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5 O PERCURSO DO ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL NO CONGRESSO

5.4 Os principais temas propostos no EIR

5.4.2 A Questão da Terra

Sobre a questão da terra, percebe-se que é um tópico do EIR menos debatido que as cotas, porém é alvo de grandes disputas no Congresso, principalmente no período próximo à aprovação do referido projeto de lei, na Câmara em novembro de 2009. Em 2004, parlamentares ligados ao partido Democratas impetraram uma ação direta de inconstitucionalidade (ADIN), a ADIN 3.329, contra o Decreto 4887/0398, que atualmente regulamenta a emissão de títulos de propriedade de terra para os quilombolas. Argumenta-se, na ADIN, que o referido decreto é inconstitucional, por ser essa uma espécie legislativa incapaz de regulamentar o artigo 68 do Ato das Disposições Constituicionais Transitórias (ADCT). Entendimento contrário tinham os

97 Os autores sustentam a tese de que a associação entre raça e determinados agravos faz parte de um

projeto político mais geral dos militantes negros brasileiros: “Nossa interpretação é de que o Programa

Estratégico de Ações Afirmativas: População Negra e AIDS faz parte de uma estratégia política de racializar um agravo à saúde (e, no caso específico, a dinâmica de uma epidemia), com vistas a fortalecer identidades com contornos raciais. Conforme tem sido enfatizado na literatura antropológica e sociológica, um dos desafios do movimento negro no Brasil é produzir na população uma ‘consciência negra’, buscando romper com o paradigma da mestiçagem e acumular forças com vistas a influenciar os rumos das políticas públicas.” (Fry et al., 2007: 504).

98 De acordo com o INCRA, desde a entrada em vigor do decreto em 2003, foram tituladas 60

propriedades de remanescentes de quilombos, até junho de 2010. (Agência Brasil, 2010). Além do decreto, complementa a regulamentação da questão agrária quilombola a Instrução Normativa 20, do INCRA.

parlamentares diretamente envolvidos com as causas da população negra, como foi o caso de Benedita da Silva (PT-RJ), Abdias Nascimento (PT-RJ) e mais recentemente Luiz Alberto (PT-BA) e Paulo Paim (PT-RS).

Quando ocupava o cargo de senadora, Benedita da Silva havia proposto o PLS 129/95, que foi aprovado em 1997, seguindo para a Câmara, onde foi aprovado em novembro de 2001, mesmo ano em que se desenvolviam os debates sobre o EIR naquela casa. Então, o projeto foi inteiramente vetado pelo presidente FHC, sendo esse veto total mantido em 2004 pelos parlamentares. Sobre o assunto, o deputado Luiz Alberto (PT-BA) se manifestou recentemente, em audiência pública tratando de assuntos pertinentes às comunidades indígenas e às quilombolas:

Ora, em 2001, fui Relator, Sr. Presidente, de 2 projetos de leis que regulamentavam o art. 68. Um da então Deputada Benedita da Silva, do Rio de Janeiro, e o outro do então Deputado Alcides Modesto99, do PT, da Bahia.

Relatei esses 2 projetos de lei. Tanto a Câmara dos Deputados quanto o Senado aprovaram por unanimidade essa matéria, que foi à sanção presidencial. Ou seja, nós a aprovamos e hoje há o discurso de que se precisa regulamentá-la por meio de projetos de lei. Isso foi feito. Mas, por ironia do destino, o que fez o Presidente Fernando Henrique Cardoso no dia 13 de maio do ano posterior? Ele vetou na totalidade, com o argumento de que o art. 68 era autoaplicável. Ora, se é autoaplicável, não precisa mais de lei alguma, o artigo está lá impondo ao Estado o reconhecimento, a delimitação das terras, a emissão do título de propriedade.100

Em uma análise sobre a questão dos quilombos, pesquisadores do IPEA repararam que o artigo 68 do ADCT já se mostrou auto-aplicável quando, em 1995, a primeira comunidade quilombola foi titulada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). No entanto, é perceptível que a ausência de uma lei federal a disciplinar a matéria dá brechas a litígios intermináveis entre interessados em manter a propriedade de suas terras. Exemplo disso ocorreu quando a medida provisória (MP) 1911-11 atribuiu ao Ministério da Cultura o papel de cumprir o determinado pela Constituição. A Fundação Cultural Palmares, órgão ligado a esse Ministério, passou a titular diversas comunidades quilombolas. Segundo os pesquisadores do IPEA: “Contudo, como não tinha autorização para promover desapropriações, para anular os títulos nos casos de terra em disputa (apropriadas por não-quilombolas) ou para promover a retirada de posseiros e invasores, os títulos de propriedade por ela emitidos terminaram por criar novas dificuldades.” (Baró et al, 2009: 112)

99 Luiz Alberto se refere ao PL 627/95, apresentado pelo deputado Alcides Modesto (PT-BA). 100 Audiência Pública, Comissão de Legislação Participativa, 09 Jun. 2010. Notas taquigráficas, p. 44.

O capítulo sobre a questão da terra apresentado na primeira versão do EIR em 2000 é o mesmo do referido projeto de Benedita da Silva (PT-RJ) sobre a questão quilombola. Quando aprovado o substitutivo de Reginaldo Germano ao PL3198/00, modificações foram feitas no sentido de tornar mais específicas as atribuições das instituições responsáveis pelo reconhecimento, demarcação e titulação das terras de quilombos. Nesse substitutivo se encontram 12 artigos sobre a questão agrária dos quilombos, que foram ampliados na versão aprovada no senado – isto é, o substitutivo do senador Roberto Tourinho (PFL-BA), que voltou à Câmara designado como PL 6264/2005, e que apresentava 22 artigos para a questão – havendo um grande detalhamento de como se daria, na prática, a regulamentação da questão fundiária quilombola. Por exemplo, havia a descrição dos procedimentos a serem adotados e os órgãos responsável por reconhecer, demarcar e dar o título das terras aos “remanescentes das comunidades de quilombos”, grupo cujas características eram também definidas nas leis. Além disso, seriam regulamentados os casos em que a desapropriação de terras deveria acontecer, situação que, já mostramos anteriormente, era motivo de conflitos no campo.

Depois dos acertos finais para a aprovação do EIR, na Câmara, em novembro de 2009, o texto do projeto passou a tratar dos “remanescentes das comunidades de quilombos” em 4 artigos, a determinar que o Estado deveria “emitir-lhe os títulos respectivos” – determinação que é literalmente a repetição de trecho do art. 68 do ADCT - e que o grupo seria beneficiário de políticas especiais de “desenvolvimento sustentável” e de “tratamento especial diferenciado, assistência técnica e linhas especiais de financiamento público”. O último artigo sobre a questão determinava que o grupo se beneficiaria “de todas as iniciativas previstas nesta e em outras leis de promoção da igualdade racial.” 101

Desde o início de sua tramitação, o EIR foi acompanhado de perto por parlamentares membros da bancada ruralista do Congresso, formalmente conhecida como Frente Parlamentar de Apoio à Agropecuária. Quando o EIR estava prestes a ser aprovado na Câmara, no ano de 2009, parlamentares dessa bancada, como Abelardo Lupion (DEM-PR) e Onyx Lorenzoni (DEM-RS) defenderam nas reuniões da 2ª CE mudanças no texto do EIR, principalmente, no tocante à regulamentação da questão quilombola.

101 Substitutivo do relator deputado Antônio Roberto ao PL 6264/05, aprovado pela 1ª CE em 14 de

Parlamentares ligados ao DEM e ao PP questionavam, em agosto de 2009, a definição de “remanescentes de quilombos”, que seria imprecisa e poderia prejudicar os produtores rurais. De fato, esse ponto de vista se consolidou no texto final aprovado pela Câmara, onde não consta qualquer definição de quem seriam os “remanescentes de quilombos”. O deputado ruralista Luis Carlos Heinze (PP-RS) afirmava:

“Essa definição da comunidade negra pode dar interpretações diferentes. Se alguém disser que ‘meu avô quilombola esteve perambulando por essa terra’, ele poderá reivindicar a terra. Estão tomando terras dos produtores rurais. Vemos claramente qual o interesse desse estatuto”

(Agência Câmara, 13/05/10)

Em contraponto a essa posição, o deputado Domingos Dutra (PT-MA) dizia:

“A definição na Constituição está em aberto e o conceito de remanescentes quilombolas envolve vários outros critérios como a territorialidade. Eles querem derrubar essa definição e com isso o conteúdo principal do estatuto que é o direito a terra, uma reparação mínima aos remanescentes de quilombos.”

(Agência Câmara, 13/05/10).

Para entender o posicionamento de parlamentares críticos à forma como o EIR abordava a questão fundiária quilombola, é útil analisar a emenda supressiva apresentada pelo deputado Abelardo Lupion (DEM-PR) ao substitutivo do deputado Antônio Roberto (PV-MG)102. Nela, o parlamentar alegava que a norma constitucional concernente aos remanescentes de quilombos só abarcava aqueles que permaneceram em sua terra até 1988. Diz a emenda: “A idéia é que essas comunidades tenham a posse dessas terras desde a abolição da escravidão (13 de maio de 1888), posse essa que foi sendo transmitida de geração para geração de pessoas daquela comunidade, e exercida de forma pacífica no referido período.” Ou seja, seria necessário comprovar a posse ininterrupta de terras, em um período de cem anos, além do que, se uma comunidade quilombola tivesse sido expulsa de seu território teria dificuldade para se enquadrar nessa interpretação do dispositivo constitucional. A emenda também sustenta a inconstitucionalidade da desapropriação de propriedades privadas para a titulação de comunidades quilombolas. Por fim, o autor da proposta lança mão do seguinte argumento:

“Já se disse acima que o art. 68 do ADCT impõe que as terras a serem reconhecidas tenham sido ocupadas pelos quilombolas antes 1888 e continuaram sendo ocupadas pelos seus remanescentes em 5 de outubro de 1988. Pois bem, se assim o foram é porque nenhuma posse particular incidiu nas mesmas terras. Se alguma posse particular incidiu nas mesmas terras, é porque a área não preenche os requisitos legais para ser reconhecida como terras a serem tituladas a remanescentes das comunidades de quilombos.”