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3.3 – A recuperação da tensão entre autonomia e adaptação

No documento 2007LeandroFurmann (páginas 87-90)

Falar sobre formação para a resistência em Adorno implica ter presente o duplo caráter da cultura (

Bildung

): adaptação e resistência ou autonomia e adaptação. Conforme já afirmamos no presente texto, esse duplo caráter da

Bildung

deve estar em constante tensionamento, pois, na medida em que se faz necessário formar os sujeitos para a autonomia, não podemos perder de vista a necessidade de adaptação dos sujeitos ao meio em que vivem. Essa relação tensional constitui-se, certamente, num dos problemas centrais com o qual a pedagogia contemporânea se defronta.

Educar os sujeitos para a adequação ao meio trata-se de uma condição necessária para a sua própria sobrevivência numa sociedade orientada pelo viés da racionalidade e do trabalho. O indivíduo precisa ser dotado de racionalidade para agir racionalmente e de competências, habilidades para auto-sustentar-se por meio do trabalho. Nesse sentido Kant, em

Sobre a pedagogia

, conforme destacamos no primeiro capítulo,12, deixa clara a importância do trabalho para a formação do sujeito. Pelo trabalho o sujeito pode ter o seu próprio auto-sustento, garantir a sua própria sobrevivência – alimentar-se, vestir-se. Conforme afirmamos, à auto-sustentabilidade econômica estaria correlacionada a autonomia racional, pois poder fazer opções inteligentes, autolegislar sobre sua conduta implica dispor de autonomia intelectual e econômica.

Assim como em Kant, essas preocupações também estão subjacentes nos escritos pedagógicos de Adorno e expressam-se quando define o conceito de emancipação:

De um certo modo, emancipação significa o mesmo que conscientização, racionalidade. Mas a realidade sempre é simultaneamente uma comprovação da realidade, e esta envolve continuamente um movimento de adaptação. A educação seria impotente e ideológica se ignorasse o objetivo de adaptação e não preparasse os homens para se orientarem no mundo. Porém ela seria igualmente questionável se ficasse nisto, produzindo nada além de

well adjusted people

, pessoas bem ajustadas, em conseqüência do que a situação existente se impõe precisamente no que tem de pior. Nestes termos, desde o início existe no conceito de educação para a consciência e para a racionalidade uma ambigüidade. Talvez não seja possível supera-la no existente, mas certamente não podemos nos desviar dela. (ADORNO, 1995, p.143-144).

Na passagem transcrita Adorno deixa claro que a educação, por um lado, deve proporcionar uma formação para que o indivíduo tenha condições de se orientar numa sociedade tecnológica e do trabalho, ou seja, adaptar-se a essa realidade. Nesse sentido, cabe à educação também dotar os indivíduos de competências e habilidades para o trabalho. Por outro lado, deve ocupar-se com a formação de indivíduos autônomos, dotá-los de capacidade para fazer uso de sua própria racionalidade. Dessa forma, o processo formativo educacional,

ao mesmo tempo, necessita dar conta de formar habilidades técnicas e o domínio da metodologia – necessária para o mundo do trabalho – e desenvolver a educação como uma idéia de humanidade, que, nesse sentido, necessita se guiar por princípios éticos e políticos. (JAEHN, 2005, p. 110).

Portanto, trata-se de uma adaptação à realidade de maneira consciente, para que o indivíduo compreenda criticamente as adaptações que faz. Pucci destaca o significado da tensão entre autonomia e adaptação nos seguintes termos: “Ser autônomo sem deixar de se submeter; submeter-se sem perder a autonomia. Aceitar o mundo objetivo, negando-o continuamente; afirmar o espírito, contrapondo-lhe a natureza” (PUCCI, 1997, p. 90). Para Adorno, essa tensão constitutiva da cultura no sentido da

Bildung

é imprescindível para se pensar na possibilidade da emancipação pelo viés da resistência diante dos determinismos impostores da sociedade de capitalismo administrado. Não se poderia pensar a produtividade da

Bildung

numa perspectiva de formação para a autonomia sem levar em

consideração essa tensão; negar qualquer um dos pólos constitutivos da

Bildung

significaria impossibilitar a realização da formação integral dos sujeitos, da formação para a autonomia.

Adorno tentou nos mostrar que a formação cultural é um longo processo histórico de mediação e de continuidade que visa a humanização do homem na sua racionalidade, sensibilidade, corporeidade, materialidade; visa humanizar o homem, suas relações e o mundo biológico, material. (PUCCI, 1997, p.111).

A humanização deve ser o fim de toda a ação pedagógica num sentido emancipatório. Por isso, a formação cultural no sentido da

Bildung,

em Adorno, da restauração da autonomia intelectual e moral pela educação, fundamenta-se numa leitura dialética, tensional, entre o processo de adaptação e de autonomia. Conforme o próprio autor destaca, trata-se de um processo ambíguo do qual a educação não pode se desviar. O próprio ser humano é marcado por ambivalências, contradições e conflitos em seu interior; a sociedade em que vivemos é marcada por conflitos e contradições. Os conflitos, as contradições não podem ser ignorados no processo educacional que visa à autonomia, mas devem ser tornados conscientes, pois uma educação que ignora as contradições e os conflitos torna-se ilusória, e não contribui para a formação da personalidade humana autônoma.

Adorno destaca a necessidade da dialética para que a educação seja emancipatória a qual, na perspectiva adoniana, como postura teórica, é uma forma de interpretar a história, a vida, o mundo. Nesse sentido, trata-se de uma postura teórica que considera o conjunto do movimento histórico e suas contradições; que considera o ser humano em seu conjunto, com sua racionalidade, corporeidade, sensibilidade; que compreende os seres humanos como produtores de sua existência, num permanente processo de busca. Portanto, é uma forma aberta de pensar e conhecer, que não se fixa nem se conforma com a mera adaptação, mas busca sempre uma abrangência maior, a autonomia.

No documento 2007LeandroFurmann (páginas 87-90)