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A revolução copernicana para Kuhn e Duhem: confluências?

CAPÍTULO 2 A REVOLUÇÃO COPERNICANA

2.3 A revolução copernicana para Kuhn e Duhem: confluências?

Diante dos breves apontamentos acima, parece-nos plausível afirmar o proveito de um maior escrutínio da revolução copernicana nas obras de Kuhn e Duhem, com intuito de identificar os aspectos envolvidos numa revolução. Podemos perceber que ambos estiveram preocupados com a mudança de significado dos conceitos científicos; que defenderam a necessidade de uma atitude interpretativa do historiador para compreender a evolução da linguagem da ciência; que reconheceram a alternância e sucessão de teorias, muitas vezes incompatíveis com as anteriores.

A afirmação duhemiana de que a física moderna tem forma inteiramente diferente da física aristotélica da qual descende, uma constituição que torna irreconhecíveis

173

Ce qu‘Aristote nomme mouvement en ligne droite, c‘est ce que les géomètres modernes nomment mouvement de translation; tous les points du corps mú décrivent, en même temps, des droites égales et

parallèles. Le mouvement en cercle considéré par le Stagirite, c‘est ce que nous appelons le mouvement de

os elementos herdados da física antiga, é significativa para se abordar uma mudança revolucionária e pensar a proximidade com a narrativa histórica de Kuhn. Ambos estabelecem a oposição entre a astronomia antiga e moderna, sendo Aristóteles e Copérnico os personagens centrais envolvidos na análise histórica que apresentam. Poder-se-ia argumentar que essa oposição é obvia e presente em qualquer história da cosmologia ou da revolução copernicana. No entanto, para um propósito investigativo voltado para posições rotuladas comumente como ―continuísta‖ e ―descontinuísta‖, a oposição antigo/moderno passa a ser importante porque permite a identificação de uma semelhança entre Duhem e Kuhn insuspeitada à primeira vista. Outras semelhanças são dignas de observação e apontam para confluências entre os dois filósofos e historiadores da ciência.

2.3.1 Esquemas conceituais

A narrativa histórica kuhniana da revolução de Copérnico é conduzida pela análise de um esquema conceitual: do que é, de como e para que é utilizado; de como é modificado e suplantado por outro. Ainda que Kuhn esteja centrado na revolução copernicana, deixa explícito como essa análise explica, substancialmente, o que constitui o empreendimento científico. Não é sem razão que Westman (1994, p. 81), referindo-se a A

revolução copernicana, denomina essa obra de ―narrativa filosófica‖. São as considerações

do filósofo Kuhn referentes a um esquema conceitual que abordamos agora.

A distinção entre a função lógica e psicológica de um esquema conceitual em A

revolução copernicana lembra a distinção entre as partes representativa e explicativa de

uma teoria física estabelecida por Duhem em La théorie physique. Duhem, nessa obra, estabelece que a meta da teoria física não é a explicação, mas a representação (e classificação) lógica das leis experimentais. Em seu ponto de vista, a análise da história permite verificar que, quando se analisa

uma teoria criada por um físico que se propõe explicar as aparências sensíveis, geralmente não tardamos a reconhecer que essa teoria é formada de duas partes muito distintas: uma é parte simplesmente representativa que se propõe classificar as leis; a outra é a parte

explicativa que se propõe a apreender a realidade sob os fenômenos (DUHEM, 1989a, p. 43).174

Como Kuhn, Duhem (1989a, p. 3-4) discute o significado de ‗explicar‘, atentando para o caráter hipotético (às vezes, efêmero) das explicações. Ambos assinalam

que a parte lógica175 de uma teoria é a que permanece e se prolonga na história176 e

identificam aí sua utilidade: a ―economia conceitual‖, segundo Kuhn, ou ―economia intelectual‖ ou ―de pensamento‖, conforme Duhem, seguindo Mach. É notável como apresentam essa característica de uma teoria científica de forma semelhante, conforme se pode observar nas passagens de suas obras que selecionamos abaixo.

Talvez a característica mais notável do universo de duas esferas seja a ajuda que ele dá à memória do astrônomo. Essa característica de um esquema conceitual é geralmente denominada economia conceitual. [...]

Sem esses resumos ordenados fornecidos pelas suas teorias, a ciência não seria capaz de acumular tão imenso estoque de informações detalhadas sobre a natureza (KUHN, 1970a, p. 36-37).177

[A] condensação de uma grande quantidade de leis em um pequeno número de princípios é uma imensa ajuda para a razão humana que não poderia, sem um artifício parecido, armazenar as novas riquezas que ela conquista a cada dia (DUHEM, 1989a, p. 27).178

Tanto Kuhn quanto Duhem se referem aqui ao acúmulo de informações sobre a natureza, à incrementação da teoria, à forma de crescimento cumulativo da ciência. Em

174

[...] une théorie créée par un physicien qui se propose d‘expliquer les apparences sensibles, on ne tarde

pas, en général, à reconnaître que cette théorie est formée de deux parties bien distinctes; l‘une est la partie simplement représentative qui se propose de classer les lois; l‘autre est la partie explicative qui se propose, au-dessous des phénomènes, de saisir la réalité.

175

A designação ―parte lógica‖ é kuhniana. Duhem fala de ―parte representativa‖ ou ―descritiva‖. Ambos se referem ao desenvolvimento lógico-matemático da teoria.

176

Sobre a concepção duhemiana, lembramos aqui da afirmação de Brenner (1990a, p.136), de que a ―parte descritiva de uma teoria parece melhor resistir à prova do tempo do que o aspecto explicativo‖.

177

Perhaps the most striking characteristic of the two-sphere universe is the assistance that it gives to the

astronomer‘s memory. This characteristic of a conceptual scheme is often called conceptual economy. [...]

[...] Without these ordered summaries which its teories provide science would be unable to accumulate such

immense stores of detailed information about nature.

178

Une telle condensation d‘une foule de lois en un petit nombre de principes est un immense soulagement pour la raison humaine qui ne pourrait, sans un pareil artifice, emmagasiner les richesses nouvelles qu‘elle conquiert chaque jour.

nossa tentativa de aproximar suas visões quanto ao progresso científico com enfoque na revolução copernicana, é interessante notar a consideração de Brenner de que ―Duhem se atém [em Le système du monde], inicialmente, às noções constitutivas do esquema

conceitual da ciência‖ (BRENNER, 1997, p. XVI)179

. Ora, Kuhn, que opta por viabilizar sua narrativa pela análise e discussão de esquemas conceituais, indica em suas ―notas bibliográficas‖ os seis primeiros volumes de Le système du monde, ―consultado para

tópicos especiais‖ (KUHN, 1970a, p. 284)180

. A menção de Brenner, no entanto, é feita aqui por uma questão de curiosidade. Até onde temos observado, a expressão ―esquema conceitual‖ não é utilizada por Duhem. Segundo Westman, tal expressão adotada por Kuhn em A revolução copernicana já estava bem estabelecida por Conant, na série ―Harvard

Case Histories‖181

. Quando Brenner (1997) a emprega na introdução a Épitomé du système

du monde, não apresenta aí nenhum vínculo com a obra de Kuhn. Já Westman, que analisa

criticamente A revolução copernicana, vê semelhanças notáveis entre a obra de Kuhn e La

théorie physique, de Duhem:

Ele [Kuhn, em A revolução copernicana] considera teorias e conceitos como instrumentos essencialmente de classificação que nunca refletiriam uma realidade mais profunda [...]

A imagem geral da ciência de A revolução copernicana[...] se assemelha ao convencionalismo positivista e pragmaticista de Henri Bergson, Henri Poincaré e Ernst Mach e, especialmente, a algumas das passagens mais convencionalistas de The Aim and Structure of Physical Theory (1906), de Pierre Duhem (WESTMAN, 1994, pp. 83-84).182

179

Duhem s‘attache d‘abord aux notions constitutives du schéma conceptuel de la science. 180

Kuhn não indica quais seriam esses tópicos especiais. Conjecturamos tratar-se, sobretudo, daqueles referentes à ciência medieval, já que admitia a grande contribuição de Duhem à história da ciência por seus estudos sobre a Idade Média. No desenvolver deste trabalho, procuraremos analisar a concordância kuhniana com a visão de Duhem acerca das contribuições da ciência da Idade Média para a ciência moderna.

181

Semelhante ponto de vista é apresentado por Swerdlow (2004). Carlo (2001, p. 262) afirma que Kuhn adotou a expressão ―esquema conceitual‖ diretamente de Koyré.

182

He regards theories and concepts as essentially instruments of classification that are said never to reflect a deeper reality. [...]

[...]

CR‘s overall image of science [...] resembles the positivist and pragmatist conventionalism of Henri Bergson, Henri Poincaré, and Ernst Mach and, specially, some of the more conventionlist passages in Pierre Duhem‘s

Embora a reflexão de Westman não se destine propriamente a uma análise comparativa entre as visões de Kuhn e Duhem e esteja centrada no propósito de sustentar uma mudança da visão kuhniana acerca da noção de revolução científica, apresentada em A

estrutura (o que discutiremos mais adiante), ela vem reforçar algumas hipóteses que

levantamos no que toca às semelhanças entre eles. Westman (1994, p. 85) afirma, por exemplo, que Kuhn resiste a falar de ―correspondência‖, ―verdade‖ ou ―reflexo de uma

ordem real‖, da mesma forma como o faz Duhem em seus momentos mais realistas.

É pela crença em um esquema conceitual – diz Kuhn –, por um ato de fé em uma teoria – diz Duhem – que cientistas promovem o aumento do conhecimento. As passagens abaixo ilustram a maneira semelhante como ambos falam da função (fecunda) de um esquema conceitual, de uma teoria:

Os esquemas conceituais são abrangentes, suas consequências não estão limitadas ao que já é conhecido. Portanto, um astrônomo comprometido, digamos, com o universo de duas esferas, esperará que a natureza mostre as propriedades adicionais, ainda não observadas, que o esquema conceitual prediz. Para ele, a teoria transcenderá o conhecido, tornando- se, antes de tudo e principalmente, uma ferramenta poderosa para predizer e explorar o desconhecido (KUHN, 1970a, p. 39).183

Ora, a história da física nos fornece uma série de exemplos dessa adivinhação clarividente; muitas vezes, uma teoria previu leis ainda não observadas, mesmo leis que pareciam inverossímeis, estimulando o experimentador a descobri-las e o guiando para essa descoberta (DUHEM, 1989a, p. 39).184

Cientistas trabalham em uma tradição de pesquisa, guiados por uma teoria. Eis aqui uma característica explicitada por Kuhn em A revolução copernicana e cuja abordagem lembra muitas das afirmações duhemianas quanto ao desenvolvimento da ciência. Para Duhem, esse desenvolvimento é lento e gradual, não experimenta mudanças

183

Conceptual schemes are comprehensive; their consequences are not limited to what is already known.

Therefore, an astronomer commited to, say, the two-sphere universe will expect nature to show the additional, but as yet unobserved, properties that the conceptual scheme predicts. For him the theory will transcend the known, becoming first and foremost a powerful tool for predicting and exploring the unknown.

184

Or, l‘históire de la Physique nous fournit une foule d‘exemples de cette clairvoyante divination; maintes

fois, une théorie a prévu des lois non encore observées, voire des lois qui paraissaient invraisemblables, provoquant l‘expérimentateur à les découvrir et le guidant vers cette découverte.

bruscas e repentinas. A visão de Kuhn em relação à revolução copernicana não destoa dessa perspectiva, tanto é que ele a aborda como ―revolução gradual‖. Em seção que leva esse título (capítulo 5 do livro), Kuhn fala da passagem de uma tradição a outra, salientando como esse processo é gradativo. A passagem de uma tradição a outra é abordada como a passagem de um esquema conceitual a outro.

Esta é, em resumo, a estrutura lógica de uma revolução científica. Um esquema conceitual, em que se acredita porque é econômico, frutífero e cosmologicamente satisfatório finalmente conduz a resultados que são incompatíveis com a observação. A crença deve ser então abandonada e uma nova teoria adotada. Depois disso, o processo começa novamente. É um esboço útil, porque a incompatibilidade entre a teoria e a observação é a fonte última de toda revolução nas ciências (KUHN, 1970a, pp. 74-75).185

Um cientista acredita que a teoria que adota é a melhor das alternativas de explicação da realidade, a que representa uma maior aproximação com os fatos observados. O preço a se pagar por essa crença é a possibilidade da descoberta, por parte do físico, de que empregou a teoria errada. O seu esquema conceitual deve, então, ser abandonado e substituído (KUHN, 1970a, p.74). O modo como se processa a substituição de um esquema conceitual – enfatiza Kuhn – nunca é simples como o esboço apresentado no trecho citado acima. Na narrativa da revolução copernicana, é clara sua visão acerca da lentidão e complexidade da reforma de uma tradição. E aqui, as reflexões de Westman acerca de A

revolução copernicana são, uma vez mais, pertinentes, já que, em seu ponto de vista, Kuhn

atribui, nessa obra, um importante papel para a tradição, o que representaria uma semelhança a mais com Duhem, de cujo livro La théorie physique ele cita passagem, parcialmente transcrita abaixo:

Assim, por uma tradição contínua, cada teoria física passa, àquela que a segue, a parte de classificação natural que ela pode construir, como,

185

That, in outline, is the logical structure of a scientific revolution. A conceptual scheme, believed because it

is economical, fruitful and cosmologically satisfying, finally leads to results that are incompatible with observation; belief must then be surrendered and a new theory adopted; after this the progress starts again. It is a useful outline, because the incompatibility of theory and observation is the ultimate source of every revolution in the sciences.

em certos jogos antigos, em que cada corredor, estendia a chama acesa ao corredor que vinha após ele. E essa tradição contínua assegura uma perpetuidade de vida e de progresso à ciência (DUHEM, 1989a, p. 44).186

A indicação de Westman187 relativa à importância da tradição na análise

kuhniana da revolução copernicana contribui para selar a aproximação aqui pretendida entre Kuhn e Duhem. Ao fim de A revolução copernicana, lemos:

Contanto que a tradição contínua sobre o aprendizado ocidental sobreviva, cientistas serão capazes de explicar os fenômenos primeiramente elucidados pelos conceitos newtonianos, tal como Newton foi capaz de explicar a lista mais restrita de fenômenos previamente elucidados por Aristóteles e Ptolomeu. É assim que a ciência progride: cada novo esquema conceitual abrange os fenômenos explicados por seus antecessores e acrescenta algo a eles (KUHN, 1970a, p. 264).188

Note-se como a última afirmação está próxima da caracterização duhemiana do desenvolvimento contínuo da ciência. No entanto, Kuhn, na sequência, esclarece que, embora os feitos de Copérnico e Newton sejam permanentes, os conceitos que possibilitaram esses feitos não são, o que lhe permite falar de uma ―revolução conceitual‖. Conceitos científicos são substituídos com o desenvolvimento da ciência e, com isso, há uma alteração na concepção do cientista, por exemplo, com relação ao espaço, à matéria e à estrutura do universo. ―Somente a lista de fenômenos explicáveis é que cresce; não há

processo cumulativo similar para explicações em si mesmas‖ (KUHN, 1970a, p. 265)189

.

186

Ainsi, par une tradition continue, chaque théorie physique passe à celle qui la suit la part de classification

naturelle qu‘elle a pu construire, comme, en certains jeux antiques, chaque coureur tendait le flambeau allumé au coureur qui venait après lui; et cette tradition continue assure à la science une perpétuité de vie et de progrès.

187

Conforme já assinalado, o propósito da comparação de Westman entre Duhem e Kuhn é diverso do aqui proposto. Westman utiliza a metáfora duhemiana para afirmar a mudança da visão de Kuhn com relação aos episódios revolucionários da ciência em A estrutura: ―é como se os corredores olímpicos do paradigma sucessor não mais vissem as tochas ou não entendessem o comportamento dos corredores no paradigma anterior‖ (WESTMAN, 1994, p. 85).

188

As long as the continuous tradition on Western learning survives, scientists will be able to explain the

phenomena first elucidated by Newtonian concepts, just as Newton was be able to explain the more restricted list of phenomena previously elucidated by Aristotle and Ptolemy. That is how science advances: each new conceptual scheme embraces the phenoma explained by its predecessors and adds to them.

189

Only the list of explicable phenomena grows; there is no similar cumulative process for the explanations

Segundo Kuhn, alguns esquemas conceituais (como o copernicano e o newtoniano) continuaram a ser empregados devido às suas características de economia, de utilidade prática, mas estariam deixando de fornecer um guia confiável para o desconhecido (KUHN, 1970a, p. 265). De certa forma, ele retoma aqui a discussão empreendida na distinção entre a função lógica e a psicológica de um esquema conceitual: enquanto a função lógica permanece na história, a psicológica (explicativa) é suplantada por outra, o que acarreta a substituição de um esquema conceitual por outro, ou seja, acarreta uma revolução – em A revolução copernicana, uma ―revolução conceitual‖.

Em contexto não destinado à discussão de uma revolução, Duhem contrapõe o que faz e o que não faz parte do progresso contínuo da ciência. Em La théorie physique, ele esclarece que, quando uma teoria é contrariada pelos fatos, o que sofre uma mudança substancial é a parte explicativa. De outro lado, ―a parte puramente representativa entra quase inteira na nova teoria, fornecendo a herança de tudo o que a teoria antiga possuía de

mais precioso, enquanto a parte explicativa cai para dar lugar a uma outra explicação‖190

(DUHEM, 1989a, p. 43-44).

A ideia duhemiana de que uma nova teoria ―herda‖ elementos de uma teoria anterior lembra a afirmação de Kuhn (1970a, p. 41) de que nenhum esquema conceitual nasce do nada. Essa afirmação vem endossar a visão duhemiana de que teorias não são produtos repentinos da criação da mente humana (DUHEM, 1989a, p. 337). Há, de uma

forma ou outra, uma continuidade da tradição.191 Enquanto Duhem afirma que, no novo

edifício da física moderna, existem restos do edifício da física antiga, Kuhn afirma que o ―De Revolutionibus [...], embora nascido numa tradição de pensamento científico, é a fonte

de uma nova tradição que finalmente destrói sua origem‖ (KUHN, 1970a, 135)192. Ainda

que tanto Duhem quanto Kuhn afirmem a morte da tradição aristotélica, não nos parece

190

[...] la partie purement représentative entre presque entière dans la théorie nouvelle, lui apportant

h‘héritage de tout ce que l‘ancienne théorie possédait de plus précieux, tandis que la partie explicative tombe pour faire place à une autre explication.

191

A semelhança entre Kuhn e Duhem aqui é relevante porque a distinção duhemiana entre a parte representativa e a explicativa de uma teoria científica se encontra diretamente relacionada à tese de que Duhem afirmaria a ocorrência de revoluções somente no campo da metafísica.

192

[…] though born within one tradition of scientific thought, is the source of a new tradition that ultimately

inadequado afirmar que ambos, de certa forma, indicam um elo entre tradições – no caso, a

astronomia copernicana193.

2.3.2 Os precursores de Copérnico

Segundo Fichant (1971), uma história da ciência escrita segundo a tese da continuidade será uma investigação de precursores. Para esse estudioso da história da ciência, não é sem motivo que Duhem teria se interessado, sobretudo, pela formação do sistema de Copérnico e pela pesquisa dos precursores de Galileu em Études sur Léonard de

Vinci (DUHEM, 1984a). O objetivo de Duhem seria ―o de mostrar que o sistema

cosmológico de Copérnico é o culminar da série de lentas transformações que

‗gradualmente‘ o prepararam‖ (FICHANT, 1971, p. 87).

Em nossa análise, deparamo-nos com o fato de que ambos – Duhem e Kuhn – assinalam que a revolução copernicana se processou gradualmente. Embora as propostas sejam distintas (Kuhn aborda a revolução propriamente dita e Duhem fala do sistema do mundo de Platão a Copérnico), e ainda que Kuhn não explicite o desejo de identificar precursores, é possível explorar, em nossa análise, a ideia da preparação da revolução, da identificação de precursores, características atribuídas à história da ciência conduzida segundo a tese da continuidade.

Duhem, que dedica um capítulo do primeiro tomo de Le système du monde à discussão das astronomias heliocêntricas da antiguidade, é muito enfático com relação à contribuição que essas astronomias teriam dado ao sistema copernicano. Em sua abordagem, Heráclido do Ponto forneceu ―o primeiro esboço do sistema de Copérnico‖

(DUHEM, 1988, p. 404)194; Aristarco de Samos foi ―não somente o precursor, mas ainda o

193

A identificação de elos na cadeia da história da ciência não necessita de maiores comentários no que toca a Duhem. No caso de Kuhn, a afirmação metafórica de que o De Revolutionibus é fonte de uma nova tradição que mata seu pai deixa claro o vínculo entre estas tradições. Podemos ainda remeter a outro trecho de A

revolução copernicana: ―uma obra que faz revolução é, ao mesmo tempo, o culminar de uma tradição passada

e a fonte de uma nova tradição futura‖ (KUHN, 1970a, p. 134). 194

inspirador de Copérnico‖ (DUHEM, 1988, p. 418)195

. Apesar de percebermos uma diferença de tom no modo como Duhem e Kuhn discutem a influência dessas cosmologias heliocêntricas antigas no sistema copernicano, chama nossa atenção a semelhança como interpretam o porquê do sistema heliocêntrico não ter vingado antes de Copérnico.

As cosmologias antigas, diz Kuhn,

eram rejeitadas pela maioria dos filósofos e quase todos os astrônomos no mundo antigo. Na Idade Média elas eram ridicularizadas ou ignoradas. As razões para a rejeição eram excelentes. Essas cosmologias