• Nenhum resultado encontrado

A questão da crença em Kant

No documento Crer e saber no criticismo de Kant (páginas 31-35)

A questão do crer na obra de Kant, embora seja abordada de forma breve, está repleta de controversas delicadas e polêmicas, a ponto de muitos dos seus mais ilustres estudiosos e comentadores simplesmente se recusarem a abordá-la. José Luiz Berlanga, por exemplo, no tocante à questão da racionalidade crítica em Kant, afirma que não vale a pena discorrer a respeito do crer e que, em sua pesquisa, abordaria somente “os aspectos mais significativos da práxis humana; a cognoscitiva, a valorativa, ética, estética, política, jurídica, histórica cultural. ” (BERLANGA, 1987, p.15, tradução nossa).16

Esta abordagem pretende demonstrar a inutilidade de se tratar a questão do crer no sistema filosófico de Kant. Entretanto, a questão torna-se relevante quando analisada em diálogo com o saber. Ela tem sua fundamentação exatamente neste aspecto, pois “é herdeira dos debates entre fé e saber.” (CAYGILL, 2000, p.144). Deste modo, para Kant, a liberdade, a imortalidade da alma e a existência de Deus são postulados da razão prática-pura, pois segundo Höffe:

A imortalidade da alma e Deus não possuem para Kant uma existência teórica, mas prática. Sua existência não é provada por uma possível intuição, mas pela realidade da lei moral, ele é coagido pela razão a crer na imortalidade da alma e na existência de Deus. Por isso seria falso considerar os postulados, no sentido de um pragmatismo, como ficções úteis. Para Kant, a imortalidade e Deus são objetos efetivos e, contudo, não do mundo empírico, mas do mundo moral. (HÖFFE, 2005, p.281).

15 Sobre a fé, Edmilson Menezes compreende que ela “responde a uma necessidade da razão de se superar, de sair dela própria, ou antes mesmo de se estender sobre um outro plano porque ela não pode encontrar nela própria, como razão especulativa, uma garantia suficiente para a realização de sua exigência, enquanto razão prática.” (MENEZES, 2001, p.120).

16los aspectos más significativos de lapráxis humana, la cognitiva, laevaluación, ético, estético, político, jurídico, histórico, cultural.

28

Entretanto, os postulados representam os três objetos do crer sem os quais seria impossível pensar o sistema completo do pensamento kantiano.

É mediante a compreensão dessa trilogia, uma vez que o filósofo apresenta uma das suas afirmações basilares: “por isso tive que suprimir o saber para encontrar lugar para a crença.” (KANT, 2002, p.36). Assim, fica bastante claro que, para Kant, a questão do crer não é de todo irrelevante, sendo que ele próprio propõe revisar o dito conceito, ainda que lhe conferindo um sentido moral e específico, como se verá a seguir.

Um dos pontos críticos desta análise é o fato de que, tanto no que diz respeito a presente questão, assim como na abordagem de outros conceitos relevantes na sua obra, ele desentoa da compreensão clássica dos termos e cria um modo próprio de interpretação, atribuindo-lhes outro universo conceitual17. Kant repensa a função da própria filosofia, conforme afirma Almeida:

Kant propôs [...] a realização na Filosofia de uma “revolução no modo de pensar” comparável à que pôs a Matemática e a Física no caminho seguro da Ciência e capaz de dar uma chance de êxito às tentativas da Filosofia de “determinar algo a priori através de conceitos”. Essa revolução consiste, nas palavras de Kant, em partir da hipótese de que não é nosso conhecimento que se orienta pelos objetos, mas ao contrário são os objetos que se orientam por nosso conhecimento, ou por outras, consiste em considerar nossos conceitos, não como determinados pelos objetos, isto é, como representação de algo dado de antemão e identificável independentemente de conceitos, mas, ao contrário, como determinados pelos objetos mesmos de nosso conhecimento, vale dizer, como aquilo que torna primeiro possível dizer qual e o que é, em cada caso, o objeto de nosso conhecimento. (ALMEIDA, 1997, p.55).

No entanto, a inovação kantiana é ainda mais abrangente. Segundo Höffe, a filosofia de Kant revolucionou o modo tradicional de pensar e conseguiu colocar a filosofia sobre um fundamento definitivamente seguro. (HÖFFE, 2005).

Todavia, não pode haver dúvida razoável de que, no Criticismo kantiano, o crer se encontra entre essas inovações e promove a diferença em relação ao que era comum averiguar até o período kantiano. “Kant mostra que a alternativa

17 Vittorio Hösle afirma que “não pode haver dúvida razoável de que a filosofia prática de Kant representa um marco na história da filosofia e de que sua importância só pode ser comparada à de Sócrates. O pensamento de Kant constitui uma revolução copernicana não só em termos teóricos, mas também práticos. Todas as tentativas heterônomas de fundamentar a ética em algo externo, em tradições, na vontade de Deus, na revelação, em necessidades, são rejeitadas; a ética é fundamentada na autonomia do sujeito.” (HÖSLE, 2003, p. 99).

29

“autonomia ou fé em Deus‟ é falsa [...] em direção oposta à representação comum, ela (a fé) não forma a base, mas bem a consequência da moral.” (HÖFFE, 2005, p.280). O Criticismo comprova que o filósofo desenvolve um pensamento de vanguarda. Vale lembrar, contudo, que, para ele, “não há diversas religiões, mas diversas formas de fé na divina revelação e nas suas formas estatutárias, que não podem derivar da razão; em outras palavras, há diversas formas de representação sensível da vontade divina.” (GALEFFI, 1995, p.273).

Por outro lado, os fiéis devem prestar o verdadeiro culto como súditos e também como cidadãos do seu reino, vivendo sob leis da liberdade. Uma vez que o reino é invisível, o culto deve sê-lo também, constituindo aquilo que é nomeado como culto do coração.

Como precursor de uma série de inovações conceituais, Kant faz uma releitura do crer e proporciona uma revolução ao dar um novo sentido ao conceito. Uma vez que, segundo Barata-moura:

É evidente que toda a economia e dinâmica (no que diz respeito ao crer) se inscrevem, globalmente, naquela compreensão kantiana das Luzes, expressa uma dezena de anos antes, como saída do homem de sua menoridade culposa. (BARATA-MOURA, 1994, p.69).

A necessidade sistemática kantiana, que o levou a englobar, em última instância, a própria possibilidade do crer, o separa tanto do Iluminismo que o contrapunha a razão quanto da religião tradicional, que também executava esta cisão, mas por motivos diversos.

Logo após a publicação de A religião nos limites da simples razão, em 1793, “Kant recebeu uma ordem do gabinete de Frederico Guilherme II, na qual era repreendido por seu ‘mau uso da filosofia’ para distorcer e menosprezar muitos dos ensinamentos cardeais e básicos das Sagradas Escrituras e do Cristianismo”. (CAYGILL, 2000, p.20). Ordem acatada até a morte do imperador18.

O contexto histórico em que o filósofo viveu e elaborou a sua teoria filosófica – a Europa do século XVIII – estava, ainda, sob as influências religiosas do período

18 Em relação a essa repressão sofrida por Kant, Marco Antônio explica mais detalhadamente a questão: Kant teve problemas com a censura, ativa após a morte de Frederico II, rei da Prússia, a respeito da publicação de sua obra sobre a religião, cuja primeira parte versa sobre o mal radical. Essa primeira parte foi impressa, mas as partes seguintes serão censuradas. Kant, contudo, consegue publicar a obra, mas será advertido por decreto real assinado pelo ministro Wöllner, que o obrigava a abster-se de tratar publicamente destes assuntos. (ZINGANO, 1989, p.200).

30

medieval, onde se postulava a forte presença do protestantismo vigente que, por sua vez, se implantara na Alemanha do início da modernidade.

Entretanto, no prefácio da primeira edição da Crítica da razão pura, Kant mostrou que, mesmo mediante a forte presença do caráter religioso na cultura da sua época, aquele período não podia ser definido como uma época acrítica. Ao contrário, surgiam diversas considerações com posturas críticas e questionadoras à religião:

[...] a época em que vivemos é a época da crítica, à qual tudo tem de submeter-se. A religião, pela sua santidade e a legislação, pela sua majestade, querem da mesma forma desligar-se dela. Contra elas levantam então justificadas suspeitas e não podem aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a quem pode sustentar. (KANT, 2002, p.17).

Esta posição demonstra o porquê de Kant ter encontrado tanta dificuldade, pois mesmo tratando seriamente a possibilidade do crer em sua filosofia, reivindica a autonomia das diferentes áreas à independência da religião.

A autonomia Kantiana é proposta tanto para a metafísica quanto para a crítica filosófica em geral. Nesta linha de reflexão, Caygill lembra que:

A época crítica requer uma filosofia crítica, a que pressupõe, na verdade exige a liberdade para examinar e criticar as instituições da Igreja e do Estado. Kant apresentou [...] em seu ensaio “Resposta à pergunta: ‘O que é Esclarecimento?’”, o que ele considerou serem as condições necessárias para tal filosofia. Aí, a “condição fundamental para a possibilidade” de uma época da crítica é descrita como a “liberdade para fazermos uso público da nossa razão em todos os assuntos.” (CAYGILL, 2000, p.20).

O pensamento crítico e as novas tendências filosóficas propuseram a reelaboração de conceitos e inauguraram uma nova perspectiva para o direcionamento do caminho a ser trilhado pela filosofia. Nesta nova proposta, ocorreu a incompatibilização do conceito de Deus da época medieval para que se criasse uma nova possibilidade de compreensão.

Ao tratar da religião19, Kant estabelece novos moldes que fogem aos paradigmas clássicos da compreensão. “A religião pode considerar-se – na

19Segundo Galeffi, “do problema religioso Kant se ocupa, direta ou indiretamente, mesmo se nem sempre de maneira profunda e sistemática, em muitas das suas obras, nas pré-críticas e nas do período crítico, nas principais e nas secundárias; mas onde ele enfrentou profundamente a questão foi em A religião dentro dos limites da pura razão, de 1793.” (GALEFI, 1995, p.271).

31

especulação kantiana -, como parte integrante da filosofia prática, e acerca do seu valor prático, não pode, de fato, surgir dúvida, dada a estreita relação que tem com a moral.” (GALEFFI, 1995, p.271). A sua abordagem mais se aproxima dos filósofos deístas ingleses, principalmente pelo fato de estabelecer um exame racional da religião, mas se diferencia dos mesmos quando, por um lado, rejeita as instituições confessionais, mas, por outro, reconhece a função dos símbolos provisórios, mesmo que subordinados aos princípios racionais práticos. Estes últimos constituem a essência da religião.

No documento Crer e saber no criticismo de Kant (páginas 31-35)