• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO III A CONSTRUÇÃO REFERENCIAL DE LULA

3.2. A valorização de Lula nas crônicas de 2004

3.2.2. A retirada de atributos negativos

Um modo mais ameno encontrado por Cony para construir o referente Lula no interior do seu discurso é a negação de atributos negativos, o que, apesar de conduzir-nos a uma visão positiva do presidente da República, leva a uma ênfase bem menor do que as atribuições diretas, como as anteriormente expostas.

Um exemplo bastante interessante é usado por Cony na construção referencial de Lula, na crônica “Lula e o Brasil”, que também trata da não ocorrência do espetáculo do crescimento prometido por Lula no início de seu mandato.

Para a introdução do referente temos: “Outro dia me perguntaram o que Lula vai fazer com o Brasil”. [grifo nosso]

Com a seqüência textual, reconhecemos o pronome “ele” como anafórico de “Lula”, tendo, portanto, uma pronominalização, acompanhada de um sintagma oracional. Observemos:

27. Se ele fosse um ditador, deveríamos partir para a clássica mobilização democrática, que custa sangue, suor e lágrimas, e custa tempo, sobretudo, para livrarmos um tirano. Não é o caso. Lula pode ser tudo, menos tirano. Pelo contrário, é boníssima gente, boníssima alma, pai amoroso e marido exemplar, vivido e sofrido em lutas pela liberdade e pela justiça social. Se fosse um governante corrupto, mais cedo ou mais tarde a sociedade, como um todo, repetiria o mesmo impedimento que nos livrou recentemente de uma administração federal cercada de escândalos.

Se fosse incompetente, os 16 meses de seu governo já o teriam desmoralizado de tal forma que o poder de fato estaria sendo exercido por outro homem, um regente, como nos tempos do Império, ou por um colegiado de notáveis, ou mesmo por um gabinete do tipo parlamentarista. Acontece que Lula não é ditador, não é corrupto, não é incompetente. [grifo nosso] (LOB)

Depois da pronominalização já indicada, temos a retomada referencial novamente por meio do nome próprio “Lula”. Já, na seqüência, o autor se vale da elipse, nos seguintes trechos: “Pelo contrário, [Ø] é boníssima gente [...]”; “Se [Ø] fosse um governante corrupto [...]”; e “Se [Ø] fosse incompetente”.

A respeito do exemplo em foco, primeiramente é importante ressaltar a recorrência sintática empregada por Cony, a utilização das orações condicionais: “Se ele fosse um ditador”; “Se fosse um governante corrupto”; e “Se fosse incompetente”.

Sobre as orações condicionais, Neves (2000, p. 832) diz que há três relações instauradas entre a oração condicionante e a oração condicionada, sendo elas:

a) realização/ fato;

b) ou não-realização/ não-fato;

c) ou realização eventual/ fato eventual.

Essas relações são explicadas pela autora da seguinte forma:

a) dada a realização/ a factualidade da oração condicionante, segue-se, necessariamente, a realização/ a factualidade da oração condicionada. [...] b) dada a não-realização/ a não-factualidade da oração condicionante, segue-se, necessariamente, a não-realização/ a não-factualidade da oração

condicionada. [...]

c) dada a potencialidade da oração condicionante, segue-se a eventualidade da oração condicionada.

A partir dos exemplos expostos pela autora, observamos que o tempo verbal usado na oração condicionante é o que delimitará a realização, a não-realização ou a eventualidade da oração condicionada.

No caso do emprego do verbo no Pretérito Imperfeito do Subjuntivo, como ocorre no exemplo extraído de nosso corpus (“fosse”), a relação estabelecida entre as orações é de não- realização/ não-fato, o que leva Neves (2000, p. 840) a classificar orações como essas de “condicionais contrafactuais/ irreais”.

Dessa forma, ao relacionar, por meio das orações condicionais em destaque, a figura de Lula – indicada nas orações, respectivamente, por meio do pronome “ele” e depois pelas

elipses – aos atributos “um ditador” (descrição indefinida), “um governante corrupto” (descrição indefinida) e “incompetente” (modificador – adjetivo), o cronista marca a não- factualidade da correspondência entre tais atributos e o referente.

Isso é confirmado e enfatizado pelo autor com a negação de alguns atributos e afirmação de outros, o que, conseqüentemente, modifica o referente no interior do discurso.

A retirada de atributos em relação a Lula é efetivada por meio das seguintes orações: “Lula pode ser tudo, menos tirano”; e “Lula não é ditador, não é corrupto, não é incompetente”. Na primeira das orações, a subtração do atributo “tirano” se dá a partir do emprego da preposição “menos”. Já na última, a retirada é efetuada pela frase declarativa negativa, na qual se nega a relação entre os atributos “ditador”, “corrupto” e “incompetente” e a figura presidencial. Sendo essas características reconhecidas social e culturalmente como negativas, temos, nesse ponto do texto, a transformação de Lula sob um ponto de vista positivo.

Essa visão otimista sobre o presidente é sustentada pela oração de predicado nominal presente em: “Pelo contrário, é boníssima gente, boníssima alma, pai amoroso e marido exemplar, vivido e sofrido em lutas pela liberdade e pela justiça social”, conforme já expusemos na seção anterior.

Com isso, há novamente a ênfase nos aspectos positivos de Lula. Mas esses, na seqüência, são postos em oposição às suas falhas diante da sua função (“Mas continua patinando, falando muito e nem sempre bem, ainda não desencarnou de sua liderança oposicionista, promete um país que outros governantes não fizeram, promete até mesmo, por um vício de marketing das muitas campanhas eleitorais em que se meteu, um espetáculo de crescimento cada vez mais distante e improvável”).

A negação de atributos negativos também pode ser encontrada na crônica “Aqui e agora”:

28. Por que Lula não está dando certo? Na semana passada, comentei que Lula não é incompetente, não é corrupto e tem a melhor das intenções de fazer o melhor governo possível. [grifo nosso] (AEA)

Nesse exemplo, podemos notar o diálogo que o autor mantém entre suas crônicas; afinal, a proximidade temporal existente entre esse gênero e seu interlocutor faz com que este consiga retomar com maior tranqüilidade a remissão que o cronista faz.

No fragmento, o autor retoma a retirada dos atributos “incompetente” e “corrupto” efetuada por ele já na crônica “Lula e o Brasil”, conforme apresentamos no exemplo anterior. Dessa forma, delimitando a intertextualidade (”Na semana passada, comentei que [...]”), o autor nega mais uma vez a relação de tais atributos a Lula, por meio de uma oração declarativa negativa, sendo esta de predicado nominal, cujo verbo de ligação em questão é o verbo “ser” no Presente do Indicativo.

Assim, observamos que há a intenção, por parte do autor, de construir o referente Lula, explorando o uso de atributos positivos ou a retirada de atributos negativos. Portanto, além de retirar os atributos negativos, ao dar seqüência à sua argumentação otimista sobre o presidente, o cronista se vale da oração cujo núcleo é o verbo “ter”: “e [Lula] tem a melhor das intenções de fazer o melhor governo possível”. A utilização de tal verbo, pela sua natureza semântica, estabelece a atribuição de seu complemento ao objeto-de-discurso expresso pelo sujeito da oração, o que nos direciona à construção do referente em questão na crônica.

Com isso, podemos reconhecer a intenção do cronista em reforçar características boas no referente Lula, o que se confirma até mesmo por meio do modificador do complemento verbal atribuído a ele, que é usado no grau superlativo de superioridade, “melhor” (“a melhor das intenções de fazer o melhor governo possível”).