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O respeito às necessidades de cada região deveria ser determinante para as ações de saúde no Brasil. Na prática, entretanto, ainda falta muito para que tenhamos a regionalização da saúde como uma estratégia eficaz no controle e prevenção de doenças.

Para José Pozenato (2003, p. 150), o conceito de região abrange o espaço natural, com fronteiras naturais, mas é, antes de tudo, “um espaço construído por decisão”. O autor acredita que a região “é uma divisão do mundo estabelecida por um ato de vontade”, em que estão em jogo os interesses políticos. Já o termo regionalidade é definido por Pozenato como “uma dimensão espacial de um determinado fenômeno tomada como objeto de observação.” (2003, 151). As relações de regionalidade devem ser vistas, portanto, sob a perspectiva da região em que estão inseridas.

As fronteiras regionais, segundo o pesquisador João Cláudio Arendt, são difíceis de serem precisamente definidas, mas podem estar localizadas “no ponto em que um conjunto de valores começa a se diluir e a dar lugar a outro conjunto de valores culturais.” (2012, p. 86). Arendt (2012, p. 96), ao abordar as relações de regionalidade, salienta que elas traduzem as fronteiras culturais que transitam no tempo e no espaço. Ele explica que:

Enquanto especificidades, elas levam os indivíduos a aceitar ou a rejeitar os valores vigentes em uma escala regional. Em outros termos, ao habitar uma região, é possível identificar-se positivamente com algumas regionalidades e, ao mesmo tempo, entrar em conflito com outras. Regionalidades implicam atitudes de resistência ou de participação, de hostilidade ou de aliança, de rejeição ou de aceitação, atuando ora como obstáculos e limites, ora como continuidades e elos de ligação.

Já a regionalização é definida por Pozenato como um conceito de outra ordem. Pozenato explica que a regionalização é “um programa de ação voltado para o esclarecimento ou o reforço de relações concretas formais dentro de um espaço que vai sendo delimitado pela própria rede de relações operativas que vai sendo estabelecida.” (2003, p. 155). Ela depende, portanto, dos instrumentos de gestão e de um programa político que, para ser eficiente, aberto e abrangente, deve levar em conta as relações de regionalidade que acontecem em cada espaço.

De acordo com Pozenato, a regionalização e a globalização (cultural, política e econômica) preservam uma relação importante. Ele acredita que existe um deslocamento no conceito da região se levarmos em conta as interferências externas. Pozenato defende que essa alternância ocorre “quando a referência da região à nacionalidade começa a ser substituída, pelo menos em parte, pela referência à globalidade das relações políticas, econômicas e culturais.” (2003, p. 152).

O antropólogo Ruben Oliven, ao analisar a diversidade cultural no Brasil-nação, acredita que “nação e tradição são recortes da realidade, categorias para classificar pessoas e espaços e, por conseguinte, formas de demarcar fronteiras e estabelecer limites. Elas funcionam como pontos de referência básicos em torno dos quais se aglutinam identidades.”. (2006, p. 34). As identidades, segundo o autor, “são construções sociais formuladas a partir de diferenças reais ou inventadas que operam como sinais diacríticos, isto é, sinais que conferem uma marca de distinção.” (2006, p. 34). Para ele, as identidades acabam se moldando através de nossas vivências. Oliven cita que “assim como a convivência com os pais, nos primeiros anos de vida é determinante na construção da identidade individual, as primeiras vivências e socializações culturais são cruciais para a construção de identidades sociais, sejam elas étnicas, religiosas, regionais ou nacionais”. (2006, p. 34).

Para traçar a construção da identidade nacional versus local, Oliven faz uma avaliação histórica e econômica do Brasil desde a proclamação da República, período em que ele acredita ter iniciado um processo de descentralização política e administrativa. (2006. p. 39). De acordo com o autor, é a partir da República Velha que essa questão vem à tona: “provavelmente em decorrência das transformações sociais que estavam ocorrendo, durante a República Velha se acentua a tendência de pensar a organização da sociedade e do Estado no Brasil e de discutir a questão da nacionalidade e da região em nosso país.” (2006, p. 40).

Em sua narrativa, Oliven destaca alguns momentos cruciais desse processo, citando, inclusive, movimentos literários que contribuíram fortemente para a disseminação da cultura nacional. Um dos autores citados por Oliven é Machado de Assis, que no século XIX se

ocupava da questão da nacionalidade na literatura. (2006, p. 41). Oliven, porém, acredita que o movimento modernista de 1922 é que representou um marco nesse processo. Segundo ele, “por um lado, significa a reatualização do Brasil em relação aos movimentos culturais e artísticos que ocorrem no exterior; por outro lado, implica também buscar nossas raízes nacionais, valorizando o que haveria de mais autêntico no Brasil.” (2006, p. 41). Os principais autores do movimento evidenciam uma preocupação com a fragmentação do país.

Gilberto Freyre opta por um caminho inverso e lança seu Manifesto Regionalista. Oliven explica que o Manifesto redigido por Freyre, “desenvolve basicamente dois temas interligados: a defesa da região enquanto unidade de organização nacional e a conservação dos valores regionais e tradicionais”. (2006, p. 44). Com o Manifesto, Freyre e seu grupo têm a ambição de reorganizar o Brasil. De acordo com Oliven, essa preocupação é tema central do Manifesto e “decorreria do fato de o Brasil sofrer, desde que é nação, as conseqüências maléficas de modelos estrangeiros.” (2006, p. 45). O autor cita um importante assunto tratado por Freyre naquele momento e que ainda hoje está na pauta dos temas sociais: “como propiciar que as diferenças regionais convivam no seio da unidade nacional em um país de dimensões continentais como o Brasil”. (2006. p. 45).

Sobre esse questionamento Oliven aponta que as conclusões a que chegaram os modernistas é que “a única maneira de ser universal é ser nacional antes”. Oliven vai além e acredita que a noção equivale, de certa maneira, ao pensamento de Freyre: “o que Freyre está afirmando é que o único modo de ser nacional num país de dimensões como o Brasil é ser primeiro regional”. (2006, p. 46). Apesar do caráter conservador, de quem pertencia a uma aristocracia rural, como é o caso de Freyre, Oliven acredita que o Manifesto contém temas que continuam sendo bastante atuais no Brasil.

Outro fato importante para a análise entre as identidades nacionais e locais ocorre com a chegada do Estado Novo, decretado por Getúlio Vargas. O então Presidente coordena uma cerimônia de queima das bandeiras estaduais, dando ênfase e importância para a bandeira nacional. Oliven acredita que “a queima das bandeiras, que marca no nível simbólico uma maior unificação do país e um enfraquecimento do poder regional e estadual, pode ser vista como um ritual de unificação da nação sob a égide do Estado”. (2006. p. 53).

O término do ciclo militar no país e o processo de redemocratização marcaram um novo momento, em que a cultura começa a ganhar um novo sentido. Oliven (2006, p. 57) faz a seguinte avaliação sobre esse momento:

O que se observou no Brasil a partir de sua redemocratização foi um intenso processo de constituição de novos atores políticos e a construção de novas identidades sociais. Elas incluem a identidade etária (representada, por exemplo, pelos jovens enquanto categoria social), a identidade de gênero (representada, por exemplo, pelos movimentos feministas e pelos homossexuais), as identidades religiosas (representadas pelo crescimento das chamadas religiões populares), as identidades regionais (representadas pelo renascimento das culturas regionais no Brasil), as identidade étnicas (representadas pelos movimentos negros e pela crescente organização das sociedades indígenas), etc.

Ironicamente, justamente quando se iniciava uma tentativa importante de estabelecer novas relações, dissolvendo velhos tabus, abrindo fronteiras sociais e espaciais, é que surge uma nova epidemia: a Aids. Segundo a escritora Susan Sontag, “esse maior inter- relacionamento espacial, característico do mundo moderno, não apenas pessoal mas também social, estrutural, tornou-se veículo de uma doença às vezes considerada uma ameaça à própria espécie humana”. Para Sontag, “a AIDS é um dos arautos distópicos da aldeia global, aquele futuro que já chegou e ao mesmo tempo está sempre por vir, e que ninguém sabe como recusar”. (2007, p. 149).