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A questão do tempo e espaço na obra

2 PENSANDO TRUISMES

2.5 A questão do tempo e espaço na obra

Ao longo da narrativa, percebe-se a menção de lugares pontuais: o clube Aqualand, a casa de Honoré, a perfumaria, a clínica de abortos, a casa do marabu, o parque da cidade, os esgotos da cidade, o porão de uma igreja, um hotel, o local onde ocorre a orgia de virada de século, a casa do Yvan, a casa de sua mãe, o chiqueiro, a floresta, entre outros. O empuxe para a mudança de lugares da narrativa – que possuem importância secundária – são os estados físicos e mentais da personagem: algumas vezes, procurando por sexo, frequenta

65 lugares onde possa encontrá-lo, outras, buscando abrigo, encaminha-se para locais mais protegidos.

Pondera-se que a metamorfose é alimentada pelo sexo, assim, o surgimento de características suínas a leva para diferentes lugares e não o contrário. Ela não é fruto do ambiente –, desse modo, optou-se, neste estudo, por um delineamento espacial a partir do corpo da protagonista, uma vez que serão as mudanças no corpo e na mente dela que a levarão para locais diferentes durante a sua narrativa.

No romance, a personagem oscila o tempo todo entre sua forma humana e animal, pois há a impossibilidade de existência concomitante entre o físico da mulher e o físico da porca. Salienta-se que, no cerne deste ser duplo, a consciência nunca se degenera por mais entregue que ela esteja ao seu lado porcino.

Considerando, então, que o aparecimento de uma figura e de um corpo inibe o surgimento da outra, pode-se pensar que sua mente funciona como espaço fronteiriço e, por consequência, seu corpo, pois ele carrega a mente. Trata-se de uma fronteira porque sugere a noção de separação entre os perfis físicos, ao mesmo tempo em que se estabelece como o lugar único e necessário (espaço de contato) para a manifestação das duas identidades. Dessa maneira, para embasar a ideia de ―corpo como fronteira‖, buscou-se a crítica de Ozíris Borges Filhos, disponível no artigo A questão da fronteira na construção do espaço da obra literária (2008), na qual o autor discute a noção de fronteira no texto literário e, mais relevante para este trabalho, os conceitos de penetrabilidade e impenetrabilidade de espaços fronteiriços em um contexto ficcional.

De acordo à afirmação de Iuri Lotman (1978, p. 372) citada por Ozíris Borges Filho:

um traço topológico muito importante é a fronteira. A fronteira divide todo o espaço do texto em dois subespaços, que não se tornam a dividir mutuamente. A sua propriedade fundamental é a impenetrabilidade. O modo como o texto é dividido pela sua fronteira constitui uma das suas características essenciais. Isso pode ser uma divisão em ―seus‖ e alheios, vivos e mortos, pobres e ricos. O importante está noutro aspecto: a fronteira que divide um espaço em duas partes deve ser impenetrável e a estrutura interna de cada subespaço, diferente.

Embora seja compreensível que o conceito de Iuri Lotman é aplicável ao espaço textual, a citação acima apresenta elementos sobre fronteiras que permitem analisar o corpo da protagonista. Nesse sentido, o corpo dela obedece à noção de fronteira, uma vez que é subdivido em dois subespaços: o suíno e o humano, sendo que esses conservam características peculiares de cada uma das espécies por corresponderem a mundos diferentes, com estruturas

66 externas, internas e funcionamentos divergentes. Enquanto humana, ela tem o aspecto, os hábitos, os sentimentos e os desejos específicos de ser humano, já na forma animal, o perfil humano não é, muitas vezes, reconhecível pelo físico e pela brutalidade.

A questão da penetrabilidade e da impenetrabilidade deve ser pensada de acordo com o momento narrativo. Quando os primeiros sintomas da metamorfose recaem sobre seu perfil humano, pode-se dizer que a fronteira é penetrável, pois está sendo invadida pela porca, isto significa que a mente não possui o controle sob o corpo. Em contrapartida, uma vez que está totalmente metamorfoseada e domina as oscilações de porca a humana e humana a porca, a mente determina a existência de um corpo ou de outro, portanto, a fronteira é impenetrável: ela se transforma em humano somente quando quer escrever, caso contrário, protege-se no perfil suíno – a mente, neste caso, domina as situações.

Quanto ao tempo narratológico, desde a primeira passagem, a protagonista evidencia que o fenômeno pertence ao passado, portanto, a narrativa será baseada em lembranças lineares.

Ao retomar os acontecimentos anteriores a seu estado atual de porca, observa-se que a menção pontual do tempo é desconsiderada, sendo o surgimento de mudanças físicas e psicológicas que delineia o correr temporal progressivo da história, denotando prioridade, por parte da narradora, em expor sua metamorfose a partir do espaço, o seu próprio corpo, e não do tempo cronológico. Julga-se que isso possa ser reflexo da situação em que se encontra: exilada em uma floresta, tendo contato somente com animais, ela abdicou da convenção temporal humana, tais como o relógio e o calendário. Somente a natureza, e mais especificamente o sol, mostra a passagem do tempo e regula o ritmo animal, por consequência, refletem na ausência de preocupação com marcas temporais.

Com isso em mente, recupera-se o que Moisés Maussad fala sobre os tipos de tempo possíveis de uma narrativa. Para esta dissertação a definição de tempo psicológico é a mais importante, pois toca Truismes:

É que o tempo psicológico se opõe frontalmente ao outro [histórico]: como o próprio adjetivo ―psicológico‖ sugere, ainda na mais corriqueira de suas conotações, essa forma de tempo aborrece ou ignora a marcação do relógio. Tempo interior, imerso no labirinto mental de cada um, cronometrado pelas sensações, idéias, pensamentos, pelas vivências, em suma, que, como sabemos, não têm idade: pertence à experiência universal, repetida diariamente, saber que não significa nada, em última análise, afirmar que determinada sensação ocorreu há dez anos, vinte dias, etc. A consciência e as convenções impõem uma ordem externa aos fatos, obrigando-nos a rotulá-los com data marcada, quando sabemos que a verdade psicológica, mesmo para nós próprios, é outra: tudo quanto sentimos, ficou arquivado num universo sem limites ou, quando muito, circular. E as sensações vão-se acumulando sem cronologia: todas presentes, todas de hoje, bastando o ato de recordá-las para o

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confirmar. E se as rememoramos numa ordem é ainda em nome de pressupostos exteriores, subordinados à consciência social. (MAUSSAD, 1994, p. 107, grifo do autor)

Desse modo, determina-se que o tempo da narrativa é psicológico, por não estar restrito a mensurações precisas, mas, sim, registrado de acordo ao interior da protagonista, ao tempo vivido por ela.