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CAPÍTULO II – ÁGUA VIVA : O ESBOÇO DE UMA PINTURA E O DESENHO DE

3.3 A representação imagética do tempo em Água viva

Impossível fechar os olhos para um dos principais temas de Água viva: o tempo. Já na

presente, reconhecendo a sua fugacidade: “Estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais” (LISPECTOR, 1998a, p. 9). A perplexidade face à passagem do tempo

se faz presente já em um dos sentidos do termo Água viva, isto é, água que brota da fonte e

segue seu curso. Em seu fluxo contínuo o tempo se manifesta e, do mesmo modo, manifesta-se a noção de espaço, pois, manifesta-se a água corre, ela o faz no tempo e no espaço.

A personagem pretende definir o tempo presente que, por sua vez, é imediatamente transformado em passado, este também já não é mais, porque já foi. E o futuro também não existe, já que ainda não veio. Logo, o presente é inapreensível, o que frustra a personagem, como verificamos nesta passagem:

Meu tema é o instante? meu tema de vida. Procuro estar a par dele, divido-me milhares de vezes em tantas vezes quanto os instantes que decorrem, fragmentária que sou e precários os momentos – só me comprometo com vida que nasça com o tempo e com ele cresça: só no tempo há espaço para mim (LISPECTOR, 1998a, p. 10).

Sobre a relação espácio-temporal, retomamos Mario Praz (1932) que aborda sob o ponto de vista da arte moderna: “A revolta contra a perspectiva tradicional que prevalecera na pintura européia desde a renascença produziu as bem conhecidas interseções de tempo e espaço no cubismo” (PRAZ, 1932, p. 216). Isso se dá também em outras correntes modernistas, como o impressionismo e o futurismo. Não há dúvida de que os pintores impressionistas tenham se ocupado dessa problemática, pois suas produções estavam intimamente ligadas à ideia da passagem do tempo, do movimento da natureza. Clarice Lispector, de forma quase filosófica, tinha conhecimento dessa problemática e, ainda, do significado do tempo e do espaço nas artes. A escritora tinha consciência dessa discussão, o

que se confirma em muitos trechos de Água viva, como neste, por exemplo: “quero na música

e no que te escrevo e no que pinto, quero traços geométricos que se cruzam no ar e formam uma desarmonia que eu entendo” (LISPECTOR, 1998a, p. 60).

Num belo trecho em que trata do tempo, especificamente dispondo as variações de

tempo e espaço em um mesmo plano, a personagem-narradora de Água viva afirma: “O

presente é o instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca minimamente no chão. E a parte da roda que ainda não tocou, tocará num imediato que absorve o instante

presente e torna-o passado” (LISPECTOR, 1998a,p. 15).Giacomo Balla (1871-1958), pintor

italiano, reproduz, em sua tela Velocidade abstrata (Fig. 16), esse instante de que fala Clarice

Fig. 16: Velocidade Abstrata (1914) – Giacomo Balla

No quadro de Balla, o movimento circular – recorrente também em Água viva – é

nítido, dando a ideia de continuidade e precisão. O uso das cores preto e branco reforça a firmeza e a objetividade do movimento.

O cubismo, suscitado por Praz, aparece em Água viva quando a personagem tenta

representar, através da escrita, os objetos em todas as suas faces geométricas, colaborando com a ideia de interpenetração de tempo e espaço: “Um instante me leva insensivelmente a outro e o tema atemático vai se desenrolando sem plano mas geométrico como as figuras sucessivas num caleidocópio” (LISPECTOR, 1998a, p. 14). Ou ainda: “Parei para tomar água fresca: o copo neste instante-já é de grosso cristal facetado e com milhares de faíscas de instantes. Os objetos são tempo parado?” (LISPECTOR, 1998a, p. 40).

O representante cubista Paul Klee (1879-1940), em sua tela A casa giratória (Fig. 17),

de 1921, representa o movimento circular que lembra o giro de um caleidoscópio para se obter a imagem, além das figuras geométricas marcando todos os ângulos da casa.

Fig. 17: A casa giratória (1921) – Paul Klee.

Ainda em relação ao tempo, vale ressaltar que as formas redondas são as que mais

atraem a personagem-pintora de Água viva. Esta recorrência dialoga com a própria ideia de

eternidade, cuja imagem móvel é o tempo, daí a grande importância das linhas circulares em sua obra: a placenta, o ovo, o caleidoscópio, a água-viva, a lua, os olhos. Alguns trechos da narrativa revelam esse interesse pelo esférico, como por exemplo: “este texto que te dou não é para ser visto de perto: ganha sua secreta redondez antes invisível quando é visto de um avião em alto vôo” (LISPECTOR, 1998a, p. 25). Em outro momento, a narradora-pintora revela:

Hoje acabei a tela de que te falei: linhas redondas que se interpenetram em traços finos e negros, e tu, que tens o hábito de querer saber por que – e porque não me interessa, a causa é matéria de passado – perguntarás por que os traços negros e finos? É por causa do mesmo segredo que me faz escrever agora como se fosse a ti, escrevo redondo, enovelado e tépido, mas às vezes frígido como os instantes frescos, água do riacho que treme sempre por si mesma. O que pinto nessa tela é passível de ser fraseado em palavras? Tanto quanto possa ser implícita a palavra muda no som musical. (LISPECTOR, 1998a, p. 10)

A questão que aparece no final do fragmento e sua resposta indicam a crença da escritora na correspondência das artes. A tela de que fala a narradora pode ser a mesma que

Clarice Lispector pintou em 1976 (Fig. 18), e com a qual presenteou o também escritor

Autran Dourado (1926-2012). A ausência de título é significativa, pois, enquanto este sugere e direciona o pensamento daquele que contempla, aquela (ausência) proporciona uma liberdade de interpretação, bastante clara na intenção de Clarice.

Fig. 18:Sem título. (1976) – Clarice Lispector. Óleo sobre tela, 39,5 x 30,4 cm.

Esta é a única tela de Clarice produzida em óleo sobre tela. Se notarmos com maior atenção, pode-se observar que as formas lembram um grupo de medusas ou águas-vivas unidas por seus tentáculos em um imenso mar vermelho. O movimento rotativo e as interligações entre as figuras dão mais uma vez a ideia de continuidade e movimento.

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