• Nenhum resultado encontrado

4.2 REPRESENTAÇÃO DO TEMPO

4.2.4 A Relação entre os três tempos

Como já ressaltamos antes, a respeito de Figura na sombra, uma das realizações mais interessantes da tetralogia de Assis Brasil é a intersecção entre as diversas categorias do tempo. Inicialmente, nos propusemos a pensar essas categorias como passado, presente e futuro que se interligariam para configurar a diegese da narrativa. O resultado desse recurso pôde ser apresentado no capítulo três, principalmente na etapa em que analisamos Música perdida e Figura na sombra. Neste capítulo, ao pensarmos sobre a perspectiva ontológica do tempo e sua manifestação na narrativa, nos apropriamos dos argumentos teórico-críticos de Ricoeur sobre o tempo. Como já afirmamos anteriormente, as três perspectivas do tempo ricoeuriano, ou seja, o tempo individual, histórico e cosmológico, nos ajudam a pensar o elemento temporal em narrativas ficcionais, e por consequência, na narrativa assisiana. Neste sentido, recorremos a Ricoeur porque sua sistematização nos permite refletir sobre as múltiplas manifestações temporais utilizadas por Assis Brasil para retratar a peculiaridade do espaço pampeano, bem como aprofundar a psicologia das personagens.

Embora, por vezes, as narrativas de Visitantes ao Sul privilegiem uma ou outra perspectiva temporal, o sucesso delas está justamente no agenciamento entre as três categorias de tempo, implícita ou explicitamente. Tomemos como exemplo o

tópico acima, no qual Mendanha contempla o céu, e sente-se o primeiro homem a fazê-lo. Como já assinalamos, no momento mesmo da análise do excerto, ali se intercalam explicitamente a percepção individual do tempo e a percepção cosmológica. No entanto, implicitamente é o tempo histórico, representado pela tensão que ronda o acampamento de guerra, que propicia essa “ integração”.

Outros exemplos, nesse sentido, podem ser encontrados nas outras obras da tetralogia. Em O pintor de retratos, por exemplo, um desses momentos ocorre quando Sandro em meio à guerra e já prisioneiro, encontra momentos para vivenciar a paz do pampa: “Quando sumiram na primeira coxilha, instalou-se uma paz imensa, como se não existisse a revolução. Ouviam-se até os pássaros e os farfalhar dos maracás” (ASSIS BRASIL, 2002, p. 129). O que vem a seguir, ou seja, o barulho da guerra, desperta a personagem do seu alheamento do tempo histórico, que também nesse caso, é complemento da sua experiência pessoal e da manifestação do tempo cosmológico.

No caso de o Historiador de A margem imóvel do rio, suas sensações durante a viagem ao Sul associam diretamente a faceta do tempo cosmológico à percepção do tempo individual, embora saibamos que a motivação para essa viagem remete a um evento histórico de vinte anos antes, e a uma incumbência dada pelo próprio Monarca.

Logo no início da viagem fica bastante evidente na relação entre os sentimentos da personagem e o clima: “Ao descerem os paralelos geográficos rumo ao Sul, mais o tempo esfriava. Em frente à foz de Mampituba foi preciso tirar da mala a casaca de lã. Era um frio não completamente metereológico, mas algo mais amargo,

como um desamparo e um afastamento. (ASSIS BRASIL, 2003, p. 59). O inverno

meteorológico é também um inverno da alma da personagem que viaja ao Sul em um momento de profunda dor existencial. Para o Historiador, a chegada ao Rio Grande do Sul acentua sua crise existencial e, como já destacamos, acaba por mergulhá-lo em um tempo cósmico.

Por vezes, nas narrativas da tetralogia, o tempo histórico se deixa tomar pelo tempo cosmológico, como no caso da visão das ruínas das Missões45, um espaço

45 O tratado de Madri (1750) determinou a troca de territórios entre portugueses e espanhóis. Os

portugueses da Colônia de Sacramento que pertencia a Portugal deviam imigrar para a região ocupada por índios e jesuítas espanhóis; os índios, no entanto se recusaram a deixar o local e foram massacrados pelos soldados dos dois países. Esse genocídio histórico já foi abordado anteriormente

construído, e anteriormente habitado, no qual a natureza reocupou seu lugar, entregando as consolidações do tempo humano à intempérie das eras e da natureza:

As Missões são ruínas.

Vistas ao amanhecer e ao poente propagam uma luz irreal e argilosa. Parecem ainda vivas. Em pleno o sol, são pedras de arenito rosado empilhadas numa precária arquitetura, na qual a imaginação preenche o que foi desmantelado pelas eras.

Don Amado Bonpland aproxima-se.

As raízes de umbu e figueiras-bravas constringem com violência as colunas, esquartejando-as; depois sobem pelos capitéis dóricos, ganham as arquitraves, os frisos, as cornijas, e dali erguem-se num céu de inverno, oferecendo-se com graça e lento vagar ao vento do Sul (ASSIS BRASIL, 2009, p.196).

Observamos que embora no excerto acima ocorra a relação entre o tempo histórico (a destruição dos Sete povos das Missões; construção barroca) e o tempo cosmológico (as eras; a natureza invadindo as ruínas; céu de inverno e vento Sul) está subentendido a presença do elemento humano (Bonpland; o próprio narrador) religando esses dois tempos, por meio de sua percepção.

Em Figura na sombra, a singularidade da vida de Aimé, alinha, também, a perspectiva individual à perspectiva histórica e cosmológica do tempo:

Sempre improvisando minha vida, busquei-me na multidão que assistiu à morte de Luís XIV, depois nas úmidas selvas amazônicas, no pico do monte Chimborazo, nos jardins à inglesa da princesa Josefina, na longa prisão que me impôs o doutor Francia, no largo e majestoso pampa gaúcho, na ajuda aos rebeldes farroupilhas e na Santa Casa de Misericórdia. No melhor momento de minha vida, aliei-me a esse belo e admirável, o nosso amigo, o barão Alexander von Humboldt, ao qual abri os caminhos da anatomia, da fisiologia, dos vegetais e dos bichos do mundo (ASSIS BRASIL, 2012. p. 18- 19).

No panorama que traça de sua vida aparecem explicitamente tanto a presença do tempo histórico, marcado pela referência a nomes como os de Luís XIV, da imperatriz Josefine, e do doutor Francia, quanto a presença do tempo individual marcado pela experiência do “improviso” e da constante busca a que associa sua vida. A experiência do tempo cosmológico fica subentendido na relação com a natureza “das selvas amazônicas” e do pampa gaúcho.

em diversas obras ficcionais, citamos aqui como exemplo, o poema épico Uraguay, de Basílio da Gama e o primeiro volume do romance O tempo e o Vento (“O Continente”), de Erico Verissimo.

A relação entre as perspectivas temporais em Visitantes ao Sul nos possibilitam pensar o tempo ontologicamente, e embora esse não seja o objetivo principal deste trabalho, essa reflexão contribui para pensarmos como a narrativa ficcional recria a experiência do tempo. Lembrando que segundo Ricoeur (1997, p. 22) “a operação narrativa responde à aporia da temporalidade que consiste em segurar as duas pontas da corrente temporal: tempo da alma e o tempo do mundo”.

É por meio da operação narrativa, da constituição da intriga, seja ela ficcional ou não, que construímos um espaço na linguagem onde a percepção do tempo individual estabelece uma ponte com o tempo do mundo. Essa ponte como sabemos é o tempo histórico, que mesmo em sua forma ontológica se constitui também em discurso. Assim, ao pensarmos sobre essa categoria narrativa buscamos entender com a narrativa particulariza e universaliza nossas concepções temporais.

Desta forma, as reflexões específicas sobre o tempo buscam criar caminhos para pensar genericamente a narrativa histórica. Isso explica porque ao longo de nossa reflexão optamos por observar a manifestação do tempo tendo em vista a referência aos eventos históricos, ainda que, como vimos nesse capitulo, os romances se constituam também das percepções íntimas sobre a passagem do tempo e de sua relação com uma espécie de tempo mítico, contextualizado pelo e no espaço do pampa.

Essas reflexões, todavia, não esgotam as possibilidades de pensar o tempo em outros aspectos. Além da ênfase aqui escolhida, há uma série de pressupostos que deixamos de lado, por exemplo, a importância do leitor em todo o processo de apreensão da ontologia do tempo.

Para finalizar esse subcapítulo, retornemos a Agostinho, e justamente à sua teoria sobre a eternidade, mostrando que todo o estudo fenomenológico acerca do tempo não esgota a crença intuitiva acerca das percepções alma. Como homenagem citamos “o fim-passagem” do Maestro Mendanha que, assim como Agostinho, nunca abdicou da crença na eternidade, esse tempo fora do tempo, pertencente ao universo do divino, capaz de completar todas as lacunas da temporalidade do homem e do mundo para aqueles que creem:

Se um hino foi minha vazia glória neste mundo, hoje meus ouvidos mortos escutaram o que sempre esteve lhes reservado. Com esta música me apresento perante Deus. Ele perdoará minha soberba. Ele sabe que agora sou, e para sempre, um artista (ASSIS BRASIL, 2006, p. 220).

Assim, embora o tempo histórico, cosmológico e individual expliquem muitas coisas, só o tempo da eternidade responde aos anseios metafísicos de Mendanha, de Agostinho e de muitos outros homens da ficção ou da vida real.