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A REALIZAÇÃO DO SEGUNDO DESTINADOR : O EPISÓDIO DO ARMAZÉM

Pensando agora nos conteúdos da infância, podemos notar, como já afirmamos anteriormente, que o destinador-sujeito responsável por estes valores chega a atualizar-se em determinado momento da narrativa, levando o actante menina à realização. Isso ocorre em um

momento ligeiramente anterior à performance narrativa da protagonista enquanto

destinatário1.

A menina consegue entrar no armazém do Sr. Américo, que se encontrava fechado ao atendimento, e lá se encanta com alguns objetos, ficando de certa forma presa a eles por alguns instantes.

(...) a menina se volta de novo pro armazém, indo direto pra porta que tem uma fresta entre as folhas. Empurra timidamente uma das folhas de madeira, entra no armazém, mas fica parada na entrada, inibida pela súbita escuridão. [...] a luz dali tão-só filtrada pelas bandeiras de vidro no alto das portas. (Idem, p. 41, Grifos Nossos)

O armazém constitui uma cena perceptiva diante da qual se posiciona a menina enquanto actante-fonte de uma visada caracterizada por forte intensidade: fica parada, inibida pela súbita escuridão.

É marcante na narrativa a interrupção da continuidade cotidiana, um alongamento do tempo e fechamento do espaço marcados por uma aceleração tônica, o que, segundo C. Zilberberg, caracteriza a “surpresa”:

Mas quando o tempo emissivo está em operação, ou seja, é dominante, segue seu curso, o retorno do remissivo é vivido como surpresa, desordem e, evidentemente, como interrupção. (Zilberberg, 2006, p. 136)

No seu trajeto repleto de pequenas surpresas, a menina depara-se, agora, com uma “grande” surpresa, a maior de todas.

Primeiramente, deslumbra-se com a fartura do armazém: vê uma barrica de manjubas secas e um compartimento cheio de torrões de açúcar.

A menina avança alguns passos entre sacos de cereais expostos sobre caixotes de querosene e não vê ninguém. Arregala os olhos quando descobre a barrica de manjubas secas, sente a boca vazia e perdida ao vislumbrar um compartimento cheinho de torrões de açúcar redondo. (Nassar, 1997, p.41)

Realiza-se ao “devorar” as manjubas e os torrões de açúcar com voracidade.

Afunda logo a mão na barrica em busca de manjubas, come muitas, sofregamente. Lambe o sal que lhe pica a pele ao redor da boca e estala a língua. Pega depois um torrão de açúcar redondo, em seguida outro, mais outro, os mais graúdos que repousam na superfície. A barriga estufa, a voracidade do começo desaparece e a menina, de espaço a espaço, sem vontade, continua lambendo o torrão enorme que tem na mão, enquanto passeia livre pelo armazém sem ninguém. (Idem, pp. 41-42)

Em seguida, é transportada pela lembrança que uma imagem lhe provoca. Entra em cena a menina como um sujeito passional, exposto às magias dos objetos que contempla:

No sarrafo suspenso por dois cordões, lá no alto, estão presos, que nem três bandeiras quadradas, uma ao lado da outra, os panos que estampam as figuras de três santos. Nem Santo Antônio c’uma criança nos braços, nem São Pedro de barba bonita, segurando uma bruta chave do céu na mão direita, nenhum dos dois chega a mexer com ela. A menina não tira os olhos é da imagem de João Batista estampada na bandeira do meio, contempla com indisfarçável paixão o menino de cabelos encaracolados que aperta contra o peito um cordeiro de tenras patas soltas no ar, um cajado roçando seu ombro nu. Lambendo o torrão de açúcar, o menino se transfigura, transporta-se pras noites frias de junho, o pano com São João drapeja no alto de um mastro erguido no centro da quermesse, afogueado pelas chamas da lenha que queima embaixo. [...] A menina desce o olhar e o pirulito metálico lá nos fundos, depois do balcão, prende num isto sua atenção. Espiralado e colorido, o móbile ingênuo pende da ponta de um barbante, junto à entrada pra moradia interna, [...]. Sem nada que o acione aparentemente, a mão de uma criança, sopro ou brisa, o pirulito gira sem cessar. A menina se encanta, [...] (Nassar, 1997, pp. 42-43, Grifos Nossos)

Ressalte-se que o fato de a menina encantar-se com a estampa de São João, o único ainda criança entre os santos “juninos”, e também com um móbile infantil, colorido e espiralado, aliados à percepção sensível que tem de todas as figuras infantis presentes no episódio, são evidências de que o destinador realizado neste momento é aquele dos valores da infância.

Ora, lendo os excertos destacados, não há dúvidas de que estamos diante da

armazém, come sofregamente manjubas e torrões de açúcar, e deixa-se enlevar pela imagem de São João Batista, que lhe transporta para as noites frias de junho.

Situações como esta são analisadas pela semiótica como momentos epifânicos. De acordo com Tatit (2002), em seu artigo “A verdade extraordinária”:

Ao pinçar relatos epifânicos de obras de seu agrado e comentá-los detalhadamente na primeira parte, intitulada “La fracture”, do volume De l’imperfection, Greimas introduziu no mundo semiótico uma noção de estética particular, associada ao irrompimento de uma ocorrência extraordinária que, como tal, retiraria o sujeito de seu cotidiano e o deixaria exposto e vulnerável aos encantos do objeto. Mais do que isso, o semioticista depreendeu, nesses relatos, uma certa transferência das propriedades ativas do sujeito para o âmbito do objeto, de maneira que, durante o breve espaço de tempo da ocorrência, as funções actanciais tornam-se oscilantes e o sujeito chega a figurar como “presa” do magnetismo exercido pelo objeto. (pp. 1-2)

Podemos ver que se trata de uma ocorrência exatamente como esta, descrita no trecho em destaque, o caso em análise. Fica evidente no excerto do conto supra transcrito a caracterização desta epifania quando o narrador afirma que “a menina contempla com indisfarçável paixão” a estampa do menino de cabelos encaracolados (São João Batista). O termo “paixão” sendo utilizado no sentido de passividade do sujeito diante do objeto. Como se vê na descrição de Tatit que reproduzimos, tal ocorrência “retiraria o sujeito de seu cotidiano e o deixaria exposto e vulnerável aos encantos do objeto [...]. As funções actanciais tornam-se oscilantes e o sujeito chega a figurar como “presa” do magnetismo exercido pelo objeto.”

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