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A SEGUNDA VAGA DE UM FEMINISMO BEAUVOIRIANO

A primeira vaga dos movimentos feministas, historicamente situada entre finais do século XVIII e inícios do século XX1, centra-se, como referido, na luta

pelos direitos civis da população feminina. O acesso ao voto e a um salário igual pela realização do mesmo tipo de trabalho seriam as principais bandeiras das militantes, inspiradas nos ideais de igualdade, liberdade e fraternidade ecoados pela Revolução Francesa. No entanto, à medida que aqueles vão sendo instituídos nos regimes próximos da democracia, verificam-se novas dificuldades que originam demandas mais profundas. A mulher livre e independente tem outros obstáculos pela frente, relacionados com mentalidades e tradições culturais cultivadas numa esfera privada e, não raras vezes, íntima. Simone de Beauvoir e Kate Millett serão duas autoras fundamentais na denúncia desses obstáculos.

A Europa nos anos 50

Em Abril de 1949, a discussão de temas relativos à política internacional, até então reservados aos homens, dominava a actualidade. A partilha da Europa, os confrontos entre Moscovo e Washington, a revolução comunista no continente asiático e a perspectiva de uma Terceira Guerra Mundial constituíam as principais

1. Alguns autores/as situam o início da História dos movimentos feministas no século XIX, com as primeiras campanhas sufragistas. Como foi referido no capítulo anterior, considera-se, na presente investigação, que a génese coincide com o pós-Revolução Francesa e a luta pela extensão dos direitos proclamados a homens e mulheres.

preocupações de governantes e intelectuais. Em França, apesar de o alargamento do direito de voto ao eleitorado feminino ser uma conquista recente (1945), a inferiorização social e as reivindicações das mulheres mantinham-se relegadas para segundo plano. Nesse contexto, a publicação do primeiro volume da obra O segundo sexo deixaria o país em estado de choque.

A reacção não se fez esperar. Católicos e intelectuais marxistas criticaram, em igual medida, a obra que, nas palavras de Claudine Monteil, biógrafa de Beauvoir, “ousava descrever sem dissimulações os mecanismos subtis pelos quais a sociedade mantinha metade dos seus membros numa condição menor.”2 Pelo tratamento de temas considerados tabu, como a sexualidade,

o aborto clandestino e a independência financeira das mulheres, Simone de Beauvoir originou um dos maiores escândalos de que até à data havia memória. Politicamente, apesar de a autora manifestar a sua adesão a ideais de esquerda, não pôde sequer contar com o apoio de militantes comunistas que consideravam a obra dedicada à classe burguesa: em teoria, as desigualdades entre homens e mulheres apenas persistiam em países com um sistema capitalista. Relativamente à posição da Igreja, que já havia posto no Index as obras de Sartre, juntou-lhe então as de Beauvoir.

Envolto em polémica, o ensaio seria, de acordo com dados de Claudine Monteil, rapidamente traduzido para mais de 30 idiomas. Em França, em 1971, um grupo de leitoras forma o Movimento de Libertação das Mulheres e divulgam A Lista das 343 mulheres que ousaram declarar “Eu Abortei”, utilizando o jornal Nouvelle Observateur como veículo. De entre as assinantes, constavam algumas das principais figuras públicas do país, como Catherine Deneuve, Françoise Sagan, Agnès Varda e a própria Simone de Beauvoir. Em 1983, ainda segundo Claudine Monteil, Beauvoir teria uma audiência com o Presidente da República, François Mitterrand, onde expõe a situação das mulheres do seu país. Os argumentos foram ouvidos e resultaram num convite para colaboração directa com a Ministra dos Direitos das Mulheres, Yvette Roudy, que assume a pasta entre 1981 e 1986. Recorde-se que o

2. Monteil, C. (2000). Os amantes da liberdade: A aventura de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Mem Martins: Inquérito, p. 131.

ministério foi criado em França no ano de 1974, tendo Roudy sucedido a Françoise Giraud (primeira ministra na sua liderança), e que o mesmo se mantém até à actualidade, após uma interrupção de dois anos no primeiro mandato e substituição por duas secretarias de Estado.3 Portugal teria um

ministério com funções análogas, apenas entre os anos de 1999 e 2000, fortemente contestado por inúmeros representantes e opinion makers dos meios de comunicação social. Maria de Belém Roseira assumiu a pasta, no XIV Governo constitucional, liderado por António Guterres.4

Regressando a’O segundo sexo, tendo os efeitos do ensaio e o percurso da autora sido tão notados no momento e nas décadas seguintes, o desconhecimento geral no que concerne ao seu conteúdo (inclusivamente no meio académico) é ainda similar ao do próprio conceito “feminismo”. Tratando-se de uma das obras mais comentadas ao longo de toda a História do século XX, seria também uma das menos lidas e estudadas, pelo que se considera importante revisitar os seus principais argumentos e formulações. Na introdução, a autora começa por enunciar algumas definições históricas, como a de Aristóteles: “A fêmea é fêmea em virtude de certa carência de qualidades. Devemos considerar o carácter das mulheres como sofrendo de certa deficiência natural.”5 São Tomás diria que a mulher é apenas “um

homem falhado”, “um ser ocasional”, enquanto Santo Agostinho a configura como “um animal que não é nem firme nem estável.”6 À data da publicação

d’O Segundo Sexo, a autora comenta que, se os brancos pobres dos Estados Unidos tinham como principal consolação para a miséria em que viviam o facto de não terem nascido “negros imundos”, também os homens se compraziam por não terem nascido mulheres. Actualmente, nas orações judaicas, o homem proclama ainda: “Bendito sejas Tu, Eterno, nosso Deus,

3. Informações retiradas do site do Ministério dos Direitos das Mulheres, em França, consultado em 12 de Fevereiro de 2012: http://femmes.gouv.fr/

4. Informações retiradas do site da Assembleia da República, consultado em 12 de Fevereiro de 2012, e disponíveis em: http://www.parlamento.pt/DeputadoGP/Paginas/Biografia.aspx?BID=1671

5. Aristóteles. Em: Beauvoir, S. (1976). O segundo sexo, vol. 1. Venda Nova: Bertrand Editora, p. 12. 6. Santo Agostinho. Em: Beauvoir (1976). Op. Cit., p. 20.

Rei do Universo, que não me fizeste mulher”, enquanto a mulher murmura resignada “Bendito sejas Tu, Eterno, nosso Deus, Rei do Universo, que me fizeste conforme a Tua vontade.”7

Afirmações dessa índole levam Beauvoir a concluir que a humanidade é masculina, dada a incapacidade conjunta de o homem encarar a mulher como ser autónomo e de a mulher se assumir com uma identidade própria: “ela não é senão o que o homem decide que seja. [...] A fêmea é o não essencial perante o essencial. O homem é o Ser, o Absoluto, ela é o Outro.”8

Inaugurando um debate histórico que seria retomado por todas as gerações seguintes de feministas (também na arte a formulação viria a ser aplicada), Beauvoir fixa, deste modo, o tema central do seu ensaio. Ao interrogar- se acerca do porquê de uma submissão silenciosa à soberania do sexo masculino, sustenta que a resposta se encontra no facto de não existir, entre as mulheres, uma consciência de classe: negros, judeus ou proletários dizem “nós”, transformando brancos, nazistas ou burgueses em “outros”. Sem idêntico poder de afirmação, antevê ainda que as mulheres jamais possam colocar-se na posição de sujeito, sendo essa inferioridade frequentemente agravada pela dependência económica da maioria em relação a determinados homens (pai ou marido). Constrói-se, a partir daí, o contexto apropriado que compele a uma identificação maior (e repetitivamente geracional) de muitas mulheres com elementos do sexo masculino, podendo o mecanismo ser iniciado dentro da célula familiar ou, a um nível mais amplo, em sociedade, no caso dos líderes carismáticos. Segundo Beauvoir: “Burguesas, são solidárias dos homens burgueses e não das mulheres proletárias; brancas, dos homens brancos e não das mulheres negras.”9 Na conjuntura descrita,

entende que, como resultado das ínfimas e pouco expressivas agitações que provocaram, as mulheres “apenas ganharam o que os homens concordaram em lhes conceder; elas nada tomaram, elas receberam.”10

7. Informação recolhida no site da Comunidade Israelita de Lisboa (http://www.cilisboa.org/). Em língua hebraica, as orações dizem: ברוך אתה יהוה אלהינו מלך העולם, שלא עשני אשה. E ברוך אתה יהוה אלהינו מלך העולם, שעשני כרצונו.

8. Beauvoir, S. (1976). Op. Cit., p. 13. 9. Idem, ibidem.

A par das abordagens filosófica e sociológica, a autora procurou analisar as razões da desigualdade entre os sexos com base na biologia. A resposta não viria, no entanto, a ser encontrada, uma vez que o sexo de uma criança tanto pode ser decidido pelo gâmeta masculino como pelo feminino, sendo a transmissão hereditária de características físicas ou psicológicas realizada, segundo as leis estatísticas de Mendel, tanto pelo pai como pela mãe. Autenticando-se que, no sistema reprodutivo, nenhum dos gâmetas desempenha uma função mais importante do que o outro, anula-se cientificamente o mito da passividade da mulher segundo o qual, no processo de fecundação, ela se limita a receber o espermatozóide masculino dentro de si. Já no campo da psicanálise, surge um forte argumento para combater a desigualdade entre os sexos — o de que “nenhum factor intervém na vida psíquica sem se ter revestido de um sentido humano; não é o corpo-objecto descrito pelos cientistas que exige concretamente, mas sim o corpo vivido pelo sujeito. A mulher é uma fêmea na medida em que se sente fêmea.”11

Do raciocínio, Beauvoir inferiria uma das suas máximas mais citadas e discutidas: “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, deixando implícito que as características tradicionalmente associadas à condição feminina derivariam menos de imposições da natureza do que de mitos disseminados pela cultura:

“Nenhum destino biológico, psíquico, económico, define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Só a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um outro.”12

De acordo com os argumentos citados, a autora sintetiza uma diluição do feminino na prepotência do masculino. Desde cedo, afirma, as meninas aprendem a comportar-se como as bonecas com que são ofertadas tendo em vista a sua constante avaliação e prestação de reverência aos homens

11. Idem, p. 68.

da família ou da comunidade na qual se encontram inseridas, verificando- se uma profunda assimetria de exigências e expectativas. No plano psicanalítico, viria mesmo a considerar-se que a grande maioria das mulheres sofre de um profundo complexo de inferioridade, justificável, em parte, pela educação que recebem desde crianças e pela observação do lugar superior que o pai ocupa no seio da família, relativamente à mãe. Mais tarde, ao iniciar a vida sexual, a posição tradicional do coito, que coloca a mulher por baixo do homem, representará uma nova humilhação. Como Simone de Beauvoir sublinha, psicanalistas de ambos os sexos tentam, deste modo, fazer coincidir comportamentos de alienação com feminilidade, ao contrário dos “viris”, traduzíveis nos momentos em que o sujeito exibe a sua transcendência. O homem é, portanto, identificado como ser humano e a mulher como fêmea, pelo que, sempre que esta se afirma como sujeito, é acusada de adoptar um comportamento masculino — divisão que Hollywood não só recriaria nos seus clássicos como ainda (reconhecendo um poder performativo do cinema) ajudaria a preservar.

A autora prossegue o seu estudo, analisando o ponto de vista do materialismo histórico, teoria segundo a qual a humanidade não corresponde a uma espécie animal mas a uma realidade histórica. Nesse sentido, a mulher não pode ser vista apenas como um corpo físico, devendo a sua situação ser analisada em conformidade com o contexto económico e social. Atendendo ao mesmo pressuposto, Engels reconstrói a evolução da situação da mulher — na obra A origem da família, da propriedade privada e do Estado13 —,

relacionando-a com a evolução técnica das sociedades. Na Idade da Pedra, relembra, a terra era comum a todos os membros do clã e a agricultura era rudimentar, pelo que as forças femininas não seriam tão exigidas, existindo igualdade entre os sexos: o homem caçava e pescava, enquanto a mulher desempenhava outras funções igualmente importantes, como cuidar da casa e do jardim. A situação altera-se, segundo Engels, com a descoberta de metais (cobre, estanho, bronze e ferro), o aparecimento de novos utensílios e o desenvolvimento da agricultura: a força física do homem é então requerida.

13. Engels, F. (2010). The origin of the family, private property and the state. Edinburgh: Penguin Classics, Kindle Edition.

Uns tornam-se senhores das terras, enquanto outros são escravos, sendo justamente à passagem do regime comunitário para a propriedade privada que Engels faz corresponder “a grande derrota histórica do sexo feminino”. Será nesse momento que o trabalho doméstico da mulher deixa de ser considerado relevante, comparativamente ao trabalho produtivo do homem. Contudo, sublinha Beauvoir, a fraqueza física das mulheres não pode continuar a justificar a desigualdade de direitos entre os sexos. Já nos anos 50, inúmeros avanços técnicos possibilitavam a realização de tarefas que, anteriormente, exigiam esforços físicos e que passaram a ser concluídas premindo um botão.

Publicado num momento de conquista de direitos cívicos reivindicados na primeira vaga de movimentos feministas, O segundo sexo apela a uma profunda libertação feminina, exclusivamente alcançável mediante o exercício de uma profissão: “Foi pelo trabalho que a mulher cobriu, em grande parte, a distância que a separava do homem; só o trabalho pode assegurar-lhe uma liberdade concreta. Desde que ela deixa de ser uma parasita, o sistema baseado na sua dependência desmorona-se; entre ela e o universo não há necessidade de um mediador masculino.”14 Deste modo, ao reiterar a importância da independência económica da mulher, Beauvoir preconiza um anulamento dos constrangimentos sociais e morais que lhe são impostos, incluindo os relativos às exigências quanto à imagem e à aparência:

“O homem quase não precisa de preocupar-se com as roupas: são cómodas, adaptadas à sua vida activa, não é necessário que sejam requintadas; mal fazem parte da sua personalidade; demais, ninguém espera que delas trate pessoalmente: qualquer mulher benevolente ou remunerada se encarrega desse cuidado. A mulher, pelo contrário, sabe que quando a olham não a distinguem da sua aparência: é julgada, respeitada, desejada através da sua toilette. As suas vestimentas foram, primitivamente, destinadas a confiná-la na impotência e permaneceram frágeis: as meias rasgam-se, os saltos partem-se, as blusas e os vestidos claros sujam-se, as pregas desfazem-se; entretanto, ela deverá reparar a maior parte dos acidentes; as suas semelhantes não a auxiliam, e ela

terá escrúpulos em sobrecarregar o orçamento com trabalhos que pode executar; as permanentes, as ondulações, a pintura, os vestidos novos são bastante caros.”15

Na análise que realiza do momento histórico então vivido (correspondente à entrada das mulheres na esfera pública), Beauvoir apura, a par da maior pressão em termos de imagem, uma profunda invisibilidade da produção artística feminina. Inobstante, ao discutir o tema, contraria o discurso apologético da indesmentível escassez, reconhecendo as inúmeras lacunas das precursoras que, de algum modo, terão sido vencidas pelo cansaço e pela falta de acesso aos bens que potenciam a realização de obras intemporais:

“Nenhuma mulher escreveu o Processo, Moby Dick, Ulisses, ou Os Sete

Pilares da Sabedoria. Elas não contestam a condição humana porque mal

começam a assumi-la integralmente. É o que explica por que razão as suas obras carecem geralmente de ressonâncias metafísicas e também de humor negro; elas não põem o mundo entre parênteses, não lhe fazem perguntas, não lhe denunciam as contradições: levam-no a sério.”16

Recordando que, aos 18 anos, T. E. Lawrence empreendeu sozinho uma viagem de bicicleta por toda a França e que, no seu tempo, não permitiriam a uma rapariga da mesma idade lançar-se em semelhante aventura, Simone de Beauvoir postula que os falsos moralismos e arquétipos, impostos à mulher pela educação e pelos costumes, restringem o seu domínio sobre o universo:

“Quando o combate para conquistar um lugar neste mundo é demasiado rude, não se pode pensar sair dele; ora, é preciso emergir dele uma soberana solidão, se se quer tentar reaprendê-lo: o que falta à mulher é fazer, na angústia e no orgulho, a aprendizagem do seu desamparo e da sua transcendência.”17

15. Idem, p. 515. 16. Idem, p. 545. 17. Idem, ibidem.

Com efeito, sublinha, para que alguém se transforme num criador não basta cultivar-se, no sentido de integrar leituras, espectáculos e outros objectos artísticos. É necessário “que a cultura seja apreendida através do livre movimento de uma transcendência; é preciso que o espírito, com todas as suas riquezas, se projecte num céu vazio que lhe cabe povoar.”18

Procurando antever um futuro que deseja próximo, a autora entende ainda que a igualdade entre os sexos terá que coincidir com uma mais produtiva inspiração feminina:

“Quando, finalmente, for possível ao ser humano colocar o orgulho além da diferenciação sexual, na difícil glória da sua livre existência, poderá a mulher — e somente então — confundir os seus problemas, dúvidas e esperanças com os da humanidade; só então, ela poderá procurar desvendar toda a realidade, e não apenas a sua pessoa, na sua vida e nas suas obras. Enquanto cumprir lutar para se tornar um ser humano, não lhe é possível ser uma criadora.”19

Condição básica para a elevação da produção artística feminina ao estatuto de obra-prima será, segundo Beauvoir, a libertação de uma rígida diferenciação de géneros. No momento em que aquela for atingida, ser mulher ou homem continuará a fazer parte da identidade constituída de um/a artista, sem que as expectativas colocadas sobre ambos os sexos influenciem as suas experiências, os seus percursos e, em última instância, as suas criações. A autora defendia, assim, o estatuto da mulher intelectual não conotada com um género, o que quase se assemelha a um paradoxo visto O segundo sexo ser o ensaio-denúncia da invisibilidade feminina. Na mesma perspectiva, paradoxal pareceu ter sido igualmente a sua duradoura relutância em se assumir como feminista nos mais de vinte anos que se seguiram à publicação da obra.

18. Idem, p. 546. 19. Idem, ps. 547 e 548.

A construção de um léxico feminista

Em Outubro de 1966, Beauvoir proferia uma conferência no Japão, na qual reitera a estrutura do seu pensamento: “Eu não falo apenas sobre mim: procuro falar sobre algo que se expande infinitamente para além da minha singularidade; procuro falar sobre tudo (o que é necessário) para conceber uma obra literária, sobre como é para mim criar um universal concreto, um universal singular.”20 Nas palavras que iniciam igualmente o presente estudo,

procede-se ao estabelecimento de uma ligação profunda entre experiência individual e colectiva, memória pessoal e conjunta, teoria e prática, estória e História. Nessa perspectiva, será pertinente questionar: como falar de uma experiência pessoal (particular, quase íntima), mostrá-la a um universo que não partilha necessariamente estruturas de valores e conhecimentos, e, no final, desencadear desejáveis mecanismos de identificação? Em que pessoa devem então os discursos feministas, mas também a arte, ser proferidos? Num singular e pessoal “eu”? Num pluralista e globalizante “nós”? Num distante e objectivo “ela/ele”?

Em O segundo sexo, Simone de Beauvoir optou pela terceira hipótese, na provável busca de um cariz académico e existencialista, ainda que político e militante. O recurso formal e linguístico é mais evidente nos últimos capítulos da obra, nas inúmeras referências à “mulher independente” e nos pré-requisitos que estipula para a consagração de uma escritora, mas também na sua faceta literária, em romances-tese como A convidada, O

sangue dos outros e As belas imagens, nas quais rejeita a potencial liberdade

para assumir identidades distintas. No primeiro, a autora descreve, em clara alusão a uma amante de Sartre, o lento processo de destruição de um casal em virtude da permanência prolongada de uma jovem alojada na casa de ambos. Escrito durante a ocupação nazi da capital francesa (e com uma inquietante epígrafe de Hegel: “Toda a consciência tem por objectivo a morte

20. Schwarzer, A. (1972). “La femme révoltée”. Em: Le Nouvel Observateur (14 février). Francis, C. & Gontier, F. (org., 1979). Les écrits de Simone de Beauvoir: la vie — l’écriture. Paris: Gallimard, ps. 450 e 451. No original: “Je ne parle pas seulement de moi: d’essaie de parler de quelque chose qui déborde infiniment ma singularité; j’essaie de parler de tout, donc de faire une œuvre littéraire, puisqu’il s’agit pour moi de créer un universel concret, un universel singularisé.”

de outra”), A convidada exibe o confronto e a rivalidade entre duas mulheres que formam parte de um insólito triângulo amoroso, sendo narrado na confortável e descritiva terceira pessoa:

“— Que sou eu, afinal? perguntou-se ela; olhou para Paule, olhou para Xavière cujo rosto irradiava de uma admiração impudente; aquelas mulheres, sabia-se o que eram elas; tinham recordações escolhidas, gostos e ideias que as definiam, caracteres bem delineados que se