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A quadratura

No documento analuizanascimentodeassissouza (páginas 55-57)

CAPÍTULO 2 ELEMENTOS DO DIÁLOGO ENTRE O PENSADOR E O POETA

2.3 A quadratura

Vimos que Heidegger trabalha constantemente com quatro elementos: céu, terra, deuses e mortais. Ao que se forma com esses quatro elementos Heidegger dá o nome de Geviert (quadratura ou quadrado).

Já falamos aqui da essência dos semideuses e para tanto tivemos que trabalhar também a essência dos deuses e dos mortais. Os poetas são mortais que cantam os vestígios deixados pelos deuses que fugiram. Os poetas habitam perto da origem e respondem ao apelo dos deuses para que os vestígios, o ressoar do sagrado, possa ser transmitido ao povo. Os mortais comuns não têm como adentrar na proximidade com o sagrado sem a mediação dos poetas cantores. Vimos anteriormente que, para Heidegger, os homens comuns viram as costas para aquilo que não compreendem, para o sagrado como mistério.

Pois bem, o que Heidegger pensa com essa quadratura? Em A Origem da Obra de Arte, Heidegger (2002, p.44) diz que “àquilo em que a obra se retira e que lhe permite surgir diante neste retirar-se chamamos terra”.90 Terra e mundo são distintos e estão num confronto que é um combate. É nele que a verdade acontece como obra. Enquanto a terra é aquilo que abriga no encobrimento, o mundo é a “abertura que se abre das longas vias das decisões simples e essenciais do destino de um povo histórico”.91 O mundo é o horizonte onde as relações do homem com as coisas, com os outros homens e consigo mesmo são tecidas. As possibilidades de o homem se relacionar, tomar decisões ou se abster são abertas quando o mundo se revela como um acontecimento histórico.

Na conferência A Origem da Obra de Arte (1935), quando a especulação heideggeriana se avizinha da poesia de Hölderlin, o lugar em que o ser acontece deixa de ser o combate entre mundo e terra e passa a ser a quadratura de céu e terra, mortais e divinos. No ensaio intitulado A Coisa, fruto de uma conferência pronunciada em 1950, no qual é elaborada a noção de coisa, vemos de maneira mais clara o que o filósofo quer dizer com o termo Geviert.

Para Heidegger, há muito tempo o homem lida com as coisas sem pensá-las como coisas. Na modernidade, a distância entre os homens e as coisas aparentemente se encurtou. Com o avanço dos meios de comunicação de massa as notícias do outro lado do mundo chegam até nós numa velocidade espantosa. E este é apenas um dentre outros exemplos dessa

90 HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. In: ____. Caminhos de Floresta. Lisboa: Fundação

Calouste Gulbenkian, 2002. p. 44.

falsa proximidade do homem com as coisas do mundo. Isso produz uma proximidade ilusória entre o homem e as coisas e cria a sensação de que a proximidade das coisas se mede pela pouca distância entre nós e elas.

Distância e proximidade não podem ser medidas em metros. O que podemos encontrar com maior facilidade são as coisas que estão próximas a nós e não a proximidade. O ser das coisas e o ser da proximidade ainda não foram pensados pelo homem, mesmo ele lidando constantemente com as coisas que lhe são próximas.

O “ser coisa” da coisa não é um simples objeto da representação de um sujeito. O “ser coisa” da coisa também não é o material de que é feito a coisa. No texto, Heidegger usa uma jarra de barro como exemplo de coisa. O ser jarra da jarra não é sua instrumentalidade, e sim o que ela recolhe na quadratura de céu e terra, mortais e divinos.

Essas quatro palavras aparecem no vocabulário heideggeriano devido à sua aproximação da poesia de Hölderlin. Segundo Gianni Vattimo (1989, p.126), “estas palavras poéticas furtam-se a uma plena clarificação conceitual; mas o fato de serem palavras poéticas já não pode agora significar um menor peso teórico”92, já que, para Heidegger, a poesia é o lugar onde a verdade acontece de modo mais radical.

Esses quatro elementos, diz Heidegger (2001, p.156), são como direções ou pontos cardinais que, reunidos, unificam a coisa em suas diferenças. Essa unidade é dada pela proximidade que não suprime as diferenças, mas preserva cada um dos quatro elementos nessa aproximação. Dessa forma, a proximidade está preservada como aquilo que ela é, como o mais próximo.

Os quatro elementos são pensados em referência constante uns com os outros. No texto de A coisa, a terra aparece como aquela que dá sustentação, enquanto o céu é “a profundeza azul do éter”.93 Os imortais “são acenos dos mensageiros da divindade” 94 e os mortais são os homens, assim chamados porque podem morrer. Quando nos referimos a um dos elementos, de imediato pensamos nos outros três que formam o quadrado. A união que forma a quadratura preserva cada um dos elementos em sua essência sem suprimir-lhes a diferença.

Unindo-se por si mesmo uns com os outros, céu e terra, mortais e imortais pertencem, em conjunto, à simplicidade da quadratura de reunião. A seu modo, cada um dos quatro reflete e espelha de volta a vigência essencial dos outros. A seu modo, cada um reflete e espelha sua propriedade, dentro da simplicidade dos

92 VATTIMO, Gianni. Introdução a Heidegger. Lisboa: Edições 70, 1989. p. 126. 93

HEIDEGGER, Martin. A coisa. In: _____. Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 156.

quatro. Este refletir e espelhar não é e nem consiste em expor o reflexo de uma reprodução. Iluminando cada um dos quatro, o refletir e espelhar lhes apropria a própria vigência, na apropriação de uma unidade recíproca. 95

O homem, um dos elementos da quadratura, é pensado por Heidegger como o mortal e não mais como aquele que objetiva as coisas, que a tudo presentifica, inclusive o ser. Na quadratura, o homem se encontra como homem, encontra-se em casa. Estar em casa é estar no ser. O ser recolhe terra e céu, mortais e deuses na quadratura. O sagrado pertence a esse encontrar-se dos quatro elementos, a essa unidade que é a dimensão desde a qual os deuses se manifestam. Os deuses podem também ser deuses em fuga e diante dela provocar no poeta a experiência do luto sagrado.

No documento analuizanascimentodeassissouza (páginas 55-57)

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