• Nenhum resultado encontrado

4. O “GRUPO DE ADESÃO”

4.2. A questão do sujeito de direitos

As narrativas aqui registradas visam traduzir outra temática que se apresentou como relevante nas falas dos sujeitos durante as reuniões do grupo de adesão. É a temática do “sujeito de direitos” articulada pelas ong´s em conjunto com o programa governamental de DST/AIDS.

Na maioria das reuniões, as pautas giravam em torno de eventos e programações das PVHA e de reivindicações pela qualidade da assistência. Foi outro importante impacto sobre o pesquisador. Um grupo de adesão cuja matéria, formalmente prevista, seria a experiência do viver com HIV/AIDS com seus fantasmas de morte, de rejeição e exclusão, estava aparentemente ausente - o que não quer dizer que não exista e que nem se relacione conforme será discutido na análise - sendo substituída por questões de demanda socioeconômica e efetivação de direitos previdenciários e assistenciais articulados por movimentos sociais.

A predominância de um sujeito de necessidades sociais e demandas políticas em um contexto de um grupo cuja razão de ser é terapêutica pareceu, a princípio, impertinente para os membros em geral, inclusive para os próprios militantes. Em uma entrevista com a gestão do programa municipal de DST´s/AIDS, o mesmo se mostrou preocupado com a insistência dessa politização e foi enfático quanto à função do grupo:

“O grupo de adesão é importante, embora se confunda as coisas lá, e façam um espaço da rede. O grupo de adesão começou como uma roda de conversa de ONG´s e depois montamos um grupo de adesão. Misturam as coisas. Tem que separar, tem gente novata que chega lá e que não se interessa com questões políticas. Tem gente que não vai ao médico. São mais de 2000 cadastrados e só tem 40, é muito pouco. Se deixá-los trazerem, vai ficar nessa questão política”.

Era notável a insistência dessa pauta politizada ao mesmo tempo que o reconhecimento unânime de que a reunião de adesão podia ser mais “leve, tranquila e terapêutica”.

Em uma das reuniões que participei, esse impasse (política x terapia) ganhou proporções dramáticas, com desgastes e discussões acaloradas. A reunião se tornou um campo de batalha em nome de quem tem ou não tem legitimidade:

Membro: “A pauta de hoje é sobre a liberação das casas e a questão dos leitos no hospital”.

Técnica: “Virá um rapaz de uma ONG falar sobre o andamento da questão dos leitos hospitalares e das casas”.

Representante da ONG: “Faço parte de um movimento chamado x a favor das PVHA. Acionamos o ministério público que já providenciou uma audiência com a promotora e todos estão convidados a participar da audiência e do movimento. Não adianta ficar só na conversa, as coisas tem que ser escritas, registradas e acionado o ministério público”.

Para o representante era necessário outro tipo de ativismo, um ativismo mais instrumentalizado juridicamente, pelo qual tudo possa ser devidamente registrado, documentado e encaminhado para a instância devida, e assim fazer valer as demandas das pessoas afetadas pela doença.

Os efeitos dessa fala, sentida por alguns membros como deslegitimação de seu lugar e para outros como inconveniência diante de um espaço terapêutico, foram imediatos e mobilizadores:

Membro: “Aqui não é lugar de política, e sim para lidar com nossas angústias. Essas coisas podem ser discutidas em outro espaço. Não quero ser massa de manobra de governo”.

Membro: “Tem gente que vive com AIDS e tem gente que vive da AIDS”. O representante da ONG não era “pessoa que vive com HIV/AIDS”, não tinha “um vírus correndo na veia”.

Membro novato: “Eu só queria conhecer pessoas da mesma condição que a minha, que eu não conheço. Não tenho uma boa impressão do que está acontecendo aqui. Tem pouco tempo que fui diagnosticado e me sinto mal com isso tudo. Olho para o espelho e digo: Você tem AIDS”. Ele não apareceu mais no grupo até a última reunião a qual participei.

Membro – “Isso é uma fase por causa do impacto do diagnóstico, mas isso vai passar e você vai superar”.

Membro - “Não sou apenas camisinha e comprimidos. Vou fazer um protesto e encher a camisinha de comprimidos”.

Alguns sujeitos da pesquisa, técnicos e PVHA, relataram a discriminação por quem eles menos esperavam: profissionais de saúde que chegam a distinguir, por exemplo, doentes diabéticos e outras doenças crônicas como “aqueles que podem morrer” e os doentes de AIDS como “aqueles que vão morrer”.

Uma mistura de depoimentos pessoais e questões políticas entraram em cena nessa reunião. Em uma entrevista individual com uma PVHA, pedi pra ela dizer o que ela achava da política do governo, no gancho da discussão: “A gente precisa e não precisa do Estado. A gente é morto-vivo, zumbi para a sociedade e para o governo. Deveria ter uma pessoa como a gente na gestão, porque só assim haveria uma verdadeira preocupação com a nossa condição. Fazem as coisas, mas se não tiver no pé fazem como querem e não como é do interesse da gente”.

A liberação das casas para as PVHA é uma reivindicação antiga, de mais de sete anos, e que ainda não foi plenamente cumprida. No momento está em processo de substituição do programa ao qual estava vinculado para um programa de habitação do governo federal chamado “Minha casa, Minha vida” articulada à secretaria municipal de assistência social como uma ação de inclusão social das PVHA.

Para as PVHA não se nega a importância da mobilização política até como forma de reconhecimento social e conquista de direitos, ou seja, como forma do sujeito se impor em relação à estigmatização como forma de segregação social e não-aceitação, nas entrelinhas do cotidiano, e mesmo da discriminação efetiva que muitos já “sentiram na pele”:

Membro: “Nem todos estão preparados para ficar na militância. A gente participa das reuniões com os gestores há muito tempo e ouve coisas do tipo: “Essas PVHA só sabem demandar. Se for alguém que não esteja preparado vai desabar com uma coisa dessa”.

Membro: “Às vezes parece que nós do movimento estamos substituindo o papel que é do Estado”.

Para alguns técnicos e gestores, a força política depende do grau de exposição dos sujeitos. Ou seja, para mudar o quadro de falta de reconhecimento político e pobreza de conquistas em relação a outros estados (em alguns estados é garantido o passe livre para PVHA, por exemplo) é necessário “mostrar a cara”. Em matérias de TV, por exemplo, PVHA dão entrevistas sobre inclusão social e combate à discriminação sem mostrar a face o que para algumas pessoas que trabalham com a questão da AIDS pode significar um retrocesso.

A presença desse discurso da representação política e efetivação de direitos se mostrava como insistência, como algo que dava uma identidade mas que se constituía como fardo, como se outra coisa quisesse se inscrever de alguma forma justamente porque ainda reclamava existência. E paralela a essa retórica política, aparece a demanda terapêutica das PVHA, por uma concepção de grupo mais amistosa, leve e próxima da experiência de cada um.

De qualquer forma tal era a situação do grupo com que me deparei: em busca de certa estabilidade no seu funcionamento, demandando um funcionamento mais terapêutico e menos cansativo, mas sem deixar de lado o debate e a reivindicação de questões referentes a seus direitos como sujeitos que vivem com HIV/AIDS. Um grupo cujas pautas e trocas de experiências poucas vezes se referiam ao estar doente de HIV/AIDS, que expunha um descontentamento geral da sua excessiva politização, mas também um grupo que estava ali junto, mesmo descontente.