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1. Identidade

1.1. A representação não-fixa entre os lugares (cá/lá)

os dois lugares não estão claramente distinguidos. Apesar disso, o lá, aparece inicialmente estável em termos de representação de uma identidade atribuída aos seus pais como “caboverdianos contratados para trabalhar nas roças em São Tomé em troca de casa e comida porque naquela altura não havia salário”, mas não destaca a sua vivência (lá) sobre o que é ser filha de contratados e ter nascido numa roça, escamoteando da narrativa uma parte significativa da sua realidade biográfica.

Sabemos que ao externalizar as dificuldades, o sujeito protege o Self das ameaças contra a sua identidade, uma vez que preserva o bom dentro de si e projeta o mau para fora. Como veremos, a entrevistada socorre-se deste mecanismo ao longo da sua narrativa. A exemplo disso, Helena atribui ao clima a dificuldade no seu processo de adaptação ao novo país (e.g. “Não foi fácil. Por causa do clima né?... Mudança de clima”), pondo no “lugar da pele” a estranheza e a adversidade face à mudança, externalizando a sua dificuldade na adaptação “cá”. Este confronto entre “os climas” (interno/externo) dão conta de uma angústia muito viva e primária, ao nível do básico, do sensorial, fixado nas diferenças que dão conta do mal-estar. O interno/externo, confundem-se novamente quando discorre sobre os vários trabalhos que foi tendo em Portugal, tendo começado por trabalhar como “interna” numa casa, cuja narrativa remete para uma ideia de perigo onde destaca que “por acaso até nem aconteceu nada”, dando conta daquilo que pode encontrar cá (internamente), novamente, num movimento de projeção. Ou seja, de que modo a estranheza de um novo lugar, pode suscitar um perigo internamente vivenciado e externamente projetado? A solução de Helena é, invariavelmente, a retirada da experiência, por não encontrar um lugar onde possa fixar-se, mais ainda, é o modo encontrado para se defender dos perigos (internos) que a nova experiência (externa) lhe despertam.

O primeiro lapso verbal encontrado na narrativa, ao falar da migração da sua filha de 23 anos, traduz a sua própria experiência (interna), como sendo uma pré-conceção daquilo que espera

encontrar com a imigração (cá): a humilhação e a ilegitimidade por nunca encontrar um “contrato fixo” (e.g. “... ela foi obrigada a humilhar, ehh ehh, a emigrar... Nunca teve sorte, nunca fizeram um contrato fixo...”). Mas, como vemos ao longo do seu discurso, a humilhação preexistia, dando conta de uma herança que traz consigo antes de cá chegar. A experiência da humilhação, da ilegitimidade e a procura de um “contrato-fixo” através do qual possa fixar-se, traduzem uma condição interna que transcende as fronteiras entre o cá e o lá, dando a sensação de que há outras fronteiras sem limites onde as experiências se confundem: consciente versus inconsciente, presente versus passado, realidade versus fantasia, etc.

Inicialmente indiferenciados na sua condição, o cá e o lá, emergem, sequencialmente, distinguidos pela desigualdade: “em São Tomé pessoas não tão...civilizado, né?... também pode ser por causa de falta de alimentação”. Agora, deste lado (cá), é civilizada e faz como eles (portugueses/superiores) distinguindo-se dos “outros/lá” (santomenses/inferiores). Contudo, implícito nesta questão da diferença não é o ser ou não civilizada mas sim, o facto de que cá há abundância, deixando clara a distinção entre a falta de alimento/selvagem/lá e a abundância/civilizado/cá. Encontramos patente nesta passagem uma dinâmica importante: um movimento de clivagem onde coloca os portugueses humildes/bons/abastados/civilizados de um lado e os santomenses selvagens/maus/com escasses por outro, que dá conta de um funcionamento em duplo registo, dado que identifica-se aos “bons” porque cá tem mais recursos, contudo, sente-se de lá, porque injustiçada, humilhada e sem “contrato-fixo”. A entrevistada reconhece a dificuldade da condição migrante mas igualiza esta condição para todos (os imigrantes), acabando com a particularização da sua vivência e recorrendo a uma identificação projetiva (“todos os imigrantes sofrem”), como condição encontrada para lidar com a sua experiência.

A religião aparece como um modo de encontrar um lugar de pertença com os de “lá”, constatando, assim, uma possibilidade de ser africana entre os africanos (cá), como uma forma de (re)construir a sua identidade étnica, cuja representação emerge através da possibilidade de ir buscar elementos que a ligam a sua terra (e.g. “nós até pusemos roupa africana...nos deram roupa africana que é amarrar pano depois pôr... e ainda: “tum, tum, tum, tum” com batuque e tudo!”). Contudo, quando “levada” a sua terra, aquando da morte da sua mãe, o reencontro com a sua origem, dá conta de uma contradição, dado que, “adorou” mas “tá pior”, dando a ideia de haver uma ligação com a sua terra e, ao mesmo tempo, um

choque resultante da idealização em confronto com a realidade (e.g. “...E eu amei, adorei São Tomé. Tá tudo diferente, só que em vez de tar melhor tá pior. Isso que dói-me muito”).

Helena destaca a perda de um modo de vida anterior a sua vinda para Portugal, descrevendo uma vivência idealizada e, simultaneamente, selando a possibilidade de viver lá (e.g. “Sim, tá tudo destruído. Porque ninguém constrói nada. Ninguém trabalha na agricultura mais. Antigamente, eu vivía à base disso, de criação de porcos, de galinha, de cabra, né? ... Nós não tínhamos falta de nada”). Deste modo, a representação do lá, aparece ligada a uma riqueza e fartura idealizadas, contrariando a verdadeira experiência que era viver numa roça como “contratada”, e contradizendo o seu discurso anterior sobre a vantagem de estar cá porque aqui há mais fartura. O lá/antes aparece como vantajoso em comparação ao lá/agora. O seu discurso expressa uma divisão entre o antes e o agora, onde o passado surge idealizado e o presente “destruído”. O investimento de Helena num discurso de um passado idealizado serve como uma função defensiva: legitima e, portanto, atenua as suas experiências da brutalidade e da dureza da sua vida anterior. Ao fazê-lo, defende-se a si mesma da ansiedade provocada pelas lembranças do passado, precipitando defesas contra as ameaças que colocam ao Eu e que operam a um nível, em grande parte, inconsciente (Hollway & Jefferson, 2000). De encontro ao exposto, Helena não sustém a história do lá, como se verifica no decorrer da sua narrativa, dando a sensação de que a história não termina e interpõe-se uma coisa, outra, que nos faz hesitar e perguntar “onde é o que?”; “o que é que ela está a dizer?”, deixando patente a ideia de uma impossibilidade de encontrar uma memória ou representação exata da sua vida e das suas vivências em São Tomé. Deste modo, o “salto” na sua narrativa sobre o seu pai “lá e cá”, dá lugar a esta relação não fixa entre os dois lugares que aparecem misturados e muitas vezes condensados, sem chegar a uma representação clara de ambas as partes, igualizando-os constantemente, dando a ideia de não haver um envelope psíquico estanque que delimite a experiência vivida em cada lugar. Assim como a sua narrativa sobre o hospital, os cuidados e o modo como viveu a sua doença cá, misturam-se (o da roça Augustinho Neto “lá” e o da Amadora-Sintra “cá”), dando conta de uma vivência de desumanização (lá) que aparece representada numa amálga entre coisas, lugares e pessoas, que traduz a sua condição interna.

1.2. A representação do Eu e do Outro: Helena apresenta, inicialmente, o “ficar cá” como

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