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A relação entre o Anel de Moebius e a Arte de Cortázar

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3 O DISCURSO LITERÁRIO DE CORTÁZAR E SUA RELAÇÃO COM OUTROS

3.1 A relação entre o Anel de Moebius e a Arte de Cortázar

Mas o aberto continua aí, pulsação de astros e enguias, anel de Moebius de uma figura do mundo onde a conciliação é possível, onde anverso e reverso deixarão de se desgarrar, onde o homem poderá ocupar o seu posto nessa jubilosa dança que alguma vez chamaremos realidade (CORTÁZAR, 1972)7.

A partir das reflexões feitas por Cortázar, em seu livro “Prosa no observatório,” faremos uma correspondência entre o significado da expressão anel de Moebius e o estilo literário do escritor, ressaltando que essa correspondência se estende para as artes em geral.

7 Os dizeres de Cortázar serviram de epígrafe para a revista ensaística “Morel” feita por Lucila Castilho Thedoro

para a obtenção do título de bacharel em Comunicação Social - Jornalismo, da Universidade Estadual Paulista. (repositorio.unesp.br), 2014.

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Conhecida como fita ou anel de Moebius a expressão refere-se a uma figura geométrica construída através da colagem de duas extremidades de uma fita que, ao dar meia volta em uma delas, forma uma estrutura semelhante ao número oito.

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Figura 1: Anel de Moebius

Fonte: www.maraeducare.blogspot.com

O interessante a ser destacado sobre essa figura é que se trata de um tipo especial de superfície, pois, não existe lado de dentro nem de fora, há apenas um único lado e uma única borda formando uma curva fechada, ou seja, os lados, interno e externo, do anel são interligados.

Para termos uma ideia sobre a formação dessa estrutura, se fosse possível caminhar pelo anel, ora estaríamos na parte interna ora estaríamos na parte externa, num movimento contínuo do caminhar, sem nenhuma necessidade de fazer qualquer travessia. Mas, qual a relação que uma figura geométrica, voltada para o estudo da matemática, pode estabelecer com os sistemas relacionados à arte?

Embora pareça existir um abismo entre estas ciências, é perfeitamente possível vislumbrar na arte contemporânea características que se assemelham ao anel de Moebius. Inclusive, podemos pensar que Cortázar usou, metaforicamente, a figura do anel de Moebius, tanto para questionar a realidade quanto para demonstrar a dinamicidade da própria estrutura da arte.

Quando Cortázar diz que o anverso e reverso ainda serão um só, o escritor nos sugere duas reflexões: a primeira delas se refere à ideia de que apesar da arte se constituir em sistemas diferentes (música, cinema, pintura, escultura, literatura etc), assim como o anel de

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Moebius, ela pode caminhar por “todos os lados”, pois, os sistemas são interligados entre si, ou seja, não há limites intransponíveis para a arte.

A segunda reflexão induz a um questionamento sobre o sentido de realidade. Cortázar parece não concordar com os limites que demarcam a esfera da realidade e da fantasia; a impressão que se tem, é que para o escritor esses dois universos não são indissociáveis, e, tampouco estão alheios ao sentido de verdade.

Na visão poética de Cortázar, a realidade e a fantasia se estruturam em nossa vida de forma semelhante à estrutura do anel de Moebius, ou seja, transitamos cotidianamente entre esses dois mundos sem perdermos nossa essência, a realidade e a imaginação são duas esferas que constituem um único ser.

O escritor ao mencionar a expressão “o aberto continua” confirma a teoria de que a arte está sempre em movimento, disposta não somente à uma multiplicidade de interpretações, concernentes ao próprio fazer artístico, mas, também, de uma multiplicidade de outras relações, tanto no campo das artes quanto em relação às outras áreas do conhecimento.

Pela sua dinamicidade a arte torna-se libertadora, pois, trilha os passos de uma inventividade sem limites, se desprendendo da obrigação de se enquadrar nos padrões estéticos convencionais.

A arte estrutura-se sob uma base insólita, no entanto, ao fazer uso de uma linguagem cotidiana não abandona características da realidade; sua emancipação permite arriscar-se no desconhecido, alçar voos em busca de novos horizontes, trazendo encantamento aos olhos de quem a aprecia.

Cortázar trouxe a figura do anel de Moebius para as reflexões literárias porque encontrou uma similaridade estrutural entre elas; pois, assim como o anel de Moebius se constitui sob o anverso e reverso de uma estrutura mantendo-se unívoca, a arte também se constitui da união dos mundos real e imaginário.

Ao analisar a expressão de Cortázar: “dança que alguma vez chamaremos realidade” fazemos a seguinte inferência: a palavra “dança” está sugerindo movimento, instabilidade, imprecisão, linguagem visual, oscilação etc. A palavra dança, associada a um pronome indefinido, seguido do verbo chamar no futuro, têm a função semântica de reforçar o sentido de que assim como a dança, a realidade também é incerta e instável. A dança, com toda sua carga semântica, associada ao pronome indefinido “alguma”, que indica somente a possibilidade de “alguma vez”, não definindo “quando”, ao se unir a um verbo no futuro,

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representa uma realidade indefinida, visto que o futuro é uma incógnita diante da fragilidade da vida.

A imprevisibilidade, o desprendimento, a liberdade de criação, o sentimento de incerteza e de surpresa na execução das atividades são características que podemos associar tanto aos passos de uma dança quanto ao estilo musical do jazz, por exemplo.

Essa similaridade entre as características da música e da dança também podem ser identificadas na pintura, na literatura, no cinema etc, porque apesar de serem sistemas artísticos distintos, de se constituírem dentro de uma singularidade motivada pela sensibilidade do artista, há uma cadeia de relações sensíveis ao pensamento humano, fazendo com que as artes se iluminem.

Ao associar a dança com a realidade o escritor quer demonstrar quão frágil é a base que estrutura esta realidade, insinuando que a vida, assim como a arte, se constitui num jogo de duplicidade onde o real e o imaginário, e, o consciente e o inconsciente representam as duas faces de uma mesma moeda.

No artigo “Antonin Artaud: O corpo sem órgãos” de Nara Salles (2010), publicado no jornal “O Percevejo”, a escritora trata sobre os procedimentos inventivos da arte fazendo uma relação de similaridade bastante interessante entre a fita de Moebius e a temática do “Corpo sem Órgãos”, do poeta francês Antonin Artaud.

Segundo a autora, para Artaud, o corpo possui um enorme “fundo falso” (SALLES, 2010, p. 06) onde se guarda as percepções humanas e suas crenças. Este corpo pode ser considerado uma espécie de sacrário do pensamento, dos desejos, dos sentimentos, lugar de revelações, onde se esconde as perspectivas internas etc. No entanto, quando esse corpo encontra-se na condição de um “corpo sem órgãos” é o momento em que as mudanças internas irão acontecer, num procedimento de reestruturação da prática cotidiana, criando novos caminhos de integrar-se com o mundo, sendo este corpo sem órgãos uma área infinita que se desdobra sobre si mesma, estando dentro e fora ao mesmo tempo.

Nas reflexões sobre o “Corpo sem órgãos”, a escritora estabelece uma semelhança com o anel de Moebius relacionando-os quanto ao modelo estrutural que os constitui; pois, ambos passam pelo mesmo processo de transformação, desdobrando-se sobre si mesmos, num jogo de duplicidade em que, ao mesmo tempo, o eu passa a ser o outro, o fora passa a ser o

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dentro, criando, assim como na arte, um giro9 que nunca se fecha e que está em constante metamorfose.

Devido ao próprio formato da fita, a autora alude o objeto à representação simbólica de um tempo mítico, que pode ser entendido como a “existência de um tempo contido dentro do outro e as sobreposições de ações no tempo e nos espaços, pois, no tempo mítico não existe um espaço único, mas a coexistência de vários” (SALLES, 2010, p. 06).

Esse mesmo tempo mítico pode ser visto em o “Corpo sem órgãos”, no momento em que este corpo rompe com o sentido de corpo organizado, formatado, disciplinado para dar conta das tarefas realizadas no cotidiano. É com o rompimento dessas funções habituais, com a quebra dos limites estabelecidos pela convenção social, se colocando “no tempo e no lugar da ação simbólica, fora da psicologia, fora da representação de si, fora da imagem constituída do eu no mundo” (SALLES, 2010, p. 07) que este “Corpo sem órgãos” estrará em consonância com a fita de Moebius e, consequentemente, estará em conformidade com o sentido da arte, e, da própria essência do ser.

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