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A reconversão do capital econômico para o simbólico

3 Entre o estigma e o desejo de distinção: o desejo de distinguir-se das

3.2 A reconversão do capital econômico para o simbólico

Um questionamento que passou a assolar os pensamentos de João Romão consiste na seguinte problemática: seria possível um homem de origem social pobre, tornar-se um “homem de boa sociedade”, respeitado e estimado como tal? Tendo obtido uma considerável fortuna, não poderia, finalmente, desfrutar de uma posição social privilegiada?

Certas dúvidas aborrecidas entravam-lhe agora a roer por dentro. Qual seria o melhor e o mais certado: - ter vivido como ele vivera até ali, curtindo privações, em tamancos e mangas de camisa; ou ter feito como o Miranda, comendo boas coisas e gozando à farta? ... Estaria ele, João Romão, habilitado a possuir e desfrutar tratamento igual ao do vizinho?... Dinheiro não lhe faltava para isso... Sim, de acordo! Mas teria ânimo de gastá-lo assim, sem mais nem menos?... Sacrificar uma boa porção de contos de réis, tão penosamente acumulados, em troca de uma tetéia para o peito? Teria ânimo de dividir o que era seu, tomando esposa, fazendo família e cercando- se de amigos? Teria ânimo de encher de finas iguarias e vinhos preciosos a barriga dos outros, quando até ali fora tão condescendente para com a sua própria? E, caso resolvesse mudar de vida radicalmente, unir-se a uma senhora bem educada e distinta de maneiras, montar um sobrado com o Miranda e volver- se titular, estaria apto para o fazer? Poderia dar conta do recado?

(AZEVEDO, 1995, p. 113)

Logo percebeu que essa posição diferenciada dentro do campo lhe custaria bem mais do que dinheiro propriamente dito. Era preciso incorporar o habitus da nobreza. Tornar-se um membro da elite exigia o cumprimento de normas de conduta rígidas, as quais independiam do desejo pessoal do sujeito, como por exemplo: o casamento, que se constituía em uma obrigação social, bem como a procedência da esposa deveria ser aprovada pelo grupo (“senhora bem educada e distinta”). Observa-se certa semelhança entre o cerimonial da sociedade de corte, descrito por Norbert Elias,(2001) no qual a liberdade do indivíduo é limitada em virtude de uma estrutura social já estabelecida para ele por um grupo que deseja com isso manter seu status quo. Há inclusive a obrigação do dispêndio, do luxo, de “gastar com os outros membros dessa sociedade, por meio de jantares, gastos com itens de elevado valor aquisitivo. Pois não basta que se possua capital econômico, é preciso demonstrar sua pose, ritualizando-o, mediante o gasto supérfluo, demonstrando que

“não se está com o dinheiro contado”. Nesse sentido, há mais semelhança da nobreza dos oitocentos e o habitus cortesão do que com o espírito capitalista presente na lógica da sociedade burguesa representado pela frieza do cálculo racional.

Afinal a dolorosa desconfiança de si mesmo e a terrível convicção de sua impotência para pretender outra coisa que não fosse juntar dinheiro, e mais dinheiro, e ainda mais sem saber para que e com que fim. [...] Fora uma besta! Pensou de si próprio. Pois não! Por que em tempo não tratara de habituar-se logo a certo modo de viver, como faziam tantos outros seus patrícios e colegas de profissão? Por que, como eles, não aprendera a dançar? E não freqüentara sociedades carnavalescas? E não fora de vez em quando à Rua do Ouvidor e aos teatros, e a bailes, e a corridas, passeios? Por que não habituara-se com as roupas finas, e com o calçado justo, e com a bengala, e com o lenço, e com o charuto, e com o chapéu, e com a cerveja, e com tudo que os outros usavam naturalmente, sem precisar de privilégio para isso? Maldita economia!

- teria gastos é verdade! Não estaria tão bem, mas ora Deus [...] Seria um homem civilizado!

(AZEVEDO, 1995, p. 114)

Travou-se uma espécie de diálogo esquizofrênico na mente de João Romão entre o habitus da nobreza com sua lógica do desperdício e esbanjamento e o habitus modelado pelo espírito capitalista e sua dinâmica de acumulação, economia e controle de receitas. Quando chegou ao Brasil, pobre e disposto a fazer fortuna, João Romão não se importava em agir de modo desleixado, sem “educação”, em meio à sujeira, visto que esses construtos perpassam o imaginário popular acerca do pobre. Todavia, tais atributos vindos de membro da elite causam escândalo. Ao mudar seu status econômico, João Romão foi sentindo-se impelido e mudar seu status simbólico. Logo, a presença do seu atual antípoda causava-lhe repulsa: “O vendeiro lançava para baixo, olhares de desprezo sobre aquela gentalha sensual, que o enriquecera, e que continuava a mourejar estupidamente, de sol a sol, sem outro ideal senão comer, dormir e procriar.” (AZEVEDO, 1995, p. 158). Em sua busca de inclusão junto à elite carioca, o mundo parecia dividir-se entre os civilizados, em seu entender eram os homens ricos e distintos, e em contrapartida, os incivilizados, indesejados e incapazes, os pobres.

Quanto mais desejava tornar-se um “estabelecido”22 dentro do grupo dominante, mais lhe desagradava as ações dos pobres moradores do cortiço. Passava agora a vigiar-lhes, e tentava impor disciplina ao lugar.

Parava defronte das tinas vazias, encolerizado, procurando motivos para ralhar. Mandava, com um berro, saírem as crianças do seu caminho: ‘ Que praga de piolhos! Arre, demônio! Nunca vira tanta gente tão danada para parir! Pareciam ratas!’

Protestou contra os galos de um alfaiate, que se divertia a fazê-los brigar, no meio de uma grande roda, entusiasmada e barulhenta. Vituperou contra italianos, porque estes, na alegre independência do domingo, tinham à porta da casa uma esterqueira das cascas de melancia e laranja, que eles comiam tagarelando, assentados sobre a janela e a calçada.

- Quero isto limpo! Bradava furioso. Está pior que um chiqueiro de porcos! Arre! Tomara que a febre amarela os lamba a todos! Maldita raça de carcamanos! Hão de trazer- me tudo isto asseado ou vai tudo para o olho da rua! Aqui mando eu! !(AZEVEDO, 1995, p. 115)

No trecho acima, percebemos a construção do pobre como sujo, sem educação e que procria demasiadamente. As crianças são chamadas de piolhos, que são parasitas indesejáveis. Não por acaso, João Romão nunca desejou ter filhos com Bertoleza, tendo esta realizado abortos com a ajuda de Paula (Bruxa). Os filhos indicavam um investimento incerto, a única certeza que teria é a do gasto com sua criação, sem a garantia de um retorno financeiro e a João Romão não apetecia dividir o que era seu.

Sua cólera se voltou contra os hábitos referentes à higiene dos moradores. A sujeira que se fazia presente no cortiço facilitava a propagação de doenças, conforme vimos na afirmação: “Tomara que a febre amarela os lamba a todos!” Interpretação essa bastante presente nos estudos de Chalhoub (1996). Outra preocupação de Romão concernente à higienização emergia pelo fato de que o estigma social recaindo sobre os moradores, recairia também sobre a reputação da estalagem, o que conseqüentemente, ocasionaria uma desvalorização do imóvel e redução dos lucros. Entra em cena a especulação imobiliária.

22 Referindo-se ao conceito de estabelecidos, de Norbert Elias na obra Os estabelecidos e