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A querela da formação analítica dos homossexuais

CONTEMPORÂNEOS DAS ELABORAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE A(S) HOMOSSEXUALIDADE(S)

4.2 A querela da formação analítica dos homossexuais

Como anteriormente anunciado, a discussão em torno das homossexualidades ultrapassava a cena clínica e metapsicológica de Freud e se expandia para as políticas institucionais. Sobre isso, Lucas Bulamah (2016) nos conta que, ainda em 1921, Ernest Jones, então presidente da IPA, lança um questionamento acerca da legitimidade de homossexuais nas escolas de formação psicanalítica. Na ocasião, ele consulta, através de carta, Freud e Otto Rank sobre a candidatura de um médico homossexual assumido:

Os holandeses perguntaram-me algum tempo atrás sobre o quão apropriado seria aceitar como membro um médico que se sabia manifestamente homossexual. Aconselhei contra, e agora ouço [...] que o homem foi enquadrado e levado à prisão. Vocês acham que esse seria um parâmetro geral e seguro para agirmos? (JONES, 1921 apud BULAMAH, 2016, p. 14).

Ao que Freud e Rank respondem, também por carta:

Sua indagação, caro Ernest, a respeito da prospectiva qualidade de homossexuais como membros foi por nós considerada e discordamos de você. Com efeito, não podemos excluir tais pessoas sem outras razões suficientes, assim como não podemos concordar com suas perseguições legais. Sentimos que uma decisão em tais casos deve depender de um cuidadoso exame de outras qualidades do candidato. (RANK; FREUD, 1921 apud BULAMAH, 2016, p. 14).

Freud demonstra, com sua resposta, que suas convicções acerca da homossexualidade não se aplicavam apenas ao plano teórico, mas se estendiam mesmo ao movimento psicanalítico, tão caro a ele, diferentemente da atitude de alguns de seus contemporâneos. Freud não via razões para a homossexualidade ser um critério de exclusão das cadeiras de formação analítica da IPA, nem mesmo para a perseguição social sofrida pelos homossexuais.

Bulamah (2016) nos apresenta a contribuição da Sociedade de Berlim para essa discussão em uma carta co-assinada por Karl Abraham, Hanns Sachs e Max

Eitingon, posicionando-se criticamente acerca da possibilidade de formação de um candidato homossexual em sua Sociedade:

Nós não decidimos ainda sobre a questão de admitirmos psicanalistas homossexuais em nossa Sociedade, mas já dedicamos alguma reflexão a este problema. Em primeiro lugar, somos desfavoráveis a qualquer injúria ou crueldade contra qualquer pessoa. Todos nós tivemos a experiência de que homossexuais com um padrão aberto de comportamento somente nos acompanham em parte do caminho. Dado que a homossexualidade apareça em diversas formas como parte de uma neurose, acreditamos que ela deva ser analisada. Nossas tristes experiências aqui são Hirschfeld e Blüher. Vocês não podem imaginar o que o último fez a serviço de uma má compreensão da psicanálise. Toda possibilidade de analisar estas pessoas vai de encontro com a homossexualidade. Concordamos que somente deveríamos aceitar homossexuais em nosso quadro de membros quando eles tiverem outras qualidades a seu favor. (ABRAHAM; SACHS; EITINGON, 1921 apud BULAMAH, 2016, p. 85).

O que podemos perceber a partir da leitura dessa carta é uma tentativa clara, no início, de uma argumentação humanitária, em que pese que a violência contra os homossexuais não é defendida pelos autores. Questionamos primeiramente, contudo, se a própria recusa a ver nos homossexuais uma normalidade já não é por si só um tipo de violência. Além disso, tomam dois expoentes como ilustrativos de uma má psicanálise, como se eles representassem todos os analistas homossexuais. Freud alertou para o engessamento de um olhar universal sobre a homossexualidade, quando advertiu, em última carta circular com referência a essa querela:

Reconhecemos, nos argumentos contra a participação analítica de homossexuais, algo como uma diretriz. Mas temos que alertá-los quanto à transformação disso em uma lei, considerando os vários tipos de homossexualidade e os diferentes mecanismos que as causam. (RANK; FREUD, 1922 apud BULAMAH, 2016, p. 85).

Freud reconhece a variedade de mecanismos e de homossexualidades existentes e se posiciona politicamente de forma contrária ao uso da homossexualidade como critério de admissão. Na ocasião, manifesta sua opinião contrária a de Jones, mas, claramente, a decisão não está em suas mãos; dá seu parecer sem interferir ativamente. Prova disso é que, na contramão de seu posicionamento, os representantes da IPA criam uma regra não escrita acerca da não aceitação de homossexuais nos bancos de formação de suas instituições. Esse momento é várias vezes retomado por Roudinesco (2009; 2013; 2016) e detalhadamente discutido por Bulamah (2016), no seu livro História de

uma regra não escrita: A proscrição da homossexualidade masculina no movimento psicanalítico.

O nome de Abraham, a partir de sua função política no Instituto de Berlim, surge sempre como encampando a resistência à formação de analistas homossexuais sem que, contudo, suas teorizações sobre homossexualidade tenham sido muito extensas. Nos textos que tivemos acesso, suas teorias, explicações e origens para a homossexualidade se assemelham ou se aproximam bastante das apresentadas pelo próprio Freud. Talvez, sua discordância esteja nos encaminhamentos dados a seus destinos, especialmente em suas dimensões políticas e sociais, e na carta co-assinada por Sachs e Eitingon, que apresentamos anteriormente.

Defende-se que é através de seu argumento de parada no desenvolvimento libidinal que a IPA se vale para legitimar seus argumentos, o mesmo ocorre na Escola de Berlim, que rivalizava com a Escola de Viena, divergindo quanto a aceitar os homossexuais em suas escolas de formação analítica (CECCARELLI, 2013, PAOLIELLO, 2013; ROUDINESCO, 2009, 2013; ROUDINESCO; PLON, 1998).

Por conta desse episódio, alguns autores defendem que, ainda hoje, esse boicote aos homossexuais existe na IPA, seja de forma explícita, como argumentam Roudinesco e Plon (1998), que em seu dicionário afirmam que essa regra nunca foi abolida, ou como entende Quinet (JORGE; QUINET, 2013), que alega que esse boicote ainda se dá através de diversos procedimentos que vão da coação à indiferença dentro de instituições psicanalíticas.

Marques (2013) exemplifica ainda um tipo de instituição que vai além e propõe a cura da homossexualidade, a The National Association for Research and

Terapy of Homosexuality (NARTH), fundada por Charles Socarides, em 1992, sem

ligações com a IPA, mas formada por diversos membros da American Psychoanalytic

Association (APsaA), “[...] que afirmam serem capazes de modificar a ‘orientação

sexual’ das pessoas, com base na teoria psicanalítica” (MARQUES, 2013, p. 62, grifo da autora). Segundo a autora, o posicionamento oficial da NARTH é o de que a homossexualidade é um transtorno tratável, e de que o de seu fundador, Charles Socarides, é o de que não importa o grau de adaptação e funcionamento em outras áreas da vida, nas relações interpessoais, os homossexuais vão sempre ser severamente deficientes. Em 1995, o mesmo afirmara (SOCARIDES, 1995 apud Ceccarelli, 2013, p. 158):

O homossexual pode parecer não ser doente, exceto na hipocrisia de sua vida sexual. Certos homossexuais muito perturbados não têm angústia, pois estão constantemente engajados em relações sexuais com pessoas do mesmo sexo – o que alivia sua ansiedade.

Tais discussões mostram que a questão da formação analítica se apresenta como um elemento de preocupação dos psicanalistas. Levando isso em consideração, lemos seus autores com a ideia de que não é somente de teoria que se trata, mas de suas reverberações ético-político-sociais. No próximo tópico, exploraremos novos textos de Freud e de outros psicanalistas, especialmente Abraham, com questões relativas ao narcisismo, e Jones, que vai discorrer sobre a sexualidade feminina.