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A recepção do conto A cega e a negra – uma fábula em audiolivro

4.1 A RECEPÇÃO DO AUDIOLIVRO

4.1.1 A recepção do conto A cega e a negra – uma fábula em audiolivro

A interpretação do conto A cega e a negra – uma fábula, seguindo as questões propostas, trouxe, primeiramente, a identificação das duas personagens, com suas características e como, ao mesmo tempo, “tanto uma quanto a outra tem sido compreendida de forma discriminatória e preconceituosa” (sujeito 1); a questão racial também apareceu de forma aberta, com “a desvalorização da personagem” (sujeito 3), enquanto que, em relação ao tema da cegueira, visualiza-se “como sendo sinônimo de escuridão; também é visto como algo místico” (sujeito 2).

Figura 48 – Fragmento em fac-símile de arquivo do bloco de notas contendo as respostas ao questionário sobre o conto A cega e a negra – uma fábula.

Fonte: Arquivo recebido pela pesquisadora em seu correio eletrônico (2013).

Obteve destaque a abordagem da cegueira e da questão racial num texto literário, como “algo educativo, principalmente quando esta não é referenciada de forma depreciativa” (sujeito 3). E ressalta que, mesmo com a apresentação da personagem cega “de uma boa maneira, a autora demonstrou o preconceito velado da sociedade e como o sentimento de pena é forte” (sujeito 3).

Em relação à questão de se associar a fragilidade ao tema da cegueira, presente no conto, a citação que vem a seguir propõe outra perspectiva. Destaca-se, então, a existência de outras habilidades que a pessoa com deficiência desenvolve, ao mesmo tempo em que se explicita que as pessoas cegas não têm que ser todas iguais, como realmente não o são, mesmo quanto à sua própria condição de cegueira.

Na agência bancária, Flora pareceu ser bem atendida. Interpretei que por ter sido chamada de doutora, deveria possuir um poder aquisitivo maior. Cecília, talvez por falta de convivência com pessoas cegas, subestimou em pensamento a oferta de ajuda por parte de Flora, vendo nela fragilidade, quando na realidade na pessoa cega não há tão somente limitações, mas também, capacidades. A falta de conhecimento também leva a sociedade a entender que pessoas cegas vivem na escuridão, quando isto também não corresponde à realidade. Para quem perdeu a visão após uma determinada idade, sua psique continua "iluminada", temos registros mentais,

conceitos apropriados, percepções de claridade ou vultos. Para quem nasceu cego, não vivenciou o claro, então o escuro é uma referência prática (sujeito 3).

Nessa mesma linha de análise sobre o entendimento a respeito da cegueira na sociedade, um dos sujeitos marcou uma questão apresentada no conto, a qual mereceu um aprofundamento reflexivo. Discutiu-se, então, a questão confrontada com a realidade que se vivencia também no mercado de trabalho:

Ser cega era muito melhor do que ser negra, pois o respeito e a consideração dirigidos à Flora eram a contradição vivida diariamente por Cecília. A vida não é um conto, pois se assim o fosse, por certo seria preferível ser negro a ser cego, porém, o que se nota é que, se hoje uma pessoa negra e uma pessoa cega, com o mesmo grau de escolaridade, ou que o cego tenha uma titulação mais vantajosa em relação ao negro, com certeza o negro ficará com o cargo, se este for o pleito. Pois é sabido que muitas empresas preferem pagar multas exorbitantes a contratar pessoas com deficiência, ainda mais se esta deficiência estiver relacionada à visão (sujeito 7).

A questão posta é bem representativa na vida desse grupo de sujeitos, pois em suas informações pessoais relacionadas ao exercício profissional, dos dez participantes, os sete que concluíram curso superior encontram-se exercendo sua profissão mediante aprovação em concurso público para ingresso em órgãos municipal, estadual e federal.

Na esteira dessa análise social, explicitou-se que a pobreza é também uma marca que gera preconceito numa sociedade de classes e, quando aliada à raça e à deficiência, amplia sua potência: “as pessoas são mais atingidas por práticas preconceituosas e discriminatórias quando as mesmas, além de ser cega ou negra, também são pobres” (sujeito 1).

Na interpretação dos sujeitos em relação à metáfora da aranha na tessitura de sua teia, presente no conto, consta: “Tem o sentido das consequências a partir do que sai do interior da pessoa, do seu pensamento, entendimento de mundo” (sujeito 4); “A aranha tecendo sua teia se compara às duas amigas construindo sua vida em meio aos desafios impostos pela mesma, a necessidade de superá-los” (sujeito 2). Essa ideia de superação é descrita como algo que impele as pessoas à luta, pois não se trata de “alusão ao destino”, mas “[...] na vida cotidiana por mais que pareça que as coisas sempre serão iguais, elas não são, a cada desafio vivido as pessoas aprendem algo e se superam” (sujeito 5), relacionando-se, assim, o conteúdo ouvido aos enfrentamentos dos desafios postos na realidade do dia-a-dia de cada uma dessas pessoas com deficiência.

Ficou manifesta a identificação das situações vividas por pessoas cegas reais com a narrativa ficcional do conto, como segue:

Relaciono ao pensamento de Adler "tudo o que não me destrói me faz mais forte". Cecília traz consigo um histórico de prejulgamentos, olhares discriminatórios, vivências doloridas, mas tira de dentro de si a força e a coragem para continuar prosseguindo. Flora embora pareça estar em uma situação social mais "confortável", também tem que enfrentar momentos difíceis e precisa tirar de seu interior a vontade de vencer e superar.

Relacionei com a nossa própria história de vida, a cada dia vamos construindo e reconstruindo nossa teia. Às vezes ela é destruída, danificada, mas podemos "consertá-la", superar e voltar a tecer, sendo que tudo se torna mais fácil quando temos pessoas com quem contar, dialogar, confiar, etc (sujeito 3).

E também foi feita uma análise da amizade construída entre duas pessoas nas circunstâncias apresentadas pelo conto, que reproduzem as relações cotidianas em que as pessoas encontram pontos comuns em suas vidas. Lê-se:

Um dos principais elementos que levam duas pessoas a contrair uma amizade profunda está relacionado à existência de um forte vínculo, que no caso da fábula, deve ter sido as próprias condições de existência dos personagens, ou seja, a cegueira de Flora e o fato de Cecília ser negra (sujeito 1).

Tal atitude ainda é demonstrada por outro sujeito, ao reforçar a importância da ausência de preconceitos, que assim se expressou:

A autora deixa transparecer que a amizade entre dois seres com tão distintas vivências aproximou-os, construindo teias de afeições, despidas de valores preconceituosos. O que havia eram duas mulheres, não uma cega e uma negra (sujeito 7).

As manifestações expressas pelos sujeitos do processo de recepção do audiolivro demonstram como o sentido do texto se constrói na relação com o leitor, no caso do audiolivro, com o ouvinte. Isto porque o sentido do texto não é inerente a ele mesmo, nem a seu autor, pois “é um efeito experimentado pelo leitor, e não um objeto definido, preexistente à leitura”, conforme afirma Compagnon (2001, p. 149). Nesse sentido, há que se destacar o significado da constituição do grupo de sujeitos cegos, pois cada qual traz suas vivências, às análises interpretativas do texto literário com a temática específica da cegueira, abordada no audiolivro.