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1. A INFORMAÇÃO CONTÁBIL E O CONTROLE SOCIAL

1.2 CONTROLE SOCIAL, ACCOUNTABILITY E PUBLICIZAÇÃO DA

1.2.3 A publicização da informação – atenção à limitação da cognição humana

A informação possui um papel central em transformar o processo de accountability de forma efetiva. Entende-se, ao recorrer à teoria da agência, que a assimetria de informações entre o principal e o agente ocasiona a ocorrência de custos de delegação, os quais, quanto maiores, menor será a qualidade da democracia. Przeworski (2001) aponta que os agentes podem fazer uso da informação privilegiada e do poder de decisão para auferir vantagens indevidas. E o uso dessas informações pode ser indevidamente utilizado pela falta de transparência. Este ponto é crucial. Filgueiras (2011, p. 70) relata existir uma demanda por uma concepção de

accountability “centrada na abertura da razão de Estado para o conhecimento do principal, o

qual é compreendido como a cidadania em sua concepção mais abrangente”. Para Filgueiras:

O fundamental é pensar o problema da transparência no sentido de aprimorar a noção de responsabilidade do Estado diante da sociedade. O aprimoramento do conceito de

accountability depende, por sua vez, da compreensão do lugar do conhecimento social

na construção da responsabilidade política, já que existe um pressuposto de assimetria informacional entre principais e agentes que requer tratamento normativo na esfera das instituições políticas. (FILGUEIRAS, 2011, p. 74-75)

A transparência é apontada como elemento central da accountability, de forma que a responsabilidade política faz parte de qualquer projeto de democracia. Para Filgueiras (2011, p. 75), “é impossível pensar a responsabilidade política sem que as instituições sejam transparentes aos cidadãos e que o déficit de informação entre o homem comum e as instituições democráticas seja reduzido”.

Para que o regime político se consolide, a democracia prescinde de uma espécie de livre conhecimento por parte do cidadão comum. É fundamental que “as instituições políticas sejam límpidas, informem e prestem contas ao cidadão comum, e tenham a ideia de transparência como um valor instrumental para o exercício da accountability” (FILGUEIRAS, 2011, p. 75). No entanto, a ideia da transparência como um valor instrumental foi questionada por Heald (2006a), e significa, para ele, que há uma variedade de transparências benéficas ou não, dependendo da organização e do habitat no qual ela interage. Para Heald (2006a), os custos diretos para implementar a transparência e manter a documentação disponível são baixos, entretanto, os custos indiretos são mais difíceis de se avaliar. Os custos indiretos estão relacionados com informações sensíveis em determinados ambientes organizacionais, as quais, se divulgadas, podem prejudicar o andamento de políticas públicas sociais, ambientais e de segurança, podendo causar prejuízos difíceis de se estimar. Isto quer dizer que no processo de

transparência deve ser avaliada com cuidado a sinergia existente entre os diversos atores envolvidos.

O livre conhecimento por parte do cidadão, de modo a que a accountability possa ser efetivada esbarra em um dilema, que é a existência do “segredo” impactando no processo democrático. Para Jardim (1999), no Estado moderno, o segredo deve ser por princípio legitimado apenas nos casos excepcionais, previstos legalmente. Já Almino (1986, p. 98) é cético ao afirmar que:

“por mais amplas e abertas que sejam ou venham a ser as discussões no interior do Estado e por mais que estas possam refletir o que ocorre na sociedade, uma certa desconfiança mútua, inerente ao próprio processo decisório hierarquizado e a visão do Estado como concentrador do poder, faz com que erija uma barreira entre Estado e sociedade no plano da informação”.

A existência do segredo impede um controle mais efetivo por parte da sociedade em relação ao governo. Com o segredo, “cria-se uma realidade escondida e outra aparente. Tendo acesso apenas a esta última, a sociedade é mantida na ignorância de processos decisórios que lhe dizem respeito” (ALMIRO, 1986, p. 98). O autor afirma que isso pode ocorrer também nas profissões, o que gera uma preservação dos seus agentes do exame de seus atos por parte do público.

Já Filgueiras (2011) afirma que a democracia liberal não tolera a existência de segredo e estabelece que a liberdade de informação é um direito fundamental que organiza a esfera pública, sendo ele típico das formas autocráticas de governo. Filgueiras (2011) é crítico quanto a visão de que a transparência, em reduzindo os segredos de Estado, permitindo o livre- conhecimento da sociedade, potencializa o exercício da cidadania. Aponta como uma objeção à política de transparência que “no âmbito político, o segredo tem uma função importante” (FILGUEIRAS, 2011, p. 77).

Esse dilema se evidencia quando a questão do princípio da publicidade das ordens democráticas é confrontado ao segredo requerido por algumas políticas. A democracia exige que as decisões sejam tomadas em público, mas algumas políticas, para serem eficientes, necessitam do segredo. (FILGUEIRAS, 2011, p. 81)

Não necessariamente a transparência significa maior eficiência das políticas públicas, já que o segredo faz parte da construção de algumas delas. Thompson (1999, p. 185) apresenta dois princípios para que o segredo possa ser considerado na política democrática: (1) o segredo é justificado apenas quando promover a discussão democrática sobre os méritos de uma política pública; (2) o segredo é justificado desde que os cidadãos e seus representantes sejam capazes de deliberar sobre ele. A resolução deste dilema se dá com a criação de um segredo de primeira

ordem, acompanhado de uma publicidade de segunda ordem. A decisão de criação de uma política ou processo em segredo deve ser justificada publicamente, possibilitando ao segredo ser relacionado com o princípio democrático (FILGUEIRAS, 2011).

A existência de segredo acaba por muitas vezes em abalar as estruturas democráticas do país, sendo incompatível com a atual abertura democrática que preconiza a possibilidade do cidadão ter acesso à informação. O cidadão, privado de acesso às fontes de informação e ignorando os motivos que levaram às decisões tomadas pela administração, permanece sujeito a vontade de uma administração “impenetrável” (JARDIM, 1999). Chevalier (1988) afirma que o segredo faz mal à administração, pois gera desconfiança por parte dos cidadãos, bloqueando a comunicação, entravando a coleta de informações e favorecendo reações contrárias da população.

Para os cidadãos, que cada vez mais querem conhecer e compreender os atos do governo, bem como querem participar para terem seus anseios ouvidos, a persistência do segredo é um entrave a ser superado. Compreende-se os motivos afirmados pelos autores para manter algumas informações na zona de segredo, de modo que a avaliação da efetividade de se manter segredo se dará, nesses casos, a partir da análise pelo cidadão da adequação das políticas públicas realizadas.

Nessa esteira, cumpre apresentar o outro problema assinalado por Filgueiras (2011, p. 78) quanto à política da transparência. A falta de atenção à questão de como é produzida a informação e quanto aos aspectos cognitivos no julgamento, pela sociedade, nas escolhas de políticas e de seus resultados. Heald (2006b, p. 26) chama a atenção para a diferença entre abertura e transparência de processos e informações, apontando que a abertura deve ser considerada uma característica das organizações, enquanto que “a transparência também requer receptores externos capazes de processar a informação disponível”.

Segundo relatado por Etzioni (2010, p. 401), “o público não possui capacidades cognitivas para determinar qual intermediador fornece informações que são melhores processadas do que o outro”. O autor não faz um julgamento sobre possíveis manipulações deliberadas, e sim admite a possibilidade de haver diferenças na qualidade do processamento das informações, dependendo de fatores como: o acesso às informações primárias, os recursos disponíveis para os analistas, suas habilidades e os pressupostos sobre os quais se baseiam. Filgueiras (2011, p. 79) aponta a necessidade de “demanda de uma instância de deliberação imparcial”, pois considera que assim será possibilitado o entendimento, considerando os aspectos cognitivos da sociedade.

O resultado de uma política de transparência é configurar um discurso público marcado por proposições assertórias que têm a pretensão de descrever a realidade, mas sem um pano de fundo valorativo assentado nas questões morais da conduta dos agentes públicos. (FILGUEIRAS, 2011, p. 79)

Uma crítica importante é a de que a política de transparência não consegue precisar o pano de fundo valorativo envolvido na razão pública, pois dispensa o aspecto normativo da

accountability. A política de transparência não permite uma distinção clara entre razão pública

e razão não-pública, nem formular uma concepção de publicidade que especifique uma distinção mais clara entre o público e o privado, enfraquecendo a accountability (FILGUEIRAS, 2011). Isto quer dizer que questões não-públicas ligadas a reputação dos indivíduos podem ser centrais para uma política de moralização, mas não para uma política de responsabilidade. Com isso ocorre, no conceito de accountability, o esvaziamento do conteúdo normativo ligado ao julgamento da ação política das instituições, fazendo com que não se derive uma concepção mais ampla de cidadania e de moralidade na gestão da coisa pública.

Mais informação não significa necessariamente a produção de cidadãos melhores, nem governos mais transparentes propiciam governantes melhores e menos corrompidos. O problema do conceito de transparência é que o maior volume de informação em si não significa informações mais qualificadas, pois elas são produzidas por agências que permitem o uso ideológico da transparência (FILGUEIRAS, 2011, p. 83).

Filgueiras (2011) propõe, para compatibilizar as perspectivas normativas do conceito de

accountability com a concretização efetiva da democracia, uma política de transparência

assentada em uma “política de publicidade”:

Apenas uma política como essa pode atender ao princípio democrático no plano de uma razão pública imparcial: ou seja, uma razão baseada em uma concepção forte de cidadania, de sujeitos discursivos capazes de se fazerem ouvir e, de fato, serem ouvidos (FILGUEIRAS, 2011, p. 83).

Para se respeitar o princípio da legitimidade democrática se exige uma possibilidade de crítica social da política, que não se realiza sem um governo transparente (FILGUEIRAS, 2011). Porém, a publicidade vai além da transparência (disponibilização de informações e processos relacionados a políticas públicas):

Ela exige que os processos representativos da democracia sejam organizados em condições equitativas, em que, observadas a pluralidade dos interesses e as diferenças de condição social, as instituições consideram igualmente os interesses dos diferentes cidadãos (CHRISTIANO apud FILGUEIRAS, 2011, p. 84).

A abrangência da democracia deliberativa, para Filgueiras (2011) considera o aspecto institucional, sugerindo uma discussão normativa do conceito de accountability. Para ele, o

processo deliberativo deve obedecer aos princípios da publicidade, accountability e da reciprocidade e, ainda, demanda uma esfera pública inclusiva na qual os múltiplos públicos possam ter voz, para além dos sistemas hegemônicos de comunicação social.

Filgueiras (2011) é contra a utilização da teoria da agência (perspectiva que enfatiza que é assegurada a accountability minorando a assimetria de informações entre o principal e o agente), pois considera que esta possui uma noção minimalista de accountability ao concentrar o processo democrático na etapa eleitoral e conceber a política pelo mercado. “Não há uma concepção abrangente sem uma noção mais ampla de público, em que o problema da responsabilização não atente apenas para os custos da delegação, mas também para o processo democrático como um todo” (FILGUEIRAS, 2011, p. 73-74).