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A situação específica da Guiné-Bissau

Capítulo III – Toxicodependência na Guiné-Bissau

3.2 A situação específica da Guiné-Bissau

Percorrendo os estudos realizados, nota-se que a Organização Mundial de Saúde (OMS) não produz dados referidos à toxicodependência na Guiné-Bissau. Esta constatação constitui preocupação e impõe urgente debate no país. O problema da droga/toxicodependência é gravíssimo e requer políticas públicas concretas para reduzir a dor e o sofrimento dos toxicodependentes e suas famílias, embora evidentemente não sejam de pouca importância a segurança, a defesa, a justiça, a contenção do narcotráfico. E sobretudo que não se adie o momento, como adverte o profissional de saúde entrevistado sobre a problemática dos toxicodependentes, apesar de sua posição de psicossociólogo, dando maior ênfase à punição do que ao tratamento e à prevenção do uso e, com efeito, das enfermidades:

(...) impacto social muito grande condicionado pela atitude ou comportamento daquele delinquente ou traficante (...) se a polícia é a mais competente, a nível do Estado, para fazer este trabalho e não tiver condições, o problema se alastra e pode ser mais grave e afetar outros bairros (...) consumo está a aumentar e (...) significa que entidades competentes têm que fazer face a esta situação; se não o fizerem, daqui a alguns anos, daqui a 5 a 10, teremos problemas maiores. Se calhar, neste momento, isto não se vê, percebe (...) com o tempo pode começar a ver, nas instituições que de uma forma ou de outra fazem tratamento e prevenção, como o centro de Quinhamel, a nível dos hospitais, e outros, é este o momento em que o Estado deve fazer alguma coisa (Entrevista com Dr. Quinanplá Có, em 24/03/2013).

No que concerne à saúde mental, não há um só médico psiquiatra10 para assistir aos doentes, devido à falta de oportunidades de formação e aos benefícios que provocam a fuga de quadros do país para o exterior. Não há centro de qualidade para o atendimento de pacientes. O único que existia, nos anos 80, foi destruído pela guerra civil de 1998. E o atual, improvisado pelo governo para os que apresentam problemas psíquicos, funciona sem a mínima condição. Por iniciativa privada de um médico/pastor evangélico, criou-se em 2001 o Centro de Recuperação “Desafio Jovens”, em Quinhamel, sem infraestrutura, equipamentos, recursos humanos (especialistas) e materiais. Não há por parte do governo central e autoridades locais qualquer

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apoio aos doentes, e alguns vivem nos centros em condições sub-humanas, enquanto avança o narcotráfico no país:

A África Ocidental está à beira de se tornar uma fonte de drogas, bem como um ponto de trânsito (...). Agora, algo semelhante pode ocorrer na Guiné-Bissau, onde os traficantes de droga adquiriram terrenos e têm importante posição imobiliária. (...) Costa considerou o país "muito vulnerável", apontando o seu fraco sistema judicial, um espaço aéreo e marítimo fora de controlo e fronteiras terrestres abertas. (Gazeta de Notícias, 2009).

A Organização das Nações Unidas Contra a Droga e o Crime (UNODC) estima que 250 milhões de pessoas morrem, no mundo, a cada ano, devido às drogas (acidentes, doenças mentais, pulmonares e cardiovasculares). As mortes podem dar-se por overdose, adulteração, doenças sexualmente transmissíveis (HIV-SIDA) ou infecciosas (Hepatite A, B, C e D). Globalmente, a situação se agrava cada dia, devido aos serviços de tratamento limitados no mundo, de modo particular nos países pobres, mas não só nestes. Na Guiné-Bissau, a toxicodependência não é recente, é antiga, crónica, e pouco debatida nas esferas sociais: mídias, políticos, académicos, sociedade civil. Nas associações de pais e encarregados de educação, o tema é tabu, ao passo que entre adolescentes e jovens a droga é realidade clara. De acordo com uma antropóloga portuguesa, Marina Padrão Temudo, que trabalha no sul e leste do país há mais de 20 anos, após a independência em 1973, a cannabis já era plantada e vendida como estimulante para trabalhadores rurais no mercado informal (lumos)11, em grande quantidade nas zonas norte, sul e leste.

Em fins de 1975 e em 2000, o país tentou estruturar-se como estado de direito democrático e aderiu às organizações internacionais e sub-regionais. Com essa adesão ao bloco de sub-regiões africanas (CEDEAO)12, e de acordo com o artigo 4), sobre os princípios fundamentais de respeito, promoção e proteção dos direitos humanos e dos povos; o artigo 40), sobre direitos fiscais; e o 59), no capítulo da imigração (pontos 1, 2 e 3), através do estatuto de livre circulação de pessoas e bens, foi favorecida a imigração, cuja influência foi muito grande. O fluxo de circulação das pessoas (imigração) e a cultura de massas disseminaram valores negativos entre adolescentes e jovens, pela imaginação, admiração e imitação das outras culturas ocidentais e dos americanos do sul e norte etc.

Ganhou assim a toxicodependência amplitude e dela surgiu a destruição psicossocial, com notoriedade após a guerra civil de 1998, na qual todo o tecido social foi fortemente atingido. Durante essa guerra brutal e fratricida que ceifou muitas vidas humanas por 11 meses, o tráfico e uso de droga passam por combustível de jovens guerrilheiros, civis, paramilitares e militares, a

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Lumos são mercados informais criados por feirantes durante toda a semana (de segunda a domingo) em distintas localidades do país.

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pretexto da perda do medo para combater na linha da frente. Por outro lado, adolescentes e jovens refugiados pelas regiões do país tornaram o microtráfico meio de sustento da família e o consumo de droga lazer a penetrar nas intocadas aldeias, como sugere o trabalho de campo em Bissau e Quinhamel.

A entrada da cocaína em Biombo em 2005/06 intensificou o tráfico internacional e local, e o consumo interno de droga. Ainda se desconhecem os índices de prevalência da toxicodependência no país, mas se nota, como bola de neve, que o tráfico robustece a esse transtorno da função cerebral ocasionado pelo uso de substâncias psicoativas que afetam a senso-perceção, emoções e motivações (WHO, 2004, p. 13).

É de salientar que não há uma personalidade definida de um toxicodependente, os adolescentes e jovens são reféns do próprio vício, ou seja, a toxicodependência é um estilo de vida. Nesta senda, PEREIRA (2013) reforça esta ideia num artigo sobre a toxicodependência: «não há uma personalidade típica do toxicodependente, mas parece evidente que, quando o jovem procura a droga, ou o problema reside nele mesmo, por poder constituir um terreno frágil, ou trata-se somente de um sinal de rejeição em relação ao meio ambiente, uma espécie de protesto, mas também pode ser um pouco das duas coisas (…). De acordo com Olievenstein (in Pinto-Coelho, 1998: 73) “o toxicodependente é uma pessoa em dificuldade”. Mas já para Dollard Cormier (in Pinto-Coelho, 1998: 73) “a toxicodependência é um estilo de vida”. No entanto, existem três ordens de fatores comuns à personalidade da grande maioria dos toxicodependentes, sendo que os dois últimos podem ser englobados num só grupo, apresentando-se da seguinte forma: grandes dificuldades psicológicas; grandes dificuldades de inserção na vida familiar e/ou profissional, além de em maior ou menor grau apresentarem ainda uma rejeição dos valores sociais propostos» (p. 12-13).

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