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SOBRE UMA MUDANÇA ESTILÍSTICA

INTERMIDIALIDADE, DRAMA “EM CRISE” E DRAMATURGIA NÃO ARISTOTÉLICA: ANÁLISE-INTERPRETAÇÃO DE TARSILA

2.2 A relativização e o distanciamento da ação

Gerd Bornheim ensina que uma das maneiras utilizadas por Brecht para se atingir a relativização da ação se dava mediante a ação dramática enquanto paradigma de uma dada realidade social, na medida em que a ação particular pode remeter a algo universal:

Quando o espectador vê a ação cênica não deve pensar apenas nela, mas também na vida social concreta, extrateatral, que se encontra na base daquela ação. Nesse sentido o que se vê no palco é relativizado, a ação cênica se torna relativa a algo que ela não é, à própria vida social (BORNHEIM, 1992, p. 319).

Desse modo, o universal aparece refletido no particular. Como o intuito primeiro da peça didática brechtiana é o despertar do espectador, promovendo uma transformação da realidade social, essa dicotomia particular/universal em

Brecht se presta a questões que envolvem as relações sociais em uma sociedade capitalista. Por sua vez, em Tarsila, essa dicotomia não visa diretamente à tal mudança, sobretudo porque o assunto de que trata a peça não traz como centro este tipo de discussão político-social, muito embora algumas questões sejam aludidas, como a crise econômica de 1929, a Revolução de 1930 e o Comunismo. Contudo, essas questões aparecem menos como situações a serem problematizadas do que como uma maneira de se ilustrar os acontecimentos contemporâneos à artista. Talvez o cerne de Tarsila esteja ligado mais ao nosso desenvolvimento cultural e estético, tendo os desdobramentos do Modernismo como pano de fundo. Assim, a biografia de Tarsila pode ser lida como um episódio de uma narrativa ainda maior que é a da história do Modernismo brasileiro, principalmente porque, na medida em que são narrados os acontecimentos individuais da vida da pintora, são apresentados também o nascimento e desenvolvimento desse movimento:

VOZ DE HOMEM EM OFF – Mas a senhora não participou da Semana.

TARSILA – Não. Eu só cheguei meses depois. (AMARAL, 2004, p. 14)29

OSWALD – Se você quer saber, era o Lobato que devia ter sido o chefe do nosso movimento, e não a besta do Graça Aranha! ANITA – (Incrédula) O homem que acusou minha arte de anormal e mentirosa, chefe do movimento modernista!? Vocês estão malucos!

MÁRIO – O Lobato estava num momento desinspirado! Mas quem escreveu Urupês caminha à nossa frente! ( p. 15)

Nos excertos acima, temos informações sobre a Semana de 1922 – realizada nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro, no Teatro Municipal de São Paulo. O primeiro exemplo noticia a ausência de Tarsila, que só estará no Brasil em junho do referido ano. Através do segundo exemplo, temos a informação do líder do movimento modernista, Graça Aranha, muito embora, Oswald e Mário concordassem que Lobato poderia ter assumido esta função, talvez pelo fato de já se encontrar na escrita regionalista de Urupês, livro de 1918, o rompimento com a imagem folclórica e mistificadora do homem do interior, demonstrando um nacionalismo progressista e polêmico, como afirmou Neide Rezende (2006,

29 Todas as citações serão extraídas desta edição, portanto, a partir de agora informaremos apenas a paginação.

p. 19). Sobre a presença de Graça Aranha em São Paulo na época do evento e sobre sua participação como “comandante-chefe”, Rezende (2006, p. 11-12) nos informa pelo menos três possíveis versões: uma primeira, sobre um suposto envolvimento do escritor com a irmã de Paulo Prado, motivo de sua ida a São Paulo; uma segunda, ligada ao próprio Paulo Prado, seria o interesse de Graça Aranha pela indústria cafeeira; há, também, a terceira versão do pintor Di Cavalcanti, que afirma que o escritor desejava conhecer a mocidade literária e artística paulista.

A fala de Anita, por sua vez, revela um fato anterior a 1922: a exposição, realizada em São Paulo, de cunho expressionista, comandada por ela em dezembro de 1917, e que foi severamente criticada por Monteiro Lobato. Essa exposição acabou se tornando um “episódio-símbolo” (REZENDE, 2006, p. 16) para os modernistas. Para Sérgio Miceli, as reações suscitadas pela exposição de Anita, sobretudo, a crítica ferrenha de Lobato

talvez devam ser interpretadas como manifestações de resistência dos defensores de um ideal de arte brasileira realista contra o afluxo de um estilo artístico “moderno” de importação, ou, melhor, no caso de Anita, de uma produção fundamente marcada pelas vanguardas na dicção autoral de uma artista representativa do grupo imigrante majoritário. (2003, p. 111)

De outro lado, Rezende apresenta uma outra conjectura: a crítica de Lobato teria sido encomendada pelos familiares de Anita que estariam

inconformados com a autonomia imprópria da artista, num país que se iniciava numa contradição insolúvel: um Brasil pré- burguês, rural, de estrutura de pensamento rígida e arcaica, e a modernização imposta pela nova era industrial, que promovia uma rápida alternância de valores e comportamento. (2006, p. 19).

Mais outros exemplos:

MÁRIO – (Para os dois) Parece que essa amigação de vocês está sendo muito boa pros dois. As Memórias Sentimentais de João

Miramar é a mais alegre das destruições perpretadas na

literatura brasileira! (p. 34).

VOZ DE HOMEM EM OFF – Então a senhora foi a origem do movimento antropofágico?

TARSILA EM OFF - No começo parecia brincadeira, mas o Raul Bopp insistiu no movimento e o Oswaldo acabou redigindo um manifesto!

OSWALD - Tupi or not Tupi that is the question! Contra todas as catequeses. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do Antropófago. O que atropelava a verdade era a roupa. Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade. Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

SOBRE IMAGENS DA REVISTA DE ANTROPOFAGIA, A VOZ DE TARSILA EM OFF – Criaram até a Revista de Antropofagia, que era dirigida pelo Alcântara Machado. Muita gente da Semana, mas o Mário estava meio relutante!

OSWALD – A proposta é acabar com a Bestética, organizar uma descida, e comer todas as Academias de Letras! ( p. 47)

No primeiro exemplo, temos menção ao romance de Oswald de Andrade, escrito em 1924, As Memórias Sentimentais de João Miramar. Já o segundo exemplo, informa sobre A Revista de Antropofagia, fundada em 1928, porta- voz das ideias antropofágicas de Oswald de Andrade e Raul Bopp, fortemente inspiradas no quadro Abaporu,30 que Tarsila oferecera a Oswald como presente

de aniversário. Por se opor à criação de mais um movimento, Mário não quis se aliar a Oswald, motivo que gerou grande insatisfação neste que passou a proferir as “mais infames injúrias” contra aquele, resultando no rompimento dos dois. Mário jamais aceitou as desculpas de Oswald. Neste exemplo há, também, uma particularidade recorrente na escrita de Maria Adelaide Amaral nesta peça: a “colagem” de textos que são incorporados às falas das personagens, tal qual ocorre na primeira fala de Oswald construída mediante recortes do Manifesto Antropofágico, redigido por ele no primeiro volume da Revista de

Antropofagia, em maio de 1928. Sobre esta característica falaremos mais

adiante.

Assim, nos excertos acima foi possível observar que paralelo aos acontecimentos pessoais da artista encontramos referências não somente ao Modernismo, como aos acontecimentos anteriores a ele, como a Exposição expressionista de Anita Malfatti em 1917, e posteriores, como a Revista de

Antropofagia, liderada por Alcântara Machado. Esse tipo de contextualização

não teria como ser suprimido de uma obra que ficcionaliza uma das figuras mais representativas do nosso Modernismo, sobretudo devido à contribuição que o

amadurecimento de sua pintura proporcionou à nossa estética artística modernista. Desta forma, a progressão dramática não se concentra na ação, que, aqui, é relativizada pela narração de fundo histórico, construída pelo diálogo ao expor diferentes pontos de vista sobre a estética modernista. Assim, a dramaturga espraia sobre a construção das personagens tais discussões, que tomam o centro daquilo que chamaríamos de ação – na verdade, o que Peter Szondi (2001, p. 103) chama de “relativização do drama”, mediante a introdução de um “eu-épico”, a voz em off.

No tocante à intermidialidade, a voz de Tarsila em off é permeada pelo recurso à projeção de imagens sobre a Revista de Antropofagia, permitindo, portanto, uma concomitância narrativa, uma vez que, à narração verbal em off, amalgama-se uma outra, visual, proporcionando ao leitor/espectador novas possibilidades de apreensão e percepção do texto/espetáculo, como muito bem assinalam GOMES e ARAÚJO (2009, p. 282):

As imagens, em geral, fotografias de reuniões, viagens, retratos de família, e até de móveis e objetos, se organizam temporalmente em consonância com a narração e apontam para outras condições de visão e de audição, bem como uma maneira distinta de representação do real em cena. Vemos, assim, que não apenas a voz, mas também as imagens são recursos narrativos dentro do espaço cênico, que acarreta uma narrativa também visual.

Outra maneira de relativizar a ação dá-se, também, mediante a ruptura do diálogo dramático, de natureza intersubjetiva. Como afirma Szondi (2001, p. 105), “se no drama genuíno o diálogo é o espaço coletivo onde a interioridade das dramatis personae se objetiva, aqui ele é alienado dos sujeitos e se apresenta como autônomo. O diálogo se torna conversação”. Apesar do caráter, digamos “histórico” do assunto, a peça concentra-se na conversação:

FOCO SOBRE UMA SÉRIE DE FOTOS DA SEMANA. SOBRE AS FOTOS, A VOZ DE MÁRIO EM OFF. FECHA COM UM CLOSE DE MÁRIO.

VOZ DE MÁRIO EM OFF - Mas como tive coragem para dizer versos diante de uma vaia tão barulhenta que não dava para ouvir nem o que o Paulo Prado me gritava na primeira fila de poltronas? Como pude fazer uma conferência sobre artes plásticas na escadaria do teatro, cercado de anônimos caçoando e me ofendendo a valer? (p. 14).

TARSILA RI EM OFF. FOCO NOS QUADROS OPERÁRIOS E