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Capítulo II – Assentamentos humanos: um tema da agenda das relações

2.1 A questão urbana em Relações Internacionais: uma agenda

Como apresentado no capítulo anterior, a disciplina de Relações Internacionais foi tradicionalmente construída por questões de segurança e defesa, entretanto, com a redefinição dos objetos observados, os temas também foram ampliados e diversificados. Dessa maneira, as novas realidades expostas para a comunidade internacional passaram a ser incorporadas na agenda, como foi o caso dos assentamentos humanos.

Abordar unidades políticas descentralizadas, como as cidades, em uma disciplina que foi basicamente construída sobre o conceito de Estado-nação não parece ser coerente ou prudente. Entretanto, a partir de uma visão mais contemporânea de Relações Internacionais, como exposto no capítulo anterior, torna-se possível abranger as questões do ambiente urbano na agenda da disciplina. Ou seja,

If global politics involves a diversity of actors and institutions it is also marked by a diversity of political concerns. The agenda of global politics is anchored to not just traditional geopolitical concerns but also to a proliferation of economic, social, cultural, and ecological questions (MCGREW, 2008, p. 28).

O ambiente urbano é tradicionalmente estudado na Arquitetura (MARICATO, 2001), na Geografia (SANTOS, 1994) e na Sociologia Social (FREYRE, 1985; CASTELLS, 200). Contudo, a falta de trabalhos sobre a questão urbana nas Relações Internacionais não impede a exploração da temática, ainda que seja necessário recorrer a estudos de outras áreas, como as supracitadas; pelo contrário, coloca-se como um desafio e uma necessidade de preencher esse vazio. Trata-se de um tema multidisciplinar que, pela sua complexidade, demanda uma análise que abarque suas diversas faces. Portanto, é possível envolver no debate pesquisadores de distintas áreas do conhecimento e ainda apresentar uma visão de Relações Internacionais.

Para cada autor a questão urbana coloca-se de uma forma. Se para os arquitetos e urbanistas as construções e a organização do espaço são essenciais e para os sociólogos o embate social é latente, para esta dissertação é possível destacar o papel político que as cidades passam a desempenhar no cenário internacional. Enfim, pensar em assentamentos humanos em Relações Internacionais significa pensar no papel dos atores locais, mais especificamente dos governos locais, e na questão urbana como componente para o desenvolvimento.

Os questionamento que se apresentam são: a) por que os assentos humanos merecem tratamento internacional?; b) qual papel as cidades assumem na dinâmica do sistema internacional?; c) como as questões urbanas são tratadas nos fóruns internacionais?; d) qual é a relevância da temática para o Brasil?

Por que abordar questões referentes aos assentamentos humanos na disciplina de Relações Internacionais, em vez de manter o debate restrito ao âmbito de especialistas, como arquitetos ou sociólogos? A partir das observações feitas no capítulo anterior, que sugerem que com a queda do muro de Berlim e com o aprofundamento dos fenômenos de globalização e integração regional a dinâmica das relações internacionais foi alterada, é possível inserir a questão urbana na agenda da disciplina.

A qualidade de vida nas cidades não é somente uma questão técnica; é, também, política e, portanto, demanda tratamento adequado. As decisões acerca das políticas que incidem sobre o ambiente urbano são tomadas para além do âmbito local e envolvem instâncias políticas nacionais e internacionais. Portanto, pensar a vida nas cidades

significa pensar na dinâmica entre as esferas de poder que estão envolvidas no processo de tomada de decisão das políticas urbanas.

Para além das transformações na lógica do sistema internacional, o século XX foi marcado pela expansão dos centros urbanos e consequentemente das problemáticas geradas por esse crescimento. As cidades expõem as fragilidades de um país ao localizar tanto a riqueza quanto a pobreza. Assim, as cidades dos países em desenvolvimento exibem as diversas faces da falta de recursos financeiros ou da sua má distribuição. Os assentamentos humanos precários, caracterizados no Brasil pela presença das favelas, marcam o atraso dos países do sul.

Enfim, a comunidade internacional não poderia permanecer imóvel diante dos problemas dos assentamentos humanos, já que não se trata somente de uma questão que demanda soluções locais. Antes, exige a atuação da sociedade internacional. Portanto,

Problemas relativos à habitação foram vistos durante muito tempo como problemas meramente locais. [...] No entanto, o agravamento dos problemas de desenvolvimento nos assentamentos humanos, o contínuo crescimento demográfico, a existência de várias cidades no mundo com mais de 5 milhões de habitantes, as preocupações com o meio ambiente, e outros fatores, começaram evidenciar que tais temas mereciam ser tratados em outros âmbitos. Além disso, uma maior consciência do processo de interdependência entre todos os fatores e atores, fez com que questões anteriormente tratadas como locais fossem abordados no plano internacional. Assim, as questões relativas aos assentamentos humanos, tanto devido ao seu agravamento nas últimas décadas, como por serem palco de outros grandes

problemas que sofre a humanidade, tornaram-se um dos maiores desafios da comunidade internacional (MACHADO FILHO, 1998, p. 137, grifo nosso).

Se os principais problemas que afligem os governos nacionais tornam-se questões globais, como a saúde, a pobreza e a educação, o mesmo ocorre com os assentamentos humanos, uma vez que, além de apresentar problemas específicos, constituem-se como espaços físicos de observação dessas dificuldades. Torna-se, portanto, inevitável tratar o urbano no sistema internacional.

Se não há condições adequadas para se viver em um local, como a falta de moradia, de saneamento básico, de empregos ou de respeito aos direitos humanos, essa situação pode acarretar a imigração de populações vulneráveis. Logo, o que inicialmente aparentava ser uma questão local torna-se preocupante para outros países, pois pode significar o movimento de indivíduos para outros locais que talvez também não apresentem condições de acomodá-los. Trata-se de um efeito em cascata que atinge todo o sistema internacional, por isso não há como permanecer imune a essas questões

ou mesmo ignorá-las. Este é apenas um exemplo imediato de como a situação dos assentamentos humanos pode influenciar no fluxo de pessoas, mas há, ainda, inúmeras consequências para a comunidade internacional, que não deve, portanto, se eximir da responsabilidade de promover a melhoria nos assentamentos humanos.

As consequências internacionais dos problemas urbanos vão além dos fluxos migratórios e abarcam os direitos humanos, importante questão para as Relações Internacionais, assim como o desenvolvimento e o meio ambiente.

A luta mundial a favor do desenvolvimento, sustentada pelos líderes mundiais e pelas Nações Unidas, encontra nos assentamentos humanos a concretização do conceito. É nas cidades que é possível observar a pobreza e a riqueza e suas interações. A maneira como os indivíduos vivem representa o grau de desenvolvimento de determinado país. Portanto, o tratamento internacional das questões urbanas é fundamental para o combate à pobreza e para a promoção do desenvolvimento: “Cities today play a significant role in development.”9.

Para além das problemáticas sociais e humanas englobadas pela questão urbana, como ressaltado anteriormente, a localização da temática em Relações Internacionais introduz a discussão sobre o papel dos governos locais no cenário internacional e dos interesses entre as diversas instâncias de poder. O fenômeno da paradiplomacia ganha força no fim dos anos 1980 e início dos anos 1990, quando as cidades passam a atuar em espaços externos às suas fronteiras nacionais. Com essa presença em um ambiente majoritariamente dominado pelos Estados nacionais, alguns questionamentos passam a ser feitos pelos formuladores de política: qual é o espaço de atuação desses atores? Em quais questões eles devem estar envolvidos? Qual é o peso desses atores nesse novo cenário?

Os governos locais passam a atuar, sobretudo em espaços multilaterais, uma vez que se trata de ambientes mais pluralistas e, portanto, que aceitam mais facilmente a participação de outros atores. Concomitantemente à presença dos governos locais, é possível observar também a inserção das ONGs, uma vez que o período histórico é favorável a uma ampliação e diversificação de atores. Dessa maneira, os governos locais aparecem nas reuniões de organizações multilaterais, notadamente nas Nações Unidas, e em especial em encontros em que a temática está relacionada com o local pelo qual são responsáveis: as cidades, os centros urbanos. Portanto, a questão urbana aparece na

9 Why a Conference on Cities. United Nations Cyberschoolbus. Disponível em:

agenda de Relações Internacionais juntamente com a presença desses atores, o que implica reafirmar que o tratamento de determinados objetos demanda a participação dos envolvidos com a questão.

A inserção dos governos locais em fóruns multilaterais, especialmente aqueles relacionados com a questão urbana, implica a participação desses atores na formulação, ou mesmo na idealização, das políticas internacionais para seus governos. Tal dinâmica expõe um embate mais complexo de forças políticas do que aquele em que apenas Estados nacionais discutiam na arena internacional as diretrizes acerca de diversas questões que geram implicações domésticas imediatas. Portanto, ao mesmo tempo em que a questão urbana é inserida na agenda internacional, os governos locais passam a atuar no cenário de negociações internacional, o que consequentemente acarreta uma reflexão sobre as relações de poder entre os governos locais, nacionais e as organizações internacionais. Tal reflexão permeia todos os capítulos desta dissertação, pois é um ponto importante para pensar as “Novas Relações Internacionais” (SMOUTS, 2004).

Enfim, assentamentos humanos é um tema de Relações Internacionais que merece a dedicação da comunidade internacional. Na medida em que os grandes centros urbanos cresceram e apresentaram graves problemas relacionados ao desenvolvimento, como a falta de moradia e de saneamento básico, a comunidade internacional passou a demonstrar preocupação com a questão. Como reflexo dessa preocupação, as Nações Unidas realizaram, em 1986, a Primeira Conferência para Assentamentos Humanos.