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1. ELEMENTOS DA HISTÓRIA DO CONSTITUCIONALISMO OCIDENTAL

1.3. A síntese histórica: a Europa romano-germânica

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SALDANHA, Nelson. Formação da teoria constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1982. p. 14-15.

47 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. O direito romano e seu ressurgimento no final da Idade Média.

In: WOLKMER, Antonio Carlos (Org.). Fundamentos de história do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 97-127.

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Na historiografia ocidental, a Idade Média, ou seja, o período temporal que se estendeu entre os fatos que serviram de sinalização para o fim da Idade Antiga e o início da Modernidade, compreende um conjunto amplo de fatores não suficientemente examinados, em virtude de duas questões centrais: a primeira, de cunho objetivo, derivada da dificuldade de reconstituição fática da história da formação do Ocidente, verificada na fragmentação, na ausência e na destruição das fontes que servem de base à historiografia; a segunda, sustentada na visão dos filósofos racionalistas que impingiram ao período citado a alcunha de “Idade das Trevas”, como uma construção teórica a posteriori, cujo objetivo, de alguma forma, corresponde à necessidade de reconstruir no imaginário dos cidadãos dos séculos XVII e XVIII a antítese às luzes então disseminadas pelas novas concepções metafísicas e pelas revoluções científicas e tecnológicas delas derivadas.

Nesse sentido, reconstruir o período histórico, sua base econômica, a pluralidade de formas culturais, sociais e jurídicas, expressa uma dificuldade cuja empreitada há muito aguça o espírito investigativo de pesquisadores europeus. A própria terminologia acerca do período, como já referido, expressa uma concepção civilizatória moderna, que desloca ou retém os acontecimentos, angustiada entre o esplendor de uma era que constitui uma espécie de início mítico da historiografia - personificado nas civilizações helênica e romana - e as transformações promovidas pelo início do capitalismo. O mosaico europeu fruto do desmantelamento do Império Romano é, portanto, o elemento inicial de qualquer análise a respeito do período e de suas estruturas jurídicas.

Afinal, ao cruzarem o Reno congelado em direção ao sul em 406 d. C., os invasores bárbaros promoveram o grande choque entre duas perspectivas européias distintas, que produziram a síntese que iria caracterizar o período posterior: de um lado, as tribos germânicas, nômades, com sua estrutura social e política significativamente rudimentar, chocando-se com uma cultura sofisticada em função de sua complexidade interna - organização militar, econômica, jurídica e política. O império, já com sinais evidentes de decadência, centralizado e civilizador, é atacado por povos com uma perspectiva descentrada, não universalista e pragmática.

Segundo Perry Anderson, entretanto, nessa primeira grande onda de invasões, as tribos germânicas que iriam esfacelar o Império Ocidental não foram capazes de, por si sós, trazer um novo universo político e coerente em substituição a ele. A diferença de nível entre as duas civilizações era enorme, de modo que seria necessário uma série de

comportas artificiais para reuni-las. Os povos bárbaros da primeira série de invasões tribais, apesar da sua diferenciação social progressiva, constituíam-se, ainda, de comunidades primitivas extremamente incipientes quando penetraram pelo ocidente romano. Nenhum jamais conhecera um Estado territorial duradouro; todos tinham religiões pagãs ancestrais; a maioria não tinha linguagem escrita; poucos possuíam qualquer sistema de propriedade articulado e estabilizado49.

Foi a onda seguinte de invasões germânicas que determinou profundamente, e de maneira permanente, o último mapa do feudalismo ocidental. Os três episódios principais desta segunda fase bárbara foram: a conquista franca da Gália, a ocupação anglo-saxônica da Inglaterra e - um século depois, à sua maneira – o assalto lombardo à Itália. O caráter dessas migrações diferia daquele da primeira onda e, possivelmente daí em diante, sua escala também. Em cada caso, eles representavam uma expansão comparativamente modesta e sempre adiante de um ponto de partida geográfico adjacente. Os francos habitavam a Bélgica contemporânea antes de partirem para o sul em direção à Gália do Norte, os anglos e os saxões localizavam-se nas costas do norte da Alemanha, em frente à Inglaterra; os lombardos concentravam-se na Baixa Áustria antes de invadirem a Itália50.

As migrações francas e anglo-saxônicas eram movimentos estáveis de colonização armada em regiões onde efetivamente existia um vácuo político primordial. A Gália setentrional era o posto avançado do último exército de campo romano solitário, sessenta anos depois que o sistema imperial entrara em colapso por todo o Ocidente. O domínio romano na Bretanha jamais fora desafiado em batalha; havia expirado silenciosamente, uma vez que sua corda salva-vidas para o continente se fora e o interior havia caído sob chefias célticas moleculares mais uma vez. A profundidade desta segunda onda de migrações pode ser medida pelas alterações lingüísticas que promoveram. A Inglaterra foi germanizada em bloco, tanto quanto foi estendida a colonização anglo-saxônica às margens célticas da ilha, sequer proporcionando um acréscimo de vocabulário à fala dos conquistadores. É esse indício de fortíssima romanização da província mais setentrional do Império, que manifestamente jamais afetou a massa da população. A sedimentação cultural

49 ANDERSON, Perry. Passagens da Antigüidade ao feudalismo. Tradução de Beatriz Sidou. 5.ed. São

Paulo: Brasiliense, 1995. p. 105.

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da segunda onda de conquistas foi, portanto, muito mais profunda e mais duradoura que a primeira.51

Um lento processo de fusão, integrando elementos germânicos e romanos numa nova síntese que haveria de substituí-los, começou a ocorrer gradualmente: o feudalismo. A catastrófica colisão dos dois modos anteriores de produção em dissolução – o primitivo e o antigo – produziu a ordem feudal que se disseminou por toda a Europa medieval. Já estava evidente para os pensadores do Renascimento, quando esta gênese foi debatida pela primeira vez, que o feudalismo ocidental era resultado específico de uma fusão dos legados romano e germânico52.

Portanto, a busca das origens históricas de instituições feudais específicas muitas vezes parece ser tarefa complexa, dada a ambigüidade das fontes e o paralelismo de desenvolvimentos nos dois sistemas sociais antecedentes. Assim, a vassalagem, por exemplo, pode ter tido suas principais raízes tanto no comitatus germânico quanto na clientela galo-romana: as duas formas de corte aristocrática que existiram em cada lado do Reno bem antes do fim do Império, ambas tendo contribuído para o surgimento definitivo do sistema de vassalagem. O domínio, que no devido tempo se fundiu para formar o feudo, pode ser traçado a partir das últimas práticas eclesiásticas romanas e das distribuições tribais germânicas de terras. O manor, por outro lado, certamente é derivado do fundus ou

villa galo-romanos, que não tinham equivalente bárbaro: imensas propriedades auto-

suficientes e cultivadas por colonos, que entregavam a produção em espécie a grandes proprietários, esboço claro de uma economia senhorial.

Os enclaves comunais da aldeia medieval, de sua parte, eram basicamente uma herança germânica, sobrevivente dos sistemas rurais originais da floresta após a evolução do campesinato bárbaro do regime alodial para o de rendeiros dependentes. A própria servidão, provavelmente, descende tanto do clássico estatuto do colonus como da lenta degradação de camponeses germânicos livres por recomendação meio coercitiva a guerreiros de clãs. O sistema legal e constitucional desenvolvido na Idade Média era híbrido da mesma forma. Uma justiça de caráter realmente popular e uma tradição de obrigações formalmente recíprocas entre governantes e governados numa comunidade tribal pública deixaram marca muito difundida nas estruturas jurídicas do feudalismo,

51 ANDERSON, 1995. p. 117. 52

mesmo quando as cortes populares não sobreviveram, como aconteceu na França. O sistema de propriedades que surgiu mais tarde nas monarquias feudais deveu muito a este último, em particular. Por outro lado, o legado romano de uma lei codificada e escrita foi também de importância central para a síntese jurídica específica da Idade Média; a herança conciliar da Igreja Cristã clássica foi também, sem dúvida, decisiva para o desenvolvimento do sistema de propriedade. No auge da forma de governo medieval, a instituição da própria monarquia feudal representou, inicialmente, um amálgama mutável do líder de guerra germânico, semi-eletivo e com funções seculares rudimentares, e o governante imperial romano, que era um autocrata sagrado de ilimitados poderes e responsabilidades53.

No final da Antigüidade, a Igreja Cristã contribuiria, indubitavelmente, para o enfraquecimento dos poderes de resistência do sistema romano imperial, o que conseguiu não desmoralizando doutrinas ou valores extramundanos, como acreditavam os historiadores do Iluminismo, mas por seu absoluto peso temporal. O vasto aparato clerical que a instituição desenvolveu no último Império foi uma das principais razões da sobrecarga parasítica que exauriu a economia e a sociedade romana. Foi ainda agregada uma segunda superburocracia ao já opressivo ônus do Estado secular. Por volta do século VI, os bispos e o clero no Império remanescente eram em muito maior número que os agentes administrativos e funcionários do Estado e recebiam salários consideravelmente mais altos. A carga intolerável deste edifício desequilibrado foi uma determinante central do colapso do Império54.

Ainda assim, a Igreja foi também o terreno movediço dos primeiros sintomas da libertação da técnica e cultura a partir dos limites de um mundo construído sobre a escravidão. As realizações extraordinárias da civilização greco-romana haviam sido propriedade de um pequeno estrato governante, inteiramente divorciado da produção. Ao mesmo tempo, a Igreja, sem a menor dúvida, também foi diretamente responsável por uma outra formidável transformação silenciosa nos últimos séculos do Império. A própria vulgarização e corrupção da cultura clássica era, na verdade, parte de um gigantesco processo de assimilação e adaptação dessa cultura por uma população mais vasta, que iria arruiná-la e salvaguardá-la no colapso de sua infra-estrutura tradicional. A mais impressionante manifestação dessa transmissão foi ainda, outra vez, a da linguagem. Até o

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século III, os camponeses da Gália e da Espanha falavam suas próprias línguas célticas, impermeáveis à cultura da classe governante clássica: qualquer conquista germânica dessas províncias a esta altura teria conseqüências incalculáveis para a história da Europa mais tarde. Com a cristianização do Império, os bispos e o clero das províncias ocidentais, assumindo a conversão da massa da população rural, latinizaram permanentemente sua fala durante os séculos IV e V. As línguas romanas foram o efeito dessa popularização, um dos elos sociais mais essenciais da continuidade entre a Antigüidade e a Idade Média55.