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CAPÍTULO III: A APRESENTAÇÃO DA POSIÇÃO DE PUTNAM POR MEIO DO DEBATE

3.3 A Resposta de Jürgen Habermas a Putnam

3.3.4 A Relativização a Partir do Contexto

A virada linguística proporcionou, como já foi dito, uma espécie de destranscendentalização, do ponto de vista platônico, porém, colocou-nos em um horizonte compartilhável, a partir da comunicabilidade peculiar a seres racionais. Isso pode ser compreendido como uma nova maneira de compreender o transcendental por meio da linguagem. Habermas afirma que incompreensibilidade e ausência de sentido ‘para nós’, parte de uma referência ‘nós’, cujo conjunto é formado por todos os seres racionais. O ‘nós’, usado seja para referir-se a um objeto que é compreensível ou não, está fundamentado na capacidade de os membros de uma comunidade poderem justificar mutuamente seus discursos com relação a esses objetos. O sentido a eles atribuído não é, destarte, produto de solipsismo (2008b, p. 87).

Os critérios para a justificação estão pressupostos, assim, em argumentos racionais que os indivíduos colocarão a prova do escrutínio público de outros indivíduos racionais. Todavia, nesta abordagem habermasiana coloca-se o questionamento em que o problema principal é saber se esta razão é unívoca, ou seja, se todas as diferentes culturas a partilham, ou se ela tem uma expressividade idiossincrática em ambientes culturais diferentes. Habermas considera que a postura de Putnam está de acordo com o kantismo desse.

Por isso mesmo, ao considerar a incomensurabilidade kuhniana65 (ou ao menos sua versão original), não concorda com essa no sentido que haja uma intransponibilidade interpretativa inerente aos diversos paradigmas66. O desacordo ampara-se no argumento de Putnam, no qual a racionalidade e a justificação estão pressupostas nos paradigmas antes de sua criação, e que não há um paradigma que subsidie a racionalidade e a justificação em

65 Segundo o conceito de incomensurabilidade, “as partes em tais debates (escolhas de teorias) inevitavelmente veem de maneira distinta certas situações experimentais ou de observação e que ambas têm acesso. Já que os vocabulários com os quais discutem tais situações consistem predominantemente dos mesmos termos, as partes devem estar vinculando esses termos de modo diferente à natureza, o que torna sua comunicação inevitavelmente parcial. Consequentemente, a superioridade de uma teoria sobre outra não pode ser demonstrada por meio de uma discussão. Insisti (Thomas Kuhn), em vez disso na necessidade de cada partido tentar convencer através da persuasão” (KUHN, 2013, p.309). Putnam diz que discursos incomensuráveis são “discursos que representam conceitos e conteúdos que não podemos compreender completamente por estarmos aprisionados no nosso próprio discurso e no nosso quadro conceptual” (PUTNAM, 1999, p.197) Ainda segundo Putnam, “não só os conceitos dos cientistas que trabalham com diferentes paradigmas, mas.também os objetos aos quais eles se referem, são supostamente incomensuráveis. Os astrónomos Copérnico e Ptolomeu ‘habitam mundos diferentes’, diz-nos Kuhn. Saltam de um paradigma para outro” (1999, p.198) de tal modo que não poderíamos compreender ao fazer-nos entender totalmente.

66 Segundo Simon Blackburn, “Kuhn propõe que certos estudos científicos, como os Principia de Newton ou o New System of Chemical

Philosophy, de John Dalton, sejam encarados como algo que fornece um conjunto aberto de recursos – um quadro conceitual, resultados e

processos – no interior do qual se estrutura a atividade científica subsequente, A ciência normal funciona dentro deste quadro ou paradigma. Um paradigma não impõe uma perspectiva rígida ou mecânica, podendo ser entendido com maior ou menor criatividade e flexibilidade, Esse conceito teve grande influência na concepção positivista da ciência, vista como um conjunto abstrato de proposições, estruturado lógica e racionalmente. O ponto de vista de Kuhn sublinha a situação histórica concreta de uma ciência no espaço dos problemas e das perspectivas herdadas de avanços anteriores. Um paradigma é estabelecido apenas em períodos de ciência revolucionária, surgindo tipicamente em resposta a uma acumulação de anomalias e dificuldades que não podem ser resolvidas no paradigma vigente” (BLACKBURN, 1997, p.279). Mais indicações podem ser encontradas no texto de Ian Hacking, e que constitui um ensaio introdutório à obra de Thomas Kuhn arrolada na bibliografia deste trabalho. Kuhn escreveu um posfácio em 1969, como o objetivo de esclarecer alguns equívocos advindos de interpretações equivocadas do seu conceito de paradigma (KUHN, 2013, p.281-300). No próprio texto de Kuhn, o desenvolvimento desse conceito pode ser encontrado no capítulo 4 da edição já citada.

questão, ou em outras palavras: a racionalidade e a justificação envolvidas no processo criativo atinente à criação de paradigmas são, elas mesmas, a-paradigmáticas. (PUTNAM, 1999a, 197-202).

Portanto, Putnam conclui que se há algo na formação dos paradigmas que não é paradigmático, pode haver um trânsito entre significados de conceitos que estão posicionados em vocabulários referentes a paradigmas específicos. Segue-se que algo melhor pode ser considerado, qual seja, a descrição estrutural das descrições (1999, p.202).

A nova forma de contextualismo, com a qual, segundo Habermas, Putnam se debate, surge na afirmação dos discursos científicos que estão sujeitos à imprecisão da linguagem formada no interior do mundo da vida. Não há uma linguagem do mundo que esteja no mundo, da qual possamos nos apropriar para criar os nossos discursos científicos. Assim, estamos presos ao ponto de vista do contexto, no qual nossos discursos estão envolvidos, do qual não podemos nos desvencilhar. Esta é a alegação que tem como consequência relativizar (inclusive) o vocabulário científico a partir do contexto. O contextualismo deste tipo também é chamado de etnocentrismo metodológico, cujas características principais foram já citadas: dependência da cultura na formação do vocabulário especial da ciência e inclusão de um vocabulário auxiliar que não segue necessariamente os critérios de racionalidade prescritos à ciência.

Putnam refuta, segundo Habermas, essas duas afirmações com a seguinte resposta. Não há, como está supracitado, incomensurabilidade, ou seja, não podemos supor que a interpretação está vedada unicamente porque certos vocabulários estão circunscritos a mundos culturais distintos: temos elementos que podem perpassar estes mundos. Se a resposta de Putnam a Kuhn visa a esclarecer um meio de superar a incomensurabilidade com o uso de elementos não paradigmáticos que podem apoiar uma descrição estrutural das descrições, na resposta ao etnocentrismo metodológico Putnam irá nos prestar uma variação dessa mesma resposta.

Segundo ele, somente podemos falar de correto ou incorreto no interior de uma cultura. Isso está de acordo com os contextualistas, mas as consequências são outras. A conclusão do contextualista convoca um condicionamento cultural intransponível, de onde faz seguir que todos os nossos discursos estão comprometidos com estes condicionamentos culturais.

Putnam irá entender o ambiente cultural de modo distinto: estamos em um mundo cultural específico, situação essa inultrapassável; mas o condicionamento ao qual podemos estar sujeitos não o é, e temos elementos na nossa própria cultura para realizar esse passo: a crítica à tradição por meio da racionalidade67. A nossa herança cultural pode ser objeto de reflexão da nossa racionalidade e, no caso de conflitos com diversos mundos da vida, temos a mesma solução pragmática que nos livra do relativismo solipsista. (HABERMAS, 2008b, p.89).

Habermas ensina que os critérios pragmáticos exigem que estejamos prontos para assumir a perspectiva do outro, bem como a adoção do realismo e de pressupostos lógicos, como a consistência, por exemplo. Esta é plataforma que pode ser entendida como um espaço de compreensão mútua, onde os interlocutores irão desenvolver um vocabulário que viabilize o entendimento.