• Nenhum resultado encontrado

A regressão social induzida pelos novos meios

No documento Public Sphere reconsidered (páginas 77-81)

Marshall McLuhan foi o primeiro a dar-se conta de que os meios electrónicos de comunicação, dando ênfase à audição e à recepção colectiva, contribuíam para a formação de novas tribos. Tal verificação vem aliás na sequência da tese mcluhaniana de que foi a literacia a destribalizar o homem. Enquanto o homem dependeu da linguagem oral para comunicar, ele manteve-se integrado num mundo circunscrito pela tribo:

The primary medium of communication was speech, and thus no man knew appre- ciably more or less than any other – which meant that there was little individualism and specialization, the hallmarks of “civilized” Western man. Tribal cultures even today simply cannot comprehend the concept of the individual or of the separate and independent citizen3.

A retribalização do homem através dos meios de comunicação eléctricos ocorre devido à torrente de informação em que o homem é submergido, fazendo com que tudo o que se passa no mundo não só também lhe diga respeito, mas o envolva de um modo completo. A instantaneidade da comunicação eléctrica aproxima radical- mente todos os acontecimentos passados em qualquer parte do mundo. A notícia de um acidente na China pode, graças à sua telegenia, ser levado ao interior da sala de estar pelo televisor, ao passo que um acidente numa cidade geograficamente próxima pode ser ignorado devido ao simples facto de não terem sido captadas imagens. O mundo transforma-se então numa aldeia global. A Internet veio potenciar ao extremo as forças tribalistas dos meios electrónicos. Com efeito, enquanto os meios electró- nicos tradicionais, rádio e televisão, ainda fornecem uma informação generalista que, 3Marshall McLuhan, “The playboy interview: Marshall mcluhan”, Playboy Magazine, (March), 1969.

numa lógica linear de um para muitos, serve públicos diferenciados, a Internet per- mite uma personalização radical dos conteúdos recebidos; só se recebe aquilo que se quer receber. É verdade que a Internet oferece como nenhum outro meio acesso à maior variedade de conteúdos, contudo a experiência mostra que o uso efectiva- mente feito da Internet se concentra num reduzido número de rotinas, de páginas visitadas e de pessoas contactadas. Quem hoje viaja pelo mundo fora munido de um computador portátil e tenha fácil acesso à Internet é como se viajasse envolto no seu mundo privado, qual caracol que leva sempre consigo a sua concha. Num país dis- tante, consultará os mesmos sítios de informação online que costuma consultar em casa, e manter-se-á em contacto, por email, por skype ou qualquer outro serviço de mensagens, com as mesas pessoas com que habitualmente comunica online. Mas mais do que qualquer outro meio, é o telemóvel que restaura as relações sociais típi- cas das pequenas comunidades, num “retrocesso aos modelos pré-modernos da vida social.”4Num ensaio notabilíssimo de 2004, intitulado “Towards a Sociological The-

ory of the Mobile Phone”, Hans Geser aponta a regressão social em curso devido à comunicação permanente e ubíqua dos telemóveis:

the cell phone can function as a powerful tool for re-establishing the fluid, casual modes of informal communication typical for traditional communal life – thus coun- teracting the losses of communalistic social integration caused by traditional media as well as the depersonalizations of modern urban life5.

De facto, a verificação quotidiana que fazemos sobre o uso dos telemóveis é que servem muito mais para comunicar com as pessoas mais próximas, como familiares e amigos, do que para comunicar com pessoas mais afastadas ou para iniciar contactos com estranhos. A comunicação móvel reforça os círculos mais restritos em que os indivíduos se inserem, nomeadamente a família e o grupo de amigos íntimos. Geser nota mesmo que o telemóvel dá origem a um novo tipo de comunalismo muito parti- cular, o de um comunalismo trans-espacial, em que a mobilidade requerida pela vida urbana é tornada compatível com a manutenção dos modos primordiais de integração social6.

O telemóvel tornou-se o cordão umbilical que mantém os indivíduos ligados à comunidade original apesar de fisicamente se encontrarem longe. O caso mais elu- cidativo é o das crianças e dos adolescentes que recebem dos pais um telemóvel de forma a ficarem sempre em contacto, o que aumenta em muito o sentimento de se- gurança dos pais em relação aos filhos. Só que os filhos, apesar de obterem dos pais uma maior liberdade de movimentos, se tornam mais dependentes ao ficarem sempre 4Hans Geser, Is the cell phone undermining the social order?, in: Thumb Culture, pp. 1–13. Bielefeld:

Transcript Verlag, 2005, p. 25.

5Hans Geser, “Towards a sociological theory of the mobile phone”, 2004, 11. 6ibid., 12.

contactáveis. Dantes o afastamento da casa, a ida para a escola, depois para a uni- versidade, significava uma progressiva autonomização do jovem. Longe dos pais, o jovem ficava entregue a si, obrigado a enfrentar o desconhecido, a reagir a imprevis- tos, a estabelecer contactos com estranhos, a formar o seu próprio juízo e a decidir-se por si, e, claro, a responsabilizar-se pelos actos. Enfim, era obrigado a autonomizar- se. Hoje, permanentemente conectado aos pais, o jovem terá a tendência de, perante uma dificuldade, ligar aos pais para pedir apoio, conselho, ou mesmo para perguntar o que deve fazer. Conectados a toda a hora e em toda a parte com os familiares e amigos, os indivíduos vão perdendo o hábito e a confiança de pensarem e decidirem por si. Tornam-se como crianças, esperando que outros lhes digam o que pensar e, so- bretudo, o que fazer. A consequência desta infantilização é a regressão social, a perda de autonomia individual sobre a qual assenta a sociedade. A ordem social, tal como a conhecemos, é assim posta em causa pela comunicação permanente, nomeadamente: • ao aumentar a influência dos laços primários e particulares em toda a esfera da

acção humana,

• ao reduzir a necessidade de organização e de coordenação temporais, • ao minar as instâncias institucionais de controlo e ao substituir

• os sistemas comunicativos assentes na localização por sistemas baseados na comunicação pessoal,

• ao dar suporte a papéis anacronicamente intrusivos7.

O exercício autónomo da razão esvai-se numa sociedade plenamente conectada. Em vez de tomar posição, o indivíduo tende a agir e a reagir em qualquer circuns- tância de acordo com o que dele é esperado por aqueles que lhe são próximos. Os telemóveis induzem, de certo modo, a um tipo de relação social semelhante ao das multidões, na acepção de Gabriel Tarde8.

As multidões são um agregado de tipo animal, onde a proximidade física dá ori- gem a uma disposição psíquica única. É o todo que age e reage, sem qualquer margem para a reflexão, a dúvida e a crítica. A força da massa impõe-se à vontade individual. Hoje, ao encontrarem-se permanentemente conectados uns aos outros, os indivíduos constituem também como que uma multidão virtual, a reagir instintivamente em unís- sono a uma informação, seja notícia ou boato. Concluo. A esfera pública tem como pressupostos a liberdade de expressão e o exercício autónomo da razão. Contraria- mente ao que Kant julgou, os dois não se implicam necessariamente. A tecnologia

7Geser, Is the cell phone undermining the social order? cit., p. 25. 8Gabriel Tarde, A Opinião e as Massas, Martins Fontes, São Paulo, 1992.

pode favorecer imenso a liberdade de expressão e o uso autónomo da razão, mas tam- bém os pode estiolar. A conexão permanente e ubíqua realizada pelos telemóveis é hoje causa objectiva de muito pensamento tutelado.

Bibliografia

GESER, Hans, “Towards a sociological theory of the mobile phone”, 2004.

GESER, Hans, Is the cell phone undermining the social order?, in: Thumb Culture, pp. 1–13. Bielefeld: Transcript Verlag, 2005.

KANT, Immanuel, “Resposta à pergunta: O que é o iluminismo?”, 1784.

MCLUHAN, Marshall, “The playboy interview: Marshall mcluhan”, Playboy Maga- zine, (March), 1969.

TARDE, Gabriel, A Opinião e as Massas, Martins Fontes, São Paulo, 1992.

TÖNNIES, Ferdinand, Community and Civil Society, Cambridge University Press, 2001.

Young adults' involvement in the public sphere: A

No documento Public Sphere reconsidered (páginas 77-81)

Documentos relacionados