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A república só é possível como República assumidamente Social

Essa guerra civil destruiu as últimas ilusões sobre [a] “República”, assim como o Império destruiu a ilusão do desorganizado “sufrágio universal” nas mãos do Estado do gendarme e do padre. Todos os elementos vitais da Fran- ça reconhecem que uma república só é possível na França e na Europa como uma “República Social”, isto é, uma república que desapropria o capital e a classe dos proprietários rurais da máquina estatal para que esta seja assu- mida pela Comuna, que declara francamente que a “emancipação social” é o grande objetivo da República e, assim, garante essa transformação social pela organização comunal. A outra república não pode ser mais do que o terrorismo anônimo de todas as frações monárquicas, da coalizão dos legi- timistas, orleanistas e bonapartistas, tendo como meta final a instauração de um Império quelconque*, o terror anônimo do domínio de classe que, uma vez realizado seu trabalho sujo, resultará sempre em um império!

Os republicanos profissionais da Assembleia dos “rurais” são homens que realmente creem, apesar dos experimentos de 1848 a 1851, apesar da guerra civil contra Paris, que a forma republicana do despotismo de classe é uma forma possível, duradoura, enquanto o “Partido da Ordem” a con- clama apenas conspirativamente, visando combater a República e reintro- duzir sua única forma adequada, monárquica ou, antes, imperial, como a forma do despotismo de classe. Em 1848, esses simplórios voluntários foram empurrados para a linha de frente até que, com a Insurreição de Junho, pa- vimentaram o caminho para o domínio anônimo de todas as frações dos pretendentes a escravocratas da França. Em 1871, em Versalhes, eles foram desde o início empurrados para a retaguarda, para lá figurar como o adorno “republicano” do domínio de Thiers e para sancionar, com sua presença, a guerra dos generais bonapartistas contra Paris! Em uma inconsciente autoi- ronia, esses infelizes realizaram suas reuniões partidárias na Salle de Paume** a fim de mostrar o quanto eles degeneraram em relação aos seus predeces- sores de 1789! Com seus Schölchers etc., tentaram convencer Paris a entregar suas armas a Thiers e forçá-la ao desarmamento mediante a Guarda Nacio- nal da “Ordem” sob Saisset! Isso para não falar dos assim chamados depu-

* Qualquer. (N. T.)

tados socialistas de Paris, como Louis Blanc. Estes suportaram submissamen- te os insultos de um Dufaure e dos ruraux, teceram desvarios sobre os direitos “legais” de Thiers e cobriram-se de infâmia ao choramingar diante dos bandidos!

Operários e Comte

Se os operários superaram o tempo do sectarismo socialista, não se pode esquecer que eles nunca estiveram nas primeiras fileiras do comtismo. Essa seita nunca ofereceu à Internacional mais do que um grupelho de cerca de meia dúzia de homens, cujo programa foi rejeitado pelo Conselho Geral. Comte é conhecido pelos trabalhadores parisienses como o profeta, na política, do imperialismo (da ditadura pessoal), do domínio capitalista na economia po- lítica, da hierarquia em todas as esferas da ação humana, mesmo na esfera da ciência, e como o autor de um novo catecismo com um novo papa e novos santos no lugar dos antigos.

Se seus seguidores na Inglaterra desempenham um papel mais popular do que aqueles na França, não é por pregar doutrinas sectárias, mas por seu valor pessoal e por sua aceitação das formas da luta da classe operária que foram criadas sem eles, como os sindicatos e as greves na Inglaterra, que são aos poucos denunciadas como heresia por seus correligionários de Paris.

A Comuna (medidas sociais)

Que os trabalhadores de Paris tenham tomado a iniciativa da atual revolução e, em heroico sacrifício, tenham suportado o principal fardo dessa batalha, não é nenhuma novidade. Esse é o fato notável de todas as revoluções fran- cesas! É apenas uma repetição do passado! Que a revolução é feita em nome e assumidamente para as massas populares, isto é, para as massas produtoras, isso é uma característica que essa revolução tem em comum com todas as suas predecessoras. O novo elemento é que o povo, após o primeiro levante, não desarmou a si mesmo e entregou seu poder nas mãos dos velhacos re- publicanos das classes dominantes; ao constituir a Comuna, tomaram o co- mando de sua revolução em suas próprias mãos e ao mesmo tempo encon- traram, em caso de sucesso, os meios para mantê-lo nas mãos do próprio povo, substituindo a maquinaria estatal, a maquinaria governamental das classes dominantes, por uma maquinaria estatal própria. Esse é seu inefável crime! Trabalhadores infringindo o privilégio governamental dos 10 mil que se encontram no topo e proclamando sua vontade de quebrar a base eco- nômica desse despotismo de classe que emprega para seu interesse próprio a força estatal organizada da sociedade! Foi isso que, na Europa e nos Esta- dos Unidos, lançou as respeitáveis classes no paroxismo das convulsões

e que responde pelos seus gritos de imprecação e de blasfêmia, [por] seu feroz clamor a exigir o assassinato do povo e por seus caluniosos insultos lançados do alto de suas tribunas parlamentares e das redações de seus serviçais jornalísticos!

A maior medida da Comuna é sua própria existência, trabalhando, atuan- do sob circunstâncias de extraordinária dificuldade! A bandeira vermelha, hasteada pela Comuna de Paris, coroa na realidade apenas o governo dos trabalhadores de Paris! Eles proclamaram clara e conscientemente como sua meta a emancipação do trabalho e a transformação da sociedade! Mas o atual caráter “social” de sua república consiste apenas nisto: que os traba- lhadores governam a Comuna de Paris! Quanto às suas medidas, elas têm de, pela natureza das coisas, estar principalmente confinadas à defesa mi- litar de Paris e a seu approvisionnement!

Alguns amigos protetores da classe trabalhadora, não conseguindo dis- farçar seu desgosto mesmo com as poucas medidas que eles consideram como “socialistas”, embora nelas não haja nada de socialista a não ser sua tendência, expressam sua satisfação e sua aduladora simpatia pela Comuna com a grande descoberta de que, no fim das contas, os trabalhadores são homens racionais que, uma vez no poder, sempre voltam as costas para medidas socialistas! De fato, eles não tentarão estabelecer em Paris nem um

phalanstère nem uma Icarie16. Homens sábios de seu tempo! Esses benevolen-

tes protetores, profundamente ignorantes das reais aspirações e do real movimento das classes trabalhadoras, esquecem uma coisa. Todos os funda- dores socialistas de seitas pertencem a um período em que as próprias clas- ses trabalhadoras não estavam treinadas e organizadas pela marcha da so- ciedade capitalista o suficiente para aparecer na cena mundial como agentes históricos, e tampouco as condições materiais de sua emancipação estavam suficientemente maduras no velho mundo. Sua miséria existia, mas as con- dições de seu próprio movimento ainda não existiam. Os fundadores utó- picos de seitas, enquanto em seu criticismo da sociedade atual descreviam claramente a meta do movimento social, a superação do sistema do trabalho assalariado com todas as suas condições econômicas de domínio de classe, não localizavam na própria sociedade as condições materiais de sua trans- formação, tampouco na classe trabalhadora o poder organizado e a cons­

cience* de seu movimento. Eles procuravam compensar as condições histó- ricas do movimento com imagens fantasiosas e planos de uma nova sociedade em cuja propaganda viam o verdadeiro caminho da salvação. A 16 Phalanstère (falanstério): referência às colônias socialistas planejadas por Charles

Fourier. Icarie (Icária): assim Étienne Cabet batizou sua utopia e, mais tarde, sua colô- nia comunista na América do Norte. (N. E. A.)

partir do momento em que o movimento dos operários tornou-se real, as utopias fantásticas esvaeceram-se, não porque a classe trabalhadora hou- vesse desistido do fim pretendido por esses utopistas, mas porque encon- traram os verdadeiros meios para realizá-lo, surgindo em seu lugar uma visão real das condições históricas do movimento e uma força cada vez mais agregadora da organização militar da classe trabalhadora. Mas os dois fins últimos do movimento proclamado pelos utopistas são os fins últimos pro- clamados pela Revolução de Paris e pela Internacional. Somente os meios são diferentes, e as condições reais do movimento não estão mais encober- tas por fábulas utópicas. Esses amigos protetores do proletariado são, por isso, apenas vítimas de sua própria ignorância quando se aventuram a opinar sobre as proclamadas tendências socialistas dessa revolução. Não é culpa do proletariado de Paris que, para eles, as criações utópicas dos pro- fetas do movimento operário sejam ainda a “Revolução Social”, quer dizer, que a Revolução ainda seja, para eles, “utópica”.

Journal Officiel do Comitê Central, 20 de março: “Os proletários do capital, em meio às défaillances* e às traições das classes governantes (dominantes), entendeu (compris) que lhes era chegada a hora de salvar a situação tomando

em suas mãos a direção (gestão) dos negócios públicos (do negócio estatal)”. Denunciam “a incapacidade política e a decrepitude moral da burguesia” como a fonte “dos infortúnios da França”.

Os trabalhadores, que produzem tudo e usufruem nada, que sofrem da misé- ria em meio aos seus produtos acumulados, aos frutos de seu trabalho e de seu suor (…), estão para sempre proibidos de trabalhar para sua emancipação? (…) O proletariado, em face da ameaça permanente contra seus direitos, da absoluta negação de todas as suas aspirações legítimas, da ruína do país e de todas as suas esperanças, entendeu ser seu dever imperioso e seu direito absoluto tomar em suas mãos seu próprio destino e assegurar seu triunfo tomando o poder do Estado (en s’emparant du pouvoir).

Aqui é claramente dito que o governo da classe trabalhadora é, em um primeiro momento, necessário para salvar a França das ruínas e da corrupção a ela impingidas pelas classes dominantes, que a destituição dessas classes do poder (dessas classes que perderam a capacidade de governar a França) é uma necessidade de segurança nacional.

Mas também é dito, não menos claramente, que o governo da classe tra- balhadora só pode salvar a França e gerir o negócio nacional ao trabalhar por sua própria emancipação, sendo as condições dessa emancipação ao mesmo tempo as condições da regeneração da França.

O governo da classe trabalhadora é proclamado como uma guerra do trabalho contra os monopolistas dos meios do trabalho, contra o capital.

O chauvinismo da burguesia é apenas uma vaidade, cobrindo com um manto nacional todas as suas pretensões. Ele é um meio de, com exércitos permanentes, perpetuar as lutas internacionais, subjugar os produtores em cada país, lançando-os contra seus irmãos de outros países, um meio de impedir a cooperação entre as classes trabalhadoras, a primeira condição de sua emancipação. O verdadeiro caráter desse chauvinismo (que há tempos se tornou uma mera palavra oca) se revelou após Sedan, durante a guerra de defesa boicotada por toda parte pela burguesia; revelou-se, também, na capitulação da França, na guerra civil travada por Thiers, este alto sacerdote do chauvinismo, e com o consentimento de Bismarck! Revelou-se nas peque- nas intrigas policialescas da Liga Antialemã, [na] caça aos estrangeiros em Paris após a capitulação. Esperava-se que o povo de Paris (e o povo francês) pudesse ser estupidificado com a paixão do ódio nacional e que, mediante ultrajes postiços contra os estrangeiros, esquecesse sua aspiração real e seus traidores internos!

Como todo esse movimento postiço desapareceu (esvaeceu) ao sentir o fôlego da Paris revolucionária! Proclamando em alto e bom tom suas tendên- cias internacionais – porque a causa do produtor é por toda a parte a mesma e seu inimigo o mesmo, qualquer que seja sua nacionalidade (seja qual for seu traje nacional) –, Paris proclamou como um princípio a admissão dos estrangeiros na Comuna, elegendo inclusive um operário estrangeiro (um membro da Internacional) para seu Conselho Executivo, e decretou [a des- truição do] símbolo do chauvinismo francês: a Coluna Vendôme!

E enquanto seus chauvinistas burgueses desmembraram a França e agem sob a ditadura da invasão estrangeira, os trabalhadores de Paris derrotaram o inimigo estrangeiro ao golpear seus próprios patrões e aboliram as frontei- ras ao conquistar o posto de vanguarda dos trabalhadores de todas as nações! O patriotismo genuíno da burguesia – tão natural para os verdadeiros proprietários das diversas fazendas “nacionais” – apagou-se em uma mera sombra em consequência do caráter cosmopolita conferido ao empreendi- mento financeiro, comercial e industrial. Sob circunstâncias similares, ele acabaria por implodir em todos os países, tal como ocorreu na França.