• Nenhum resultado encontrado

A PSIQUÊ E O ESPELHO

No documento IVETE VIDIGOI DE SOUZA (páginas 57-63)

No universo mitológico, há também o mito de Eros e Psiquê. Fazendo um paralelo dele com o mito de Eco e Narciso, percebe-se que ambos têm muitas peculiaridades em comum. O mito de Eros e Psiquê narra o que acontece entre as pessoas e dentro delas. Mostra que o desenvolvimento de Psiquê não ocorre num mar de rosas. Sofrimentos, torturas, depressões e tentativas de suicídio são vivências em todo o seu relacionamento com Eros, o amor. Ele é visto como um grande torturador e não como um querubim bondoso como mostra a imagem de Cupido.

Segundo BRANDÃO (2000:209-50, v.II), havia um rei que tinha três

filhas. A caçula, Psiquê, se destacava das demais por sua beleza e era adorada pelos homens como se fosse Afrodite. Isso causou inveja na deusa, que enviou seu filho Eros, de maus costumes, para fazer Psiquê se apaixonar por um homem que fosse o mais feio dos mortais.

O rei casou as suas duas filhas e, preocupado com a caçula, consultou um oráculo. Foi-lhe revelado que a jovem deveria ser conduzida ao alto de um rochedo, onde se uniria a um monstro horrível. A promessa foi cumprida, mas Eros, em vez de obedecer as ordens da mãe, acabou apaixonando-se por Psiquê e levou-a para um belo castelo. Lá, todas as noites, ele a amava, com uma condição: jamais a sua identidade seria revelada à amada ou a outras pessoas. Fama, uma divindade de multiplicidade de olhos e ouvidos, contou a todos a paz em que Psiquê vivia. As irmãs, invejosas, arquitetaram um plano para desgraçar a vida de Psiquê.

Psiquê, ingênua, aceitou o que suas irmãs disseram e descobriu quem era seu amado. Eros jogou pragas às irmãs de Psiquê e foi embora. A jovem moça saiu à procura de seu amor. E enfrentou sua sogra e rival, Afrodite, que deu a ela quatro missões impossíveis de serem cumpridas, com o objetivo de destruir a pobre mortal. Psiquê, com o auxílio de outros elementos mágicos, venceu os obstáculos. Eros foi à procura de Psiquê e teve o consentimento de Zeus para transformá-la em uma imortal. Assim, ela uniu-se a Eros e teve uma filha chamada Volúpia.

Por esta narrativa, pode-se observar os elementos que aproximam Eros e Psiquê do mito de Eco e Narciso. Psiquê era bela e por sua beleza foi condenada à morte, porém seu destino final foi diferente do de Narciso. Ambos foram vítimas de sua beleza e, inocentes, sofreram

conseqüências decorrentes da inveja dos deuses. Psiquê, quando descobriu o seu amante, comportou-se como Narciso: ficou extasiada contemplando a beleza de Eros. Esta relação entre sua imagem e a imagem do outro significa que ela ama o que reflete e reflete-se no que ama. A imagem congelou-a; sem perceber as causas e efeitos, ela apenas desejou o objeto. Eros, buscando Psiquê, descobre que ele é a própria Psiquê. Essa consumação deixa bem claro o encontro identificador do eu com o outro, criando o jogo dos reflexos e do espelho.

No espelho, vemos o que somos e o que não somos. Entre as muitas finalidades que lhe atribuem está a de captar, com a imagem que nele reflete, a alma do refletido. Narciso, Eco, Dioniso, Adônis, Psiquê e Eros, de uma forma ou outra, foram vítimas de uma ilusão, a de que a imago, a imagem, a umbra, a sombra é a única realidade posta diante de seus olhares.

A concepção do ‘Estádio do Espelho’ foi apresentada por LACAN

(1998:97), em 1936, para explicar o processo de identificação, necessário à formação do Eu. O estádio do espelho situa-se no período que vai dos seis aos dezoito meses de idade. Consiste numa transformação ocorrida no ser humano quando este se capacita para perceber que a imagem no espelho é o seu próprio reflexo. A importância da formulação do estádio do espelho é assinalada pelo próprio LACAN e por outros autores. Este é o

LACAN estende o estádio do espelho para além de uma fase de

desenvolvimento infantil.

A experiência do estádio do espelho pode ser dividida em três tempos fundamentais. O primeiro momento marca a apreensão do registro do imaginário pelo ser humano. O bebê percebe a imagem como se fosse um ser real e se aproxima do espelho com a finalidade de tocá- lo. No segundo momento, o bebê descobre que o outro do espelho é uma imagem. No terceiro momento, o bebê conquista uma identidade no registro do imaginário: o reconhecimento de si.

MILLER (1998:139) descreve esta experiência como uma forma

incipiente de auto-reconhecimento deste bebê: caminhando, ele recolhe um lenço e retorna ao espelho para verificar se o outro do espelho fez a mesma coisa e depois procura com o olhar o adulto.

Para LACAN (1998), o estádio do espelho é concluído pela

identificação do sujeito com a imago do semelhante. Esta experiência especular dá o contorno de uma imagem ideal, a imagem integrada de si que lhe permitiu a assunção de sua unidade corporal, através do processo de identificação com sua imagem, ou seja, o Eu orgânico pressupõe um Eu psíquico.

O “Estádio do Espelho” é visto como fundamentador da estrutura do eu humano e marca a passagem do registro Imaginário para o Simbólico.

Quando se enfoca o espelho à luz dos estados psicológicos, pode se dizer que ele é uma metáfora da questão do eu e de sua identificação. Muitos escritores se interessaram pela instabilidade do eu e fizeram dela uma metáfora do que há de incompreensível no destino dos homens.

Em Através do espelho, um romance moderno, de JOSTEIN GAARDER

(2000), a narrativa é de Cecília, uma menina que vive intensamente as coisas que vai aprendendo com o anjo Uriel . Ela anota essas informações em um caderninho, enquanto passa o tempo todo em seu quarto, deitada na cama, pois está morrendo. Sua história sendo uma preparação para a morte é um mergulho na vida e na própria individualidade, como ela mesma diz:

Nós enxergamos tudo num espelho, obscuramente. Às vezes conseguimos espiar através do espelho e ter uma visão de como as coisas são do outro lado. Se conseguíssemos polir mais esse espelho, veríamos muito mais coisas. Porém, não enxergaríamos mais a nós mesmos. (p.18)

A aventura no interior do espelho implica a coragem da travessia. A coragem de inventar, experimentar, buscar novas formas de ver. A coragem, talvez, de mergulhar em si mesmo, na busca infinita, como ocorreu com Narciso.

No documento IVETE VIDIGOI DE SOUZA (páginas 57-63)

Documentos relacionados