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A revolução mineira na África do Sul

1.3 A construção do estado colonial

1.3.1 A revolução mineira na África do Sul

A descoberta dos jazigos de diamantes na repúblicaboerdo Transvaal ocasionou uma profunda transformação econômico-social no sul de Moçambique ao fazer com que, como refere Harris21, a venda da força de

trabalho se tornasse bem mais atrativa do que a comercialização de produtos do trabalho. A expansão da demanda de mão-de-obra moçambicana levou, por um lado, à conversão de importantes comerciantes em angariadores e, por outro lado, a uma nova situação política em face dos acordos diretos que o governo britânico estabeleceu com soberanos africanos, de entre os quais com o império de Gaza, no sul de Moçambique.

Hábil negociador, Ngungunhane - o imperador de Gaza - pretendia como contrapartida o estabelecimento de regulares relações econômicas e políticas e chegou a enviar, em 1891, dois emissários a Londres. A importância da iniciativa decorre da resposta da rainha Vitória, transmitida por Sir Henry B. Loch 14º, secretário de Estado das Colônias, que Maria da

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Por volta de 1870 foram descobertos diamantes na zona da atual cidade de Kimberley. Uma década mais tarde, eram descobertos riquíssimos filões auríferos no Transvaal. O surgimento da indústria mineira transformou o país. De imediato, criou uma demanda de mão de obra de centenas de milhares de trabalhadores, com grande impacto regional. A política britânica foi alterada: de uma simples contenção das repúblicas boers, passou à tentativa de domínio das regiões mineiras que conduziria à guerra anglo-boer no fim do século XIX. A extraordinária acumulação de riqueza proveniente das minas atraiu uma multidão de estrangeiros, principalmente da Europa, e está na base de um processo de industrialização único no continente.

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Harris, “Labour migration from Mozambique”, p.214, citado por PENVENNE, Jeanne em “We are all Portuguese!”, p. 261, referido na Bibliografia.

Conceição Vilhena transcreve no seu livro sobre Ngungunhane. Pela sutileza da linguagem diplomática, transcrevo o texto original:

“To Gungunhana – Chief of Gasaland – My Friend

I am desired by the Secretary of State for the colonies to inform you that whilst your Envoys Hu any formallu and Unifeti were in England, Her Majesty the Queen informed them that communications would be made to you through Her Majesty’s Ministers on the subject of your Envoys visit. I am therefore to acquaint you that as the convention with Portugal places much of your territory under the protection of that country, you have acted rightly in not making request; for her Majesty’s was pleased to receive your two representatives and to learn from them your friendly disposition towards Herself and her subjects, a feeling which she entirely reciprocates. I am your friend (assinado) Henry B. Loch 14th.

August 1891 – Governor High Commissioner-Seal of High Commissioner”.(Vilhena, 1999:104-5).

O governo de Sua Majestade Britânica procurava manter uma posição de equilíbrio entre os chefes tradicionais e a administração portuguesa local sem, contudo, renunciar ao canal de comunicação que se abria. O governo de Lisboa viu essa política dos ingleses, em especial em relação a Ngungunhane, com desagrado e extrema preocupação em virtude do evidente interesse britânico sobre os territórios meridionais da colônia em que Portugal ainda não exercia a ocupação efetiva.

A partir de 1869, os acontecimentos tinham começado a se precipitar. A vizinha república boer do Transvaal, em conflito crescente com o colonialismo britânico, firmou um acordo com o governo de Lisboa reconhecendo a soberania portuguesa sobre Delagoa Bay (mais tarde conhecida por baía do Espírito Santo ou, simplesmente, de Lourenço Marques) em troca de uma via privilegiada de acesso ao mar, sem fiscalização britânica e isenta de taxas aduaneiras. O acordo colidia frontalmente com a política de Londres na África do Sul de manter sob controle as repúblicas afrikaner, dominando todos os portos que serviam às suas economias. O governo inglês reagiu reclamando o domínio da baía e o diferendo foi levado à arbitragem internacional do presidente da França, marechal Mac-Mahon, que decidiu favoravelmente às pretensões de Portugal em 24 de julho de 1875.

A vitória diplomática sobre a Inglaterra, potência contemporaneamente admirada e detestada, deu novo alento aos setores que, na metrópole, se opunham à venda de Moçambique e defendiam a importância de assegurar a soberania sobre as colônias africanas. No final do mesmo ano era criada a Sociedade de Geografia de Lisboa com objetivo político de dar fundamento científico, cultural e humanístico à elaboração de uma estratégia para África. A burguesia procurava dar ao colonialismo nacional uma estrutura a par com os tempos.

Expressão desse interesse colonial renovado viria a ser o projeto do

Mapa Cor-de-Rosa, elaborado pelo ministro português Barros Gomes. Portugal não assinara as atas de Berlim e no ano seguinte procurava relançar os seus “direitos históricos” sobre um vasto território ligando Angola, no

Oceano Atlântico, a Moçambique, no Oceano Índico. Os governantes de Lisboa buscavam, mais uma vez, a redenção da sua pequena pátria no sonho de grandeza de um império.

O projeto, que chegou a ser reconhecido pelo governo da Alemanha e aceito pela França, deveria, no imaginário lusíada, mitigar as saudades do Oriente e compensar a perda do Brasil. Os ingleses não reconheceram o acordo luso-germânico. A partir da África do Sul, os seus colonos estavam ocupando as terras altas do interior e em Westminster se sonhava com uma faixa de território da Cidade do Cabo até ao Cairo à sombra da “Union Jack”. O casus bell”que deu aos britânicos o pretexto para se oporem frontalmente à doutrina do Mapa Cor-de-Rosa seria criado pelos próprios portugueses quando, em fins de 1889, iniciaram uma campanha militar para o interior contra o povo mokololo, que os ingleses anunciaram como estando sob sua proteção. A 11 de janeiro de 1890, Sua Majestade Britânica apresentou o

Ultimatum intimando o governo português, sob a ameaça de uma retaliação militar, a ordenar a imediata retirada das suas tropas. Era a vulgarmente chamada “política das canhoneiras” do grande império...

António José Telo escreve a propósito:

“Os jornais do Cabo e a imprensa inglesa, que era invariavelmente apresentada para consumo interno como manipulada por Cecil Rhodes, chegavam a escrever que Portugal era uma vergonha para a raça branca, incapaz de se impor perante os poderes africanos, donde se concluía que os seus territórios tinham de ser administrados por quem soubesse o que fazia”(Telo, 2004, p.8).

António Enes alude a esse sentimento de frustração quando descreve um incidente em Lourenço Marques no qual um oficial às suas ordens, Paiva Couceiro, furioso com os despachos da imprensa anglófona, agrediu no mesmo dia um jornalista americano e dois correspondentes de jornais sul- africanos de nacionalidade inglesa os quais, de acordo com as informações que colhera, “eram os correspondentes dos jornais estrangeiros mais contra os portugueses”(Enes, 1945, p.133-137).

A capitulação perante a força britânica, que no primeiro momento provocou algum ressentimento antimonárquico fomentado por círculos republicanos, deu azo, logo em seguida, a uma onda de nacionalismo em defesa de um “território do império” que havia sido “usurpado”. A vergonha se transformou em fervor patriótico. A imprensa, clamando contra a “pérfida Albion”, e o clero católico, integralista, incitavam ao nacionalismo indignado que se tornou sentimento generalizado da população portuguesa em cortejos pelas ruas das cidades portuguesas. Os grandes vultos literários da época, conhecidos como a Geração de 1870 - que denunciavam com veemência o “atraso” de Portugal em relação à Europa e propunham a revolução burguesa como a via da “regeneração” -, aderiram, com poucas exceções, ao surto nacionalista. O próprio Antero de Quental aceitou a presidência de uma organização patriótica do norte de Portugal. Outras personalidades de relevo como Ramalho Ortigão, Oliveira Martins e Teófilo de Braga, integraram-se na exaltação do momento. Eça de Queiroz, grande amigo e companheiro de Antero, se distanciou dele, mantendo uma posição crítica à política colonial. Todavia, como escreve Costa e Silva,“céptico das virtudes do colonialismo”e

“adversário do imperialismo europeu”, não consegue furtar-se inteiramente à conjuntura do momento e escreve A Ilustre Casa de Ramires, “a resposta pessoal de Eça de Queiroz ao Ultimato britânico”(Costa e Silva, 2000, p.16)

Os sucessos alcançados na guerra de ocupação em Moçambique projetaram a elite militar em torno da figura de António Enes, a qual se tornaria símbolo do resgate do orgulho nacional dos portugueses e que daria corpo, com a derrota das forças que se opunham ao “Terceiro Império”, ao seu sonho de potência colonial. Eles ficariam conhecidos como a “geração de 95” (“os centuriões”, como lhes chama Pélissier).22A prisão de Ngungunhane

por Mouzinho de Albuquerque, em dezembro de 1895, com o conseqüente desmantelamento do Estado de Gaza, e a derrota, em 1902, de Hanga (ou Canga), o todo-poderoso chefe da coligação multiétnica do Barué, prestigiaram as forças militares portuguesas perante os seus parceiros coloniais e consolidaram o “direito” de Portugal à anexação dos territórios africanos.

O princípio proclamado pela revolução liberal de 1820 de que cada parcela do império é uma parte de um todo nacional se manifestou, pela primeira vez, como o sentimento de amplas camadas da sociedade portuguesa. Nesse momento histórico se enraizou a sinonímia entre “Pátria” e “Império” que o salazarismo, três décadas e meia mais tarde, exaltaria e faria coincidir com a noção de “missão civilizadora”, conseguindo que essa associação se interiorizasse como traço marcante da identidade nacional

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A esta "geração" pertenceram outras personalidades de relevo como Mouzinho de Albuquerque (que aprisionou Ngungunhane e, depois, foi comissário régio e governador geral de Moçambique), Freire de Andrade (mais tarde Governador-Geral de Moçambique), Aires de Ornelas (futuro ministro do Ultramar), Eduardo Costa (que seria governador-geral de Moçambique e, depois, de Angola), Paiva Couceiro (que substituiria E. Costa como

portuguesa. Em 1963, Salazar afirmava explicitamente que “o conceito de Nação é inseparável, no caso português, da noção de missão civilizadora”

(Salazar, 1963, p.4).

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