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A questão do livro didático na sala de aula de língua portuguesa

CAPÍTULO 5 A CIÊNCIA LINGÜÍSTICA E O COTIDIANO DA SALA DE

5.2. A questão do livro didático na sala de aula de língua portuguesa

Uma reflexão que se propõe a tratar sobre ensino de Língua Portuguesa não pode deixar de lado a questão do livro didático. Essa relação de proximidade entre ensino de Língua Portuguesa e livro didático dá-se, principalmente, porque ele surge para materializar-se como um suporte para o professor em seu exercício docente. Ou seja, o livro didático tem o papel de mediar o conhecimento na área de Língua Portuguesa, sendo esse um material de ensino, de apoio pedagógico ao fazer didático do professor.

No entanto, a discussão sobre o livro didático não se encerra nesse ponto. Ao contrário, reflexões tanto nos meios acadêmicos quanto educacionais expressam posições que colocam o livro didático como elemento desencadeador das dificuldades constatadas no ensino de Língua Portuguesa. Paradoxalmente, o instrumento então

analisado como facilitador do processo de ensino-aprendizagem passa a ser considerado como inadequado para essa tarefa.

As reflexões que se somam ao segundo aspecto, ou seja, livro didático como instrumento inadequado, colocam em evidência o caráter autoritário do autor do livro ao selecionar textos e apresentar sugestões metodológicas e exercícios (com respostas prontas no manual do professor). Esse caráter parece imobilizar as ações do professor, vez que as tomadas de decisão pertinentes ao movimento de sala de aula já foram previamente definidas pelo livro. Esse lado da questão explora a redução do papel do professor no desenvolvimento da docência, isto é, reduz a sua ação enquanto orientador de aprendizagem. O outro lado focaliza o aluno. Nessa extremidade, o usuário do livro defronta-se com o material didático “escolhido” pelo professor. Esse procedimento, nas palavras de Savioli (1997), significa que ao aluno

(...) impõem-lhe um instrumento de trabalho que não responde às suas reais necessidades de aprendizado e que, por conseqüência, não o habilita a ganhar um lugar de participação ativa na vida social, deixando-o à margem do processo decisório, sem competência para administrar autonomamente sua própria vida. (p. 115)

Nesse cenário de paradoxos, há outro aspecto a considerar. Esse instrumento idealizado para auxiliar a ação docente e, por sua vez, ser uma ponte entre o usuário e o conhecimento, vê-se transformado em ferramenta do mercado, em uma mercadoria em que, muitas vezes, não interessa a qualidade de sua produção, mas sim o lucro que ele pode significar para quem o produz e o distribui no ambiente escolar.

Considerados globalmente, esses aspectos colocam em evidência que a temática livro didático interfere no desenvolvimento da sala de aula. E, nesse ambiente

escolar, pelo menos dois parceiros lidam diretamente com o livro didático: o professor e o aluno.

Dois caminhos, a princípio, podem ser trilhados pelo professor no que diz respeito ao livro didático. A escolha do caminho a ser selecionado necessariamente passa pela questão da formação do professor. Em outras palavras, pode-se dizer que os encaminhamentos metodológicos dispensados ao livro didático podem favorecer ou não o processo ensino-aprendizagem em Língua Portuguesa. Quer isso dizer que os riscos de uma alteração do papel original do livro didático, ou seja, deixar de funcionar como um subsídio para auxiliar a prática docente, pode criar condições desfavoráveis à aprendizagem do aluno.

No entanto, o livro didático pode repercutir de forma satisfatória, e contribuir para um ensino de língua, em sintonia com os avanços dos estudos da linguagem, voltado para o texto e para os usos da língua. Um ensino assim fundamentado lança mão do livro didático como um instrumento auxiliar no processo ensino-aprendizagem, em que o professor, com pleno conhecimento de sua autonomia pedagógica, desenvolve as aulas de Língua Portuguesa tendo em vista a transformação do aluno em um usuário sociocognitivamente competente, com domínio funcional sobre a produção e a compreensão de texto, e com consciência do funcionamento da linguagem. Nesse quadro, o professor decide e acompanha todas as etapas do trabalho didático na sala de aula, ou seja, ele seleciona o que ensinar, decide sobre o como ensinar, como também formula e escolhe o material para as suas aulas.

Um olhar sobre o perfil histórico do livro didático mostra que os fundamentos que nortearam a sua produção vê-se entrelaçados com o estudo das teorias lingüísticas situadas nos limites das abordagens formais. Por essa razão, a formulação do livro didático internaliza essas noções teóricas, e é projetado, por exemplo, para

assimilar a orientação normativista como referência para a questão da gramática. Nesse sentido, predomina a noção de que o conhecimento gramatical da língua, por si só, garante ao aluno apropriar-se das práticas de leitura e produção. Entendida nesses moldes, a gramática tem como centralidade a noção de língua como um objeto abstrato, cuja descrição é pautada na prescrição das formas consideradas como padrão correto.

Os textos que integram o livro didático, por sua vez, não são entendidos como elementos fundamentais para a prática de ensino de Língua Portuguesa. A tendência corrente consiste em apresentar o texto como elemento secundário ou, por assim dizer, não se firma como suporte para a compreensão dos estudos da língua. O procedimento comporta a palavra isolada ou se estende até a frase. Além desse aspecto, considere-se que o texto fragmentado posibilita uma leitura inadequada, vez que ocorre de forma descontextualizada e adota a noção de que o texto apresenta um sentido único, pré-determinado. No livro didático, essa ocorrência toma forma no exemplar destinado ao professor ao apresentar as questões e as respostas referentes à compreensão e à interpretação dos textos como prontas para o consumo e estas são as únicas possíveis e corretas.

As transformações pelas quais o ensino de língua portuguesa vem, paularinamente, vivendo apontam para uma ruptura com essa visão. Nesse cenário, o livro didático vai incorporando essas alterações de ordem teórica, e a sua formatação necessariamente refletirá uma perspectiva de ensino de Língua Portuguesa que considera como fundamental o discurso, os padrões de letramento, a língua oral, a textualidade, os usos, a gramática advinda dos usos, entre outros que a esses se somam numa proposta de ensino produtivo e funcional.

Um olhar investigativo, alicerçado nesses postulados, sobre o livro didático deixa explicitado que a soma das páginas que o compõem agregam os aspectos básicos

para os quais o ensino de Língua Portuguesa se volta. Assim, a organização do livro didático apresenta capítulos que se referem à questão da leitura e produção de textos, compreensão/interpretação de textos, texto oral e escrito, variedade lingüística e análise lingüística. Para abordar cada um desses aspectos, o autor do livro didático lida com a concepção de língua para tomar as decisões pertinentes à elaboração do livro, embora muitas vezes essa concepção não seja claramente colocada.

Mesmo com a constatação desses problemas, o livro didático continua com a patente de material didático para viabilizar o ensino de Língua Portuguesa. E é nesse contexto que o papel do professor assume significado relevante na articulação entre o livro didático e o processo ensino-aprendizagem em Língua Portuguesa, pois a ele cabe selecionar os objetos didáticos que encaminham a prática de sala de aula com o complexo fenômeno da linguagem.

Essas motivações deixam antever que o professor e seu processo de qualificação são fatores decisivos na escolha do livro didático, visto que a rota a ser traçada relaciona-se de forma estreita com a posição a ser assumida pelo professor. Além disso, é bom lembrar, como bem diz Savioli (1997), que “qualquer livro didático, de certa forma, está sempre incompleto, exigindo a interferência do aluno e do professor para completá-lo” ( p. 123).

A formação do professor é o centro de atenção da próxima seção.