• Nenhum resultado encontrado

PARTE II: O CINEMA SEGUNDO PASOLIN

6.3. A Ricota (1963)

Terceiro filme de Pasolini e quarto episódio do filme Relações Humanas (RO.GO.PA.G192,

1963), A Ricota surge no exato momento em que o cineasta italiano começava a refletir sobre a sua “linguagem escrita da realidade”. Filmado no outono de 1963, a história se passa na periferia de Roma (entre a Via Ápia Nova e a Via Ápia Velha), onde um diretor esnobe realiza uma superprodução “maneirista” da “Paixão de Cristo”, em abordagem ambígua do espírito do subproletariado romano, que sintetiza a primeira fase do cinema de Pasolini.

Com este média metragem, Pasolini parodia os épicos bíblicos hollywoodianos e cria uma nova abordagem de sua “sacralidade técnica”, reelaborada a partir do único destino possível do subproletariado presente nos filmes anteriores: a morte. Contudo, A Ricota representa uma

191 LAHUD, 1993 p. 66.

192 Título formado pelas iniciais dos nomes de diferentes diretores que participaram dele: Rossellini, Godard, Pasolini

intermediação transitória na obra do cineasta, pois reflete a passagem de um cinema influenciado diretamente pelo Neo-Realismo para um mais simbólico e visionário, que caracterizará sua obra posterior.

No filme, o vaidoso e prepotente diretor interpretado por Orson Welles, definindo-se como marxista ortodoxo, alter-ego de Pasolini, assume maliciosamente a representação caricata, cética e autobiográfica do autor. Declama a um jornalista que surge para entrevistá-lo poemas e frases que o cineasta italiano havia declarado à imprensa, sempre ávida por seus depoimentos de efeito e frases de auto-ironia: “Eu sou uma força do passado [...]. A crítica sobre meu filme não tem importância. O produtor de meu filme é também o dono de seu jornal [...]. A Itália é o país mais analfabeto, com a burguesia mais hipócrita e ignorante da Europa.”

Na reconstituição pasoliniana da Paixão, a cena principal passa-se nos bastidores do set do “filme dentro do filme”, onde o protagonista não é Cristo, mas um figurante que interpreta um dos ladrões a ser crucificado, o jovem ator Giovanni Stracci (que em italiano significa farrapo). É um subproletário vítima da fome crônica, contratado para o papel do bom ladrão, que sem pretensões artísticas aceita atuar em troca de comida. Forçado a dividir o que consegue com a família, ele se “traveste” de mulher para conseguir outra refeição. Chamado por um megafone tem que voltar a cena, escondendo essa segunda às pressas numa caverna próxima. Ao retornar numa das pausas das filmagens para enfim satisfazer sua fome, descobre que sua comida fora devorada pelo cão da suposta “diva”, a atriz principal que interpreta Maria (Laura Betti), um felpudo animalzinho de raça tão faminto quanto ele próprio. Aos choros e desesperado como criança, ele vende o cachorrinho da caprichosa madame por mil liras ao jornalista que entrevistara o diretor, e com o dinheiro compra uma quantidade considerável de ricota, que entre uma pausa e outra das filmagens aproveita para comer avidamente (numa seqüência acelerada de música e imagem, uma referência explícita ao cinema mudo, em particular a primeira fase de Carlitos).

Chamado novamente ao set de filmagens para ser crucificado, ele começa a passar mal. Logo em seguida adormece e talvez pelo sentimento de culpa de ter vendido o cão, é acometido de uma alucinação, ou um sonho-visão, o chamado “Stracci-Show”: dentro da caverna, a equipe e os demais figurantes que zombam dele por estar sempre morto de fome, surgem um a um, levando-lhe uma quantidade enorme de comida que o obrigam a devorar selvagemente. Como o próprio Cristo em seus tormentos e agonia, Stracci sofre uma indigestão, e fatal e ironicamente morre na cruz, no exato momento da crucificação.193 Iniciada as filmagens, quando Welles pede

193

Segundo Joubert-Laurencin, a idéia do final do filme em que Stracci morre por causa de uma indigestão depois de ter ingerido muita ricota provém declaradamente do próprio cineasta do Journal de Pontormo, uma espécie de diário, cujas notações sobre as refeições do pintor florentino ocupam pelo menos metade do periódico, além das de pintura.

azione, todos fazem o seu papel, exceto o pobre esmorecido na cruz. O diretor ordena várias vezes

que o esfomeado Stracci diga o seu texto, inutilmente. Ao descobrir que ele está morto, comenta laconicamente: “Pobre Stracci Morreu! Não havia outro modo de nos lembrar que ele também era vivo” Mais do que nunca nessa frase está resumida a máxima de Pasolini de observar o sentido e necessidade da morte como ato de expressão. Interessante observar que essa frase seria “Pobre Stracci! Morrer seria o único modo de fazer a revolução”. Contudo, por causa da censura esse comentário foi modificado por um menos “ofensivo”, impedindo que Pasolini fosse mais explícito no que queria demonstrar: Stracci ao morrer esquecido sob a cruz estaria como Cristo fazendo a revolução, ou ainda, “roubando” o papel de Jesus, tomando para si sua sacralidade. Nesse aspecto, o diálogo com o ator que interpreta Cristo, quando estão ambos “pregados” na cruz, a espera de rodar a cena torna-se muito significante:

STRACCI: (Morrendo-se de fome, com os braços estendidos sobre a cruz): Tenho fome, tenho fome! Maldita seja! Vou praguejar!

CRISTO: Eh! Nem tente, se não quiser apanhar!

STRACCI: Que belo Cristo você é! Segundo você eu não teria razões para protestar. CRISTO: Faça o então, mas olha que eu logo não te levarei ao reino dos céus. STRACCI: Eu estaria mais alegre no reino da terra!

CRISTO: Sim, com essa fome! [...]

CRISTO: Não te entendo. Estás sempre morto de fome e te pões ao lado dos senhores, que permitem que morras de fome.

STRACCI: Há aqueles que nascem com uma vocação e outros que nascem com outra. A mim foi- me dada a vocação de morrer de fome.

Com esse diálogo, A Ricota mostra-se provavelmente o filme mais “marxista” e dialético desse primeiro momento de Pasolini. A classe operária que guarnece o material humano para a figuração do filme, não é somente plena de uma graça particular e de simplicidade decadente, mas já é vulgar, contaminada pelos vícios burgueses. O próprio Stracci na cena em que vende o cão não exita em demonstrar seu cinismo e um singular senso pequeno-burguês do mundo. A Stracci Pasolini atribui uma consciência que seus outros personagens não têm e não terão: ter nascido com a vocação de morrer de fome.

Entre os dias 10 e 11 de maio de 1555, Pontormo descreveu sua jornada e comenta: “sábado à noite jantei com Piero,

peixe do Arno, ricota, ovos e alcachofra e eu comi tanta e o máximo de ricota, e pela manhã comi com Bronzino e à

noite não jantei, isso foi bom pois havia comido muito”. (E mangiai troppo e maxime della ricotta). Cf. JOUBERT-

Contudo, como Ettore e Accattone, personagens do subproletariado romano dos filmes anteriores e condenados ao martírio da indiferença da sociedade, a “real” e cômica morte de Stracci no papel do bom Ladrão pode ter em si um sentido transcendental e revelador, mesmo sem a promessa de ressurgir no terceiro dia constatada no diálogo com Cristo. Na verdade, suas mortes como a morte de Cristo têm um sentido revolucionário e redentor. Diferente do efeito final das mortes de Accattone e Ettore, a morte de Stracci num Calvário artificializado é decisivamente grotesca, o registro de A Ricota, portanto não é mais aquele lírico-poético, muito menos portador de um caráter nacional-popular no sentido gramsciniano presente nos filmes que o antecedem.

Ao realizar Accattone, Pasolini via os problemas sociais italianos inseridos somente na particularidade e na especificidade italiana das borgatte. Com A Ricota tornava-se impossível o registro desses problemas, pois a Itália não era mais o país de uma década atrás, estava mudando de modo nunca antes visto. Dessa forma, a única maneira de ver o subproletariado italiano daquele momento era considerá-lo um dos múltiplos fenômenos do Terceiro Mundo, Pasolini viu- se obrigado a estender o seu foco para além da sociedade em que nascera.

Apesar de menos poético que Accattone, Stracci é o personagem-chave do primeiro momento cinematográfico pasoliniano, o mais significativo, o que possui um sentido mais universal. Para Pasolini, Stracci é o verdadeiro conteúdo do filme, é a classe subproletariada vista, desta vez, não em si mesmo como se o resto não existisse, “ou seja, não é um mundo visto completamente de dentro, como acontece em Accattone onde não existiam personagens como Orson Welles, não existia um representante da burguesia, nem uma relação com o resto do mundo.”194

A morte de Stracci sob a cruz como um novo mártir sem santidade assume uma dupla significação: ele é o emblema do subproletariado terceiro mundista que se sacrifica por causa dos vícios burgueses (o filme comercial que está sendo filmado dentro do filme) e a encarnação real e contemporânea de Cristo. Não é a toa que Pasolini declarou ser Stracci não só um herói mítico do subproletariado romano, enquanto problema específico, mas “o herói simbólico do Terceiro Mundo”.

Da mesma forma que em Accattone e Mamma Roma, em A Ricota, Pasolini busca inspiração em obras de arte renascentistas para criar uma nova abordagem do sagrado, adicionada a um diálogo paródico e metacinemático entre os códigos pictural e cinematográfico. Contudo, ao contrário do sentido criado na relação pintura/cinema de Accattone e Mamma Roma, em quem os grandes pintores renascentistas são evocados pela escolha das objetivas e da frontalidade dos

194 PASOLINI, 1985, p. 63.

planos, em A Ricota, essa relação é canalizada através da mediação do uso da cor e suas fortes tonalidades, alternadamente em contraste com cenas em preto e branco. Nesse caso são duas cenas que reconstituem sofisticada e minuciosamente duas obras maneiristas: a primeira,

Deposizione di Cristo de Rosso Fiorentino (1494-1541)(fig.9) e a segunda Trasporto di Cristo al sepolcro (1526-1528) de Jacopo Pontomo (1494-1557)(fig.10). Obras nas quais o cineasta se

inspira para construção de duas de suas seqüências, provando definitivamente que o próprio gosto cinematográfico pasoliniano não é de fato de origem cinematográfico, mas pictural. Na realidade aqui a imagem é mais tributária dos quadros dos pintores de sua preferência do que do próprio cinema.

O Maneirismo torna-se, com efeito, por sua capacidade de criar correlações com outros estilos e graças ao seu caráter antinaturalista, a operação estilística do cinema de Pasolini já evidenciada nos filmes precedentes. Para Antonio Costa, essas freqüentes citações da pintura maneirista no cinema pasoliniano “têm relações precisas com a poética de um autor que havia assumido desde cedo (especialmente em sua poesia) os excessos, os preciosismos e as

Fig. 10. Trasporto di Cristo al sepolcro (1526-1528) , de Jacopo Pontormo

deformações plásticas e cromáticas típicas do maneirismo pictórico como componentes essenciais de seu estilo.”195

Nas cenas do filme em cores (technicolor) intitulado por Pasolini de Vilipendio (a exata referência à condenação que o filme recebeu posteriormente de ofensa à religião do Estado), o cineasta recorre aos tableaux vivants, isto é, à própria mis en scene da obra pictórica, constituída de cenas teatrais mudas e imóveis que reproduzem as obras de artes figurativas. O suposto filme e os percalços de suas gravações que Welles estaria filmando estão perfeitamente inseridos na trama em preto e branco de Stracci, dotada de uma singularidade metalingüística própria. Enquanto Welles, ícone de Hollywood, o condutor de atores, o “mediador” entre os homens vivos e as figuras de simulação, estaria construindo por meio de sucessão de quadros vivos um filme estático no interior de A Ricota, Pasolini elaborava um dos mais célebres exemplos de sua “fulguração figurativa”. Aqui, o caráter pictórico é pleno de teatralidade, são exatamente esses tableaux

vivants os substitutos dos atores não-profissionais presentes em filmes como Accattone, a quem

Pasolini com a voz pedia: ria! corra! chore!: “aspecto mecânico e distanciado do quadro”196 realizando assim um cinema mais lúdico e hierático possível.

Ao reconstituir os quadros maneiristas, Pasolini o faz para “desfazer a composição (a pose) para lhe dar vida, num movimento duplo de dessacralização da (pintura) e sacralização do real”.197

Segundo Michel Lahud, nos filmes da primeira fase de Pasolini, o cineasta quer mostrar que “o sagrado não se encontra ali onde a burguesia o coloca e o procura, mas onde quase ninguém o percebe”198: na existência banal e esquecida de personagens humildes em conflito, na Paixão autêntica e pura de um “cinema in natura”, da vida de homens como Accattone, Ettore, Stracci, ou até mesmo de Cristo feito homem.

A intenção de Pasolini ao realizar o filme sob inspiração de quadros de um mesmo tema, realizados a uma mesma época por dois mestres do Renascimento era a mesma dos filmes anteriores: sacralizar a realidade subproletária através da dessacralização da moral e da cultura burguesa tipificadas na religiosidade clássica das obras de arte renascentistas; ao mesmo tempo em que encenava uma alegoria burlesca e pseudo-sublime da Paixão, ridicularizava através de posturas grosserias e vulgares as composições maneiristas dos quadros florentinos. Aqui a citação

195 COSTA, 1989, p. 201.

196 JOUBERT-LAURENCIN, 2005, p. 150. Tradução do autor. Original: “aspect mécanique et distancié du tableau”. 197 VASCONCELOS, António Pedro. “O cinema de Pasolini”. In: PASOLINI, 1985, p. 12.

explícita pode ser identificada não apenas no martírio da figura cristológica de Stracci e seu percurso desordenado das etapas da Paixão de Cristo, mas na averiguação da qualidade trágica da arte de Pontormo, e sobretudo nos quadros que os imita no uso de cores violentas, da música empregada, na distribuição dos objetos, da luz e da evidente composição dos corpos nos enquadramentos, subvertendo por completo a simbologia da tradição pictórico-cristã, transformando sua representação numa paixão bufa. Como lembra Marco Antonio Bazzochi, Pasolini ao utilizar esses quadros em sua crítica, estava fazendo justamente o que Arnold Hauser “sublinhava, que no Maneirismo, humor e tragédia convivem, sob a base do paradoxo”.199

Em A Riccota, a crítica de Pasolini reside no fato de que a autêntica Paixão, para ele a “mais sublime das histórias já escritas” não se exprime em obras de “consumo burguesas” nos quadros do renascimento italiano, mas na “sagrada” condição subproletária, que teria a morte como único fim possível. Segundo Pasolini, ao misturar os conceitos marxistas a crenças religiosas não-ortodoxas, o filme que se inicia com duas referências do Evangelho deveria ser um ataque direto à vulgarização da espiritualidade, à espetaculização da religião e às falsas idéias de religiosidade por parte da burguesia; mas foi erroneamente interpretado pelas autoridades como “uma tentativa de denegrir a religião do Estado”, e por isso acusado de blasfêmia e vilipêndio à Igreja Católica. A fita foi posta sob seqüestro judicial, sendo a exibição do episódio imediatamente proibida nas salas de cinema da Itália e tendo sido o diretor condenado a quatro meses de prisão com sursis, sendo logo depois retirada a queixa, já que o juiz percebeu que “o ato não constitui um crime”. O fato é que Pasolini se serve de um dos símbolos do Cristianismo, a paixão de Cristo, para representar através da imoralidade da equipe cinematográfica (maioria burguesia) do set cinematográfico, o verdadeiro Cristo: Stracci; que vem a ser sacrificado, condenado (como Cristo) à morte pela crueldade de uma sociedade moderna miserável, falsamente democrática e hipócrita, propensa ao consumo a qualquer custo, a verdadeira tragédia do subdesenvolvimento.

Documentos relacionados