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Nas relações interpessoais, em muitas situações, só conseguiremos tratar a nós mesmos e ao outro como fim em si mesmo se conseguirmos estabelecer uma relação de reciprocidade. Uma relação recíproca requer, que as pessoas nela envolvidas sejam livres, conscientes de sua racionalidade e autonomia e, conseqüentemente, cada qual tome a si mesmo e ao outro como responsável pelas ações e atitudes do tempo presente e passado, como também, saiba pressupor a si mesmo e ao outro como responsável pelas ações e atitudes assumidas para o futuro. A fim de vivenciarmos uma relação dessa espécie, é preciso que exista o outro com quem possamos interagir, mas, para fazer acontecer a interação, é necessário sabermos agir de acordo com nós mesmos. Korsgaard, ao falar sobre o reino dos fins, variante da terceira formulação do imperativo categórico, comenta que os objetos possíveis de legislação nesse reino devem ser escolhidos sob as restrições de uma possível relação recíproca que pode ser definida como uma espécie de amizade com todos41. As relações de reciprocidade exigem o cultivo do respeito, do amor mútuo e igual, cujas características, geralmente, são possíveis de ser encontradas em pessoas adultas. Nessa espécie de relação interpessoal, há a exigência intrínseca de que nós nos coloquemos sob a perspectiva do outro, para que as razões e os objetivos de cada um sejam respeitados e valorizados, sem que os objetivos de cada qual ou de um só sejam anulados. Desse modo, podemos compartilhar com Korsgaard que, ao tomarmos alguém como responsável, estamos preparados para “trocar a atividade individual sem leis pela reciprocidade...., para aceitar promessas, oferecer confidências, trocar votos, cooperar num projeto, entrar em um contrato social, ter uma conversação, fazer amor, ser amigo ou se casar”42.

Kant escreve sobre duas relações interpessoais que requerem a reciprocidade para possibilitar a efetivação concreta dessa vivência, a saber; a amizade e o casamento.

41 KORSGAARD, 1997, p. 193. 42 KORSGAARD, 1997, p. 189.

Em seqüência será elaborada uma breve análise sobre a relação de amizade no entendimento de Kant e com algumas reflexões de Cícero sobre esse tema, abordando inicialmente, o que Cícero escreve referente a essa espécie de relação tão especial.

2. 2. A relação de reciprocidade na amizade

A amizade é um sentimento de fidelidade e de bem querer que nos une a outra(s) pessoa(s) da(s) qual(is), ao mesmo tempo, recebemos, em retribuição, esse mesmo tratamento, ou um tratamento semelhante. É uma relação humana cuja origem pode apresentar motivos diferentes e sua concretização também pode diferir de uma situação para outra. No entanto, é necessário que haja nessa relação o bem querer, isto é, o amor ou a afeição, em alguma medida, como também o respeito, visto que através deste último, exercita-se a prática da moralidade e se constrói o bom caráter, cuja característica se faz presente nessa espécie de relação humana.

Para Cícero, escritor estóico do qual Kant era leitor, e em quem pode também ter se inspirado ao tratar desse tema, o que faz com que um ser humano procure uma relação de amizade, é “a inclinação da alma a ligar-se por afeição” a outro, isto é, motivado pela tendência da própria natureza a buscar o estreitamento das relações humanas e não pela insuficiência de meios para sobreviver, ou em outras palavras, pelo cálculo das vantagens advindas dessa relação. Certamente que muitas vantagens surgem em conseqüência de uma boa amizade, porém elas não podem ser o motivo da origem da mesma, visto que o proveito proporcionado pela amizade encontra-se “na própria afeição que inspira”43. No entendimento de Cícero, portanto, é a natureza “que cria o sentimento de afeição” e a amizade “nasce da simpatia, quando a honestidade44 se manifesta”45.

Cícero, em seu livro intitulado Sobre a amizade, repete por várias vezes, nas palavras de Caio Lélio, pois o livro é apresentado em forma de diálogo entre Caio Fânio, Quinto Múcio, Cévola e Caio Lélio, que a amizade é uma relação humana possível de ser vivenciada

43 CÍCERO, 2006, IX, 29-31.

44 Nesse ataque frontal aos epicuristas (que são comparados a animais, por privilegiarem o prazer em si), Cícero diferencia o mero instinto (que também se origina na natureza, tal como a amizade), destacando o valor supremoda virtude. Vale notar que esta – a virtude – também provém, para Cícero e estóicos, da natureza (CÍCERO, 2006, IX, 32).

somente por pessoas de bem46. Caio Lélio47 fala sobre a amizade a partir de sua vivência com seu amigo Cipião, o qual, no referido momento, fazia alguns dias que havia falecido. Exorta aos que o estão escutando “a colocar a amizade acima de todos os bens terrestres, pois não há nada mais conforme com a natureza e mais importante, tanto na prosperidade como na adversidade”48. Enfatiza que a natureza é a nossa melhor guia na vida e acredito que, segundo o seu entendimento, pode-se dizer que a natureza nos inclina para buscar o convívio social, o qual requer a proximidade de uns dos outros para estreitar as relações. Observa que “preferimos os concidadãos aos estrangeiros, os parentes aos estranhos; entre nós e nossos parentes a própria natureza criou laços de amizade”, os quais nem sempre são sólidos de modo suficiente49.

Tanto Cícero quanto Kant entendem os seres humanos como inclinados a viver em sociedade e a proximidade das pessoas estreita os vínculos de ligação entre as mesmas. Inclinado pela sua condição natural, o ser humano busca a companhia de seu semelhante, um outro ser humano, porque não se sente confortável e completo estando só. Essa tendência à sociabilidade é anterior à relação de amizade, a qual seria uma união mais profunda, (principalmente se nos referirmos à amizade moral), em relação àquela que estabelecemos nas relações do convívio social, isto é, da arte de se relacionar bem em sociedade. O ato do convívio, seja no âmbito público ou privado, é o espaço onde se estabelecem as relações humanas, entre as quais, a amizade pode ser uma delas, se considerarmos os diversos tipos de relações humanas. Segundo Cícero, nos séculos que se passaram antes de sua existência, pode-se contar com apenas “três ou quatro pares de amigos”50.

Para Cícero, a afeição é o ingrediente indispensável numa relação de amizade. Segundo ele, “os homens de bem sentem em relação aos homens de bem uma afeição, de certo modo inevitável, e que é a fonte que a natureza institui para a amizade”51. Ele explica que existe uma “atração e sedução na semelhança de natureza” das pessoas de bem. Assim, ele escreve: “os homens de bem gostam dos homens de bem e a

46 CÍCERO, 2006, V, 18. 47

A exposição de Lélio baseia-se na tese do estoicismo, segundo a qual toda a atividade humana deve buscar a virtude como fim, num caminho que tem na natureza o seu modelo. ( CÍCERO, 2006, V, 17). 48 CÍCERO, 2006, V, 17. 49 CÍCERO, 2006, V,19. 50 CÍCERO, 2006, IV, 15. 51 CÍCERO, 2006, XIV, 50.

eles se juntam como se estivessem ligados pelo parentesco e pela natureza”52. Segundo Cícero, o homem de bem também pode ser chamado de sábio e é somente nele que se encontra a capacidade de observar essas duas regras que devem ser seguidas numa relação de amizade: a primeira é “evitar tudo o que seja fingido, tudo o que seja simulado; pois um coração franco, até mesmo quando odeia abertamente, é mais nobre do que o fingido, que esconde os seus sentimentos”; a segunda refere-se a “não se limitar a rejeitar as acusações feitas por alguém contra seu amigo, mas também, não ser desconfiado, sempre propenso a acreditar que o amigo seja culpado de algum delito”. É fundamental, nessa relação, a “brandura nas palavras e no caráter”53. Essa bondade entre os seres humanos “estende-se, também, à multidão”, porque, segundo Cícero, “a virtude não é desumana, egoísta, orgulhosa, chegando, muitas vezes, a proteger povos inteiros e a cuidar de seus interesses, e, certamente, não o faria, se evitasse a multidão”54.

Cícero considera a amizade superior à riqueza, à saúde, ao poder, às honrarias, aos prazeres, porém a sabedoria é superior a ela. No entanto, é justamente a virtude, que para muitos é considerada como o bem supremo, que gera e conserva a amizade, sem a qual a amizade não sobrevive. Cícero literalmente afirma que sem a virtude “não pode existir, de maneira alguma, qualquer amizade”55. Ele observa que se refere às pessoas da vida real, isto é, do cotidiano, não àquelas que não existem em nenhum lugar. Ainda assim, esclarece que se refere aquela amizade verdadeira e perfeita, não àquela que é apenas medíocre, embora, também, esta tenha os seus encantos. Amigo é aquele em quem podemos confiar, como em nós mesmos. A felicidade, segundo ele, só tem proveito se temos com quem compartilhá-la e a adversidade se torna mais fácil de suportar, se contamos com alguém em quem podemos confiar. Assim sendo, a amizade “compreende um sem-número de bens”, enquanto os demais bens oferecem cada qual “uma vantagem particular”, a saber: “a riqueza traz meios de satisfazer as nossas necessidades materiais, o poder traz consideração, as honrarias, louvores, os prazeres, gozos; a saúde, a libertação da dor e a plena disposição de nossas forças físicas.”56.