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2 SER E CONHECIMENTO EM SANTO TOMÁS DE AQUINO

2.2 ENTE E CONHECIMENTO

2.2.2 A síntese concretiva

Segundo Fernando Arruda Campos, a síntese concretiva constitui a “síntese do elemento representativo do conceito, isto é, a expressão da estreita união existente entre um - suppositum material, representado pelo sujeito do julgamento, e a forma abstrata de um aspecto do ser, representado pelo predicado”142. É a síntese concretiva que permite que haja predicações do tipo S é P, de maneira que P signifique algum conceito universal e S uma imagem sensível formada a partir de um ente singular.

No primeiro capítulo vimos todo o esforço de Aristóteles em colocar que tudo aquilo que conhecemos parte da ousia. O Estagirita faz questão de deixar claro que aquilo pelo qual o conhecimento é obtido é exatamente o que nos é primeiro no entendimento, o que é mais próximo, ou seja, a ousia. A teoria da síntese concretiva visa mostrar como uma essência abstrata se correlaciona diretamente a imagem sensível do ente extramental, ou seja, a um isto determinado. O pronome indicativo serve para acentuar ainda mais o caráter individual e uno do ente que é o fundamento pelo qual o conhecimento é realizado. Em outras palavras, a faculdade cognoscitiva, através do intelecto agente, produz o inteligível pela imagem sensível de algum ente que foi dado mediante os sentidos, e percebe que esta mesma essência é inerente à imagem do individual concreto. Sendo assim:

O momento da "síntese concretiva", cuja razão última é a receptividade de uma faculdade cognoscitiva não-intuitiva como é a nossa, o que supõe o conhecimento intelectual como passagem da potência ao ato, implica a alteridade do objeto e, portanto, a sua objetividade incoativa, na medida em que a sua natureza (essentia), qüididativamente ou abstratamente expressa, é

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Para maior aprofundamento do tema, cf. MARÈCHAL, Joseph. Le Point de départ de Ia Métaphysique, Cahier V, 2. éd., Bruxelas-Paris, L'Édition Universelle - Desclée, 1949.

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CAMPOS, Fernando Arruda. Tomismo hoje. In: ALMEIDA, Phillippe Oliveira. A doutrina tomista do juízo em Lima Vaz. Revista pensar (meio eletrônico) Belo Horizonte, v. 2 n. 1, 2011, p. 71.

conhecida, e em que a sua existência (esse) é afirmada em virtude dessa mesma natureza143.

Até agora, a exposição acerca de que maneira o conhecimento é realizado por meio do ente só havia tangenciado o problema do conhecimento a partir do singular, de maneira que paulatinamente fomo-nos distanciando desta singularidade, chegando até a universalidade da essência abstraída, e fomos cada vez mais discutindo a explicação da maneira pela qual o universal diz respeito ao singular. Desde a explicitação sobre o que venha a ser a essência absolutamente considerada até o presente momento, usamos o termo ser a partir da função copulativa, ou seja, no seu papel de ligar o sujeito ao predicado de maneira puramente lógica, mas, como esta trata somente da retidão de pensamento e como nosso conhecimento versa exatamente sobre aquilo que é, aquilo que existe de fato, foi preciso ir além e mostrar como um “conceito universal pode ser considerado como uma representação (similitude) inteligível de objetos singulares”144 através da síntese concretiva. Porém, a síntese concretiva demonstra simplesmente a condição pela qual possa ser efetuada uma predicação pertencendo ainda à primeira operação do intelecto que abstrai a essência de um ente sensível.

O ponto de partida da metafísica do Aquinate, segundo a interpretação de Marechal, interpretação esta que foi adotada pelo padre Lima Vaz, é o Juízo145. É através dele que o plano lógico se liga ao ontológico na medida em que se a primeira operação do intelecto demonstra a possibilidade da representação conceitual de objetos, a segunda operação demonstra o conhecimento de objetos propriamente ditos.

Aqui, falaremos mais propriamente sobre a segunda operação do intelecto citada acima146. É através daquilo que os medievais chamavam de separatio ou aquilo que Santo Tomás denomina de operação de composição e divisão, uma vez que o ato do intelecto que compõe e divide designa a ação pela qual o intelecto humano julga construindo uma proposição, na qual um atributo é afirmado de um sujeito (composição) ou negado (divisão)147. Ou seja, quando compomos, afirmando algum atributo do sujeito, estamos afirmando a existência, na medida em que estamos dizendo que algo é ou não é o caso. Para melhor explicar de que maneira há uma diferenciação do ser enquanto operador lógico na

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VAZ, Henrique C. de Lima. Tomás de Aquino: pensar a metafísica na aurora de um novo século. Revista Síntese. v. 23, n. 73, 1996, p. 183. 144 LANDIN FILHO, 2006, p. 36. 145 VAZ, 1996, p. 187. 146 Cf. 2.2 de nossa dissertação 147

proposição e ser enquanto expressão de existência de uma determinada coisa, seguiremos o raciocínio de Raul Landin quando este remete a Santo Tomás no Comentário ao Peryermeneias de Aristóteles, e nos fala acerca do que sejam orações predicativas de segundo e terceiro adjacente, pois “essa distinção esclarece a função desempenhada pelo verbo ser e diferencia a função atributiva da função existencial dos enunciados”148. Mais a frente, Raul Landin conceitua o que venha a ser uma oração predicativa de terceiro adjacente:

Uma oração de terceiro adjacente é composta de um termo-sujeito e de um predicado formado por duas palavras: o verbo ser e uma outra expressão (termo-nome que significa um conceito). A forma desse enunciado é S é P, onde é P é uma expressão complexa, formada por dois termos, sendo que um deles é um nome149.

Logo após, cita o Aquinate visando esclarecer melhor sua afirmação:

... é, é predicado como adjacente ao principal predicado. E diz-se que é terceiro, não porque seja um terceiro predicado, mas porque é uma terceira expressão colocada no enunciado que, simultaneamente, com um nome- predicado forma um único predicado, de tal maneira que o enunciado é dividido em duas e não em três partes150.

Com isso, ser na predicação tem a função de demonstrar que o que foi predicado está ou não está naquilo que foi significado pelo sujeito, inere a ele enquanto propriedade. Já a oração de segundo adjacente tem a forma S é e tem por intenção demonstrar que algo simplesmente existe, tal como “Platão é” que quer dizer “Platão existe”. Neste momento o termo ser muda de sentido. Até o presente momento vimos que ser desempenha a função de operador lógico da síntese concretiva, que mostra como pode ser possível que uma essência universal possa se referir a um indivíduo concreto. Mas, no contexto supracitado, há uma mudança de sentido do termo ser, demonstrando que pode significar não somente cópula mas, existência. Porém, as orações de segundo adjacente, simplesmente por declarar a existência de algo, não exerce necessariamente valor apofântico numa predicação já que podem ser usadas numa pergunta ou prece; já as de terceiro adjacente não postulam a existência do ente mas, a supõe. É necessário que ser, a respeito da segunda operação do intelecto, possa não somente postular a existência mas, ligar o sujeito ao predicado. Desta maneira é necessário que se vá além da primeira operação do intelecto e se chegue a segunda. É através dela que Santo Tomás afirma que podemos alcançar o conhecimento verdadeiro propriamente dito. Porém,

148 LANDIN FILHO, 2006, p. 29 149 Ibid. 150

AQUINO, Tomás de. Expositio libri peryermenias. ed. rev. aum. In: Opera Omnia, t. 1, introd. e notas de R. Gauthier, ed. Leonina. Paris: Vrin, 1989. In: LANDIN FILHO, 2006, p. 39

devemos dizer que aquilo os sentidos próprios e o que a primeira operação do intelecto captam do ente não é o verdadeiro?

Há, sim uma intelecção verdadeira mas, aquilo que se capta mediante os sentidos próprios e a primeira operação do intelecto não envolvem, como ficará explícito no terceiro capítulo, mais especificamente no ponto 3.2., a consciência de tal fato. A verdade envolve a consciência do ato que julga, pois, é próprio do intelecto conformar-se às coisas. A captação do ente pelos sentidos não pode fazer tal coisa e também não o pode a primeira operação do intelecto, pois: “Não envolvendo essa consciência da relação, não pode envolver a consciência do dinamismo do intelecto, que é o de se conformar às coisas. Segue-se que o ato de produzir conceitos não envolve uma reflexão completa”151.

Afirmamos neste segundo capítulo que o conhecimento inicia-se pela captação da essência do ente via abstração, porém, há uma insuficiência deste modo de conhecer na medida em que para que haja efetivamente o conhecimento, é necessário também que estejamos diretamente em contato com o ente e aquilo que seja predicado dele esteja a ele proporcionado, e que isso seja dado de maneira consciente e envolva a reflexão do ato. É por isto que a teoria da verdade faz-se extremamente necessária para que o conhecimento seja efetivamente concretizado, uma vez que nela fica realmente provado e comprovado que o ente existente na realidade e sua representação pelo intelecto são convertíveis entre si e de que maneira pode haver ciência. Veremos como, através da teoria dos transcendentais, o juízo conhece as coisas através da conformação do intelecto à coisa.

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