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A Religião como força motora da ideia de trabalhador

I.7 Base Epistemológica: a sociologia de Norbert Elias

3.9 A Religião como força motora da ideia de trabalhador

A ideia de uma força transcendental, criacionista e que merece devoção, é matriz ontológica da maior parte da população brasileira. O catolicismo, apesar de perder seguidores nas últimas décadas, ainda é a religião com maior percentual de seguidores no país. No entanto, as religiões evangélicas avançam fortemente, principalmente nas periferias das grandes cidades. Na periferia de São Paulo, por exemplo, já se desenha um universo onde os evangélicos serão, a longo prazo, maioria.

De todos os indivíduos que conheci, posso dizer que a maioria reproduz um discurso de matriz evangélica, mesmo que não seja frequentador da igreja. Vejo isso como um importante avanço das igrejas petencostais e neo petencostais, pois se anteriormente, a matriz discursiva era católica, mesmo que não houvesse uma dimensão exata do que é realmente a igreja, hoje essa matriz tem um viés evangélico. Isso quer dizer que a ideia do “crente” apenas como uma pessoa que frequenta assiduamente a sua respectiva igreja se modificou, a ponto de sua matriz discursiva ser amplamente difundida até para aqueles que não vão aos cultos, criando uma estrutura ontológica importante na periferia de São Paulo. Assim, mesmo à revelia de frequentar a igreja, o discurso destas é propagado.

Isso tem a ver com um proselitismo evangélico. Como Almeida avalia,

Em resumo, pode-se afirmar que, ao contrário dos evangélicos, as ações de católicos e kardecistas são mais universalistas, na medida em que o pertencimento a uma ou a outra religião não é um filtro de seleção na distribuição de benefícios. A atividade católica é menos proselitista e mais voltada para uma ação social que procura atingir as causas sociais da pobreza; a filantropia kardecista tem um perfil mais assistencialista sem enfatizar as transformações sociais; e, por fim, os evangélicos compreendem as dificuldades materiais como decorrência das ordens moral e espiritual, mas cujos efeitos indiretos do regramento do comportamento e da solidariedade interna entre os “irmãos de fé” atenuam a vulnerabilidade social. (ALMEIDA, 2004, P. 21)

Estar a margem da lei não é um discurso que contempla as religiões. Via de regra, estar em sintonia com a igreja é ser cumpridor de suas funções sociais, como trabalhador e chefe de família, cujas ações presumem retidão perante a sociedade e às leis de deus. Mas a força discursiva e ontológica das igrejas, evangélicas ou não, reside justamente na medida em que

87 indivíduos fora de suas “leis” e dogmas não as repudiam. Dito de outra forma, a igreja pode condenar o “bandido”, mas este ainda mantém sua fé. A mesma coisa para os homossexuais, divorciados e pecadores de um modo geral. Os discursos religiosos são predominantes.

E se a religião se coloca como importante matriz discursiva, ela, automaticamente, se vê numa situação favorável de enfraquecer a ideia de ser um fora da lei, um bandido, um mercador do mundo do crime. Isso vai desde não comercializar drogas e não roubar, até mesmo não ser usuário de drogas e entorpecentes, em sua maioria, ilegais.

Nesse elã, e que figura totalmente destoante do que assistimos no meio acadêmico e nos meios progressistas, a ação de fumar maconha, por exemplo, amplamente aceita e difundida, é altamente repreendida pessoalmente pelos indivíduos que pude travar conversas. A ideia de usuário, tão habitualmente estampada para pessoas que usam cocaína e crack - que antigamente já foi de domínio da maconha – também é colada em indivíduos que fazem uso de maconha, haxixe e seus derivados.

Ainda nesta perspectiva, importa ressaltar que o uso da maconha é, como na maior parte das vezes, entendido ou diagnosticado como comum pelos indivíduos, sejam eles pessoas que condenam seu uso ou não.

Eu estava entrevistando o Juca no parquinho do escadão. O dia estava muito bonito. Fazia sol e nós tínhamos comprado um sorvete. Estávamos sentados na mureta e eu gravava sua entrevista com um gravador a partir de um aparelho celular. No meio de uma de suas respostas aparece um rapaz com um baseado na mão. “Vocês tem isqueiro”, perguntou. Eu tirei o meu isqueiro de dentro do maço de cigarros e dei para ele. Juca ficou observando. O rapaz não conseguia ascender o baseado. Juca, de repente, interferiu: “tem que passar a goma aí se não não ascende”. O rapaz fez o que Juca pediu, me devolveu o isqueiro, agradeceu, deu dois tragos ainda por ali e, enquanto saía, falou: “tem que da uns dois pra segurar o resto do dia”. O cara foi embora, Juca olhou pra mim balançando a cabeça negativamente, mas rindo, e continuamos a entrevista. (Trecho dos cadernos de campo, adaptado)

Nenhum dos indivíduos da minha pesquisa frequentam a igreja, mas os discursos que propagavam ao longo do tempo em que frequentei com assiduidade o salão eram, a primeira vista, discursos de indivíduos frequentadores de igreja. Somente o tempo me fez constatar que esses discursos são difundidos e difusores de ideias. E essa constatação da base para esta hipótese, já lançada anteriormente: a matriz discursiva da religião é base ontológica do pensamento. Assim sendo, não há necessidade imediata de se frequentar a igreja para se tratar como verdade que “deus é fiel”, que “deus está por nós”, que “jesus vai nos salvar dos pecados”, que “a vida tem de ser guiada pelo salvador”.

88 saber: a perspectiva de que o trabalho dignifica o homem e, neste sentido, se estiver no caminho certo, do trabalho, deus vai ajudar. É neste sentido que a religião é força motriz da exceção como regra no mundo daqueles que tomam a exceção do triunfo como exemplo de vida e espelho para continuar seguindo os passos que vêm trilhando há algum tempo.

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4 Construindo a Cidade dos Homens