional da relação que a mãe estabelece com seu companheiro também se repercute sobre o bebê deles (SOLER, 2005). Uma relação ruim do casal constitui uma das causas essenciais dos desgastes físicos e afetivos sentidos pela criança antes do nascimento (VERNY, 1993). Uma relação mãe-criança, forte e afetivamente rica, pode proteger o feto contra as agressões , mesmo as mais traumatizantes (VERNY, 1993).

O pai, então, na dinâmica do investimento materno, tem um peso necessário e constante. Numerosas observações da psicopatologia do bebê demonstram a intervenção do

pai, não somente mediada pela mãe, mas direta, mais freqüente do que se diz (KREISLER; CRAMER, 2004).

Ele introduz a diferença nas trocas entre mãe e criança, contextualiza e enquadra essas interações, ao mesmo tempo em que representa uma separação no binômio mãe-bebê. Em relação à diferença da ligação maternal, a ligação parental é marcada por um ato de reconhecimento, um ato de vontade. A mãe reconhece o pai e este, por vir a ser pai, reconhecerá a criança e se associará na sua linhagem. Para o homem, a passagem do status de genitor ao de pai pode ser considerada um ato de nascimento social, um ato da cultura (MENENDEZ et al, 2004).

Distância e diferença são elementos fundadores do psiquismo da criança no qual o pai intervém de maneira muito ativa. Ele é propulsor do desenvolvimento, da socialização e da simbolização; o pai, com sua empatia, pode antecipar as necessidades da sua criança e lhe dar uma base de segurança para ajudá-la a ter acesso à cultura. É um caminho que leva da filiação à afiliação com o bebê (MENENDEZ et al, 2004).

O nascimento do bebê inaugura uma nova etapa nessa relação, dando uma nova dimensão ao apego – agora não é mais o filho idealizado, mas o bebê real. A esta passagem segue-se a formação de um vínculo entre duas pessoas com as características próprias de cada uma (GANDRA, 2002).

Dentro da dimensão imaginária, os dois pais dividem de maneira latente e manifesta suas ilusões e expectativas em relação a um próximo bebê. A mulher torna-se para o homem uma mulher grávida. A gravidez é resultado da proximidade e do projeto da vida em comum do casal (MENENDEZ et al, 2004).

Di Loreto (2004) complementa ao dizer que a psicopatogênese (origem e construção das moléstias da mente) – ou sua ausência – depende de toda uma rede de vínculos, da ação e interação de todos que a constituem, sendo que o vínculo primordial é aquele que antecede

aos filhos, a relação mãe-pai. Este autor coloca que o casal marital, com suas expectativas em relação a eles mesmos, seus fantasmas, etc. podem ser geradores de psicopatologias e sintomas em seus filhos. É o que ele chama de vias reflexas.

Portanto, pode-se dizer que as manifestações psicopatológicas precoces dos distúrbios do contato afetivo são índices de que a função representativa dada pelo outro não pôde se estabelecer satisfatoriamente, não inaugurando, assim, a instauração do aparelho psíquico e do corpo do sujeito (WAJNTAL, 2001).

Guyotat (1978) compreende a psicopatologia da gravidez como a impossibilidade de articulação de três registros: criança-duplo da mãe; criança imaginária dos desejos infantis; criança de um outro, criança atual que se inscreve numa filiação. Entende ainda que as perturbações e segredos da ‘filiação’ têm importante papel nas psicoses puerperais.

Uma mulher grávida tem um passado, uma personalidade e uma série de hábitos enraizados. Quando este Eu é ameaçado de maneira imprevista, ou quando seus hábitos têm que se modificar devido a pressões emocionais da gravidez, existe perigo (VERNY, 1993).

Quando, em decorrência de uma enfermidade, o bebê não responde ao investimento materno, ou a mãe, abalada por esta enfermidade, não responde às manifestações de seu filho, o vínculo entre ambos fica ameaçado e com ele, o desenvolvimento aludido (MARTINI, 2000).

Segundo Canault (2001), toda ruptura da díade expõe a criança a regredir às imagens as mais arcaicas, aquelas do estado fetal, a fim de reencontrar seu sentimento de si, e sua