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PARTE I: Quadro teórico de referência

2. CONTRIBUIÇÕES DO PENSAMENTO HABERMASIANO

2.2. A questão do entendimento

A teoria do agir comunicativo ancora-se em pressupostos da linguagem que sustentam o ato de falar. Giannoti (1991), no trabalho Habermas: mão e contramão, apresenta uma visão desta teoria do ponto de vista da filosofia da linguagem. Giannotti (1991) começa a apresentar suas ideias argumentando que o ato de falar é um ato performático, sendo os atos de fala passíveis de serem divididos em dois: locucionários e ilocucionários. O primeiro refere-se aos atos constatativos, carregados de sentido e imbuídos da dicotomia verdadeiro e falso. O segundo liga-se, essencialmente, aos atos performativos, com bom ou mau êxito27 e com as instituições sociais. Os atos ilocucionários integram a função declarativa ou apofânica28, sendo que todo ato apofânico pode ser tido como um ato ilocucionário (GIANNOTTI, 1991).

Em Habermas, há a tese de que um conhecimento proposicional, ou seja, de que uma proposição, ao ser enunciada, gera a expressão de opinião de ambos os integrantes do ato comunicativo, embora essa opinião possa vir a ser expressa de formas diferentes. O que se faz necessário para que a comunicação realmente ocorra é o fato de que a expressão do conhecimento compartilhado pelas partes deve estar sujeita a três pretensões de validade: a verdade, quando representa um estado de coisas; a justificação ou legitimidade, quando se argui sua correção, enquanto ato de comunicação social; e a autenticidade, quando expressa intenções subjetivas.

Ao recorrer ao conceito de pretensão de validade de uma proposição, Habermas está salientando que a linguagem, além de suas funções semânticas, ainda

                                                                                                               

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Êxito que depende de um consenso intersubjetivo (GIANNOTTI, 1991). 28

cumpre funções pragmáticas fundamentais para a constituição do próprio sentido das proposições. Com isto pretende abandonar o paradigma clássico da filosofia da linguagem que se fundava no predomínio da função declarativa [...] (GIANNOTTI, 1991, p.7 a 23).

A teoria do agir comunicativo instituiria, portanto, que a linguagem, em sua função de buscar bom entendimento intersubjetivo, regularia os dois usos acima apresentados: o ilocutório e o locutório. Desse modo, os agentes comunicativos estariam diante de uma escolha, na qual,

[...] ou se abandona a suposição de que uma potencial forma ilocutória da proposição pode tornar-se explícita graças a uma frase proposicional performativa, sem que haja mudança de sentido; ou se abandona a suposição semântica referencial de que a significação duma proposição, inclusive das frases proposicionais performativas, deve consistir em seu possível valor de verdade como representação dum estado de coisa (GIANNOTTI, 1991 p.7 a 23).

Essa escolha se dá com base em uma diferenciação intuitiva do ato de fala, entre proposição e afirmação. Contudo, somente a afirmação pode explicitar o caráter autorreflexivo do sujeito à procura do conhecimento, pois apenas ela possibilita vincular à proposição uma pretensão de validade. Em outras palavras, “somente o ato de afirmar uma proposição traz à luz aquela reflexão obscura que está na base de toda e qualquer sentença” (GIANNOTTI, 1991).

Traçando um paralelo com o objeto aqui em análise, o pedido de acesso à informação pode elucidar essa questão. Supondo que o falante seja a Administração Pública e considerando que a Lei de Acesso à Informação seja um conjunto enunciativo de afirmações, o cidadão, ao tomar conhecimento da norma, toma conhecimento também da possibilidade de solicitação de acesso e da potencialidade da concessão desse acesso. Contudo, este saber é definido por um espaço de indefinição colocado entre os sujeitos comunicativos (cidadão e Estado), sendo, portanto, necessário seguir uma regra para determinar até que ponto é possível distinguir os diferentes interesses – ter direito ou não ao acesso.

A cada solicitação os pólos enunciativos se invertem – ora o Estado enuncia a opinião acerca do conhecimento, ora o cidadão o faz –, levando-os, como sujeitos falantes, à reflexão acerca do que pode ou não ser conhecido, situação que pode levar ao consenso. Ou seja, o estímulo a essa relação dialógica entre os dois pólos de discussão, ainda que tenham interesses/opiniões distintas, tende a aprofundar as possibilidades de consenso. “Existe sempre entre os indivíduos que seguem uma regra um espaço de indefinição; só́ os

resultados mostram o bom entendimento e até onde a regra é consenso” (GIANNOTTI, 1991, p.7 a 23). Isso indica que, antes de se alcançar consenso, ou entendimento entre as partes conflitantes, um acordo prático que resulta no equilíbrio de interesses, opiniões ou juízos, o que existe é uma indefinição, potencialmente geradora de conflitos desgastantes e de apatia política.

Habermas pressupõe que o entendimento somente é alcançado quando as pessoas de fato o perseguem, ou seja, quando há predisposição. Ocorre, porém, que isto nem sempre acontece quando os indivíduos são compelidos a seguir uma regra institucionalizada. Além disso, argumenta Giannotti (1991), o entendimento de algo acaba por, paradoxalmente, descartar todos os demais entendimentos possíveis de serem alcançados. Trata-se, assim, de escolher o melhor entendimento com base, por exemplo, em regramentos ou nos melhores regramentos, descartando todos os demais.

A questão colocada é que Habermas considera o entendimento e o acordo como um dogma constitutivo da ideia reguladora que é a linguagem. Trata-se de um tipo de discurso consciente de si mesmo ou, como diz Giannotti (1991), “uma radicalização” para operar a sua tese. Por isso, no pensamento habermasiano, o entendimento nasce quando os sujeitos o procuram. É como se eles não visassem ao sucesso, ao fim, mas sim a disposição ao processo.

Na ação comunicativa, os agentes perseguem os fins individuais sob a condição de que seus planos de ação possam se conciliar mutuamente, com base em definições. Por isso, as definições situacionais devem ser componentes essenciais das atividades interpretativas da ação comunicativa (HABERMAS, 2012).

Giannotti alerta para o fato de que Habermas não pretendia montar uma teoria de todos os atos de linguagem, mas unicamente daqueles que obedecem ao critério da comunicabilidade. Seu ponto de partida constitui-se da definição de que o agir comunicativo é um tipo de interação na qual os participantes ajustam mutuamente seus planos individuais de ação e por isso perseguem sem reservas seus fins ilocucionários.

Sendo um ato ilocucionário puro, o ato comunicativo como tal reporta-se a vínculos sociais prévios relevantes para a instituição. Ao conceder o acesso a dada informação, a autarquia, por exemplo, faz-se remeter, a partir do momento que é uma entidade de representação legítima, a toda uma instituição denominada Estado. Portanto, a percepção do sujeito acerca de um acesso concedido ou de um acesso negado não é de um episódio isolado, mas de uma permissão ou não permissão institucional.

Isso justifica o fato de Habermas recorrer à opinião que, no agir comunicativo, expressa o conhecimento do sujeito. “O que está tentando é ampliar o sentido de ‘entender’, a fim de que o contexto institucional seja incluído no sentido do ato comunicativo” (GIANNOTTI, 1991). Logo, não se entende propriamente o que foi dito, mas a opinião que expressa. O que se tem é que a disponibilidade do sujeito para o entendimento passa a fazer parte do significado de uma proposição. Isso explica o fato de que a pergunta, pelo tipo de sua pretensão de validade, é a primeira preocupação do ouvinte, pois é ela que garante ou não a intepretação e, consequentemente, o entendimento. Sem aprofundar-se nas distinções da lógica filosófica, Habermas parte do pressuposto de que a opinião, sendo um ato de consciência, transfere-se para a linguagem, considerando a racionalidade como suficiente para explicar como as definições se armam em um sistema de regras.

No entanto, para seguir uma regra não é suficiente que os atores façam acordos a respeito das definições, pois enquanto não souberem que todos estão entendendo as palavras da mesma maneira, não sabem ainda se empregarão as definições do mesmo modo. Além das definições consentidas, ainda é preciso um acordo sobre seu uso (GIANNOTTI, 1991, p.7 a 23).

Porém, com base na própria teoria habermasiana, importa aqui menos que todos entendam as “palavras da mesma forma”, mas que entendimentos distintos gerados com base em uma mesma opinião gerem reflexão. No caso em análise, por ser constrangido a isso, o Estado já não pode mais furtar-se de pôr-se disponível ao entendimento. Resta saber até que ponto essa imposição refletirá numa disponibilidade efetiva, ou em boa vontade, por parte de seus organismos para o diálogo com o cidadão. Apresentada a importância da dimensão do entendimento em Habermas, passar-se-á à discussão da racionalidade, uma das categorias centrais (se não a mais central) da teoria de Habermas, só que sob um enfoque organizacional, como se verá a seguir.

2.3. Racionalidade instrumental versus racionalidade substantiva e a