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A sociabilidade da Religião

No documento vitorgomesdasilva (páginas 55-58)

Geralmente, a compreensão dos estudiosos sobre o período da juventude de Sch- leiermacher baseia-se na indicação de que os Discursos representam somente uma “teo- ria” ou “filosofia” da religião. Por seu turno, as concepções éticas são remetidas à obra subsequente, os Monólogos. Tal afirmação está longe de ser equivocada, contudo, é pos- sível indicar algumas concepções éticas trabalhadas de forma aparentemente implícita já nos Discursos. Iremos aqui nos deter sobre a questão da sociabilidade da religião, medi- ada pelo conceito de amor, que está em profunda relação com a questão da comunicação das intuições religiosas na concepção da essência da religião.

É inegável o destaque que Schleiermacher dá para o aspecto social da religião, já na parte final dos Discursos ele escreve: “A religião odeia estar sozinha”138. Ou seja, é necessário que alguém que tenha experimentado alguma intuição do Universo possa ex- pressá-la a outros indivíduos. O homem religioso possui a necessidade de dividir experi- ências religiosas e ele só o faz através da comunicação: “Uma vez que há religião, ela deve também ser social. Isto permanece não somente na natureza humana, mas também está predominantemente na natureza da religião”139. Schleiermacher afirma que a divin- dade reconheceu que o mundo não seria nada se um homem habitasse nele sozinho, por isso ela o agraciou com um companheiro, a partir daí o homem descobriu a humanidade e, através dela, descobriu o mundo140. Segundo M. Jamie Ferreira, esse tipo de afirmação demonstra que para Schleiermacher o aspecto social é uma condição da religião e não apenas uma consequência. A comunicação da religião está intrinsecamente ligada ao seu usufruir, é como se a intuição do universo não fosse possível se não houvessem outros seres humanos: “Em resumo, o entendimento de Schleiermacher da sociabilidade sugere que um tipo de mediação é encontrada não somente em Cristo e na Igreja, mas nas rela- ções humanas, e esta mediação é uma condição da experiência religiosa”141. O homem religioso necessariamente se expressa, pois aquilo que o toca na intuição o força a sair de si mesmo; ele precisa dividir o que experimentou. Esta necessária comunicação emerge como uma tentativa de complementar a participação do indivíduo na religião.

138 Friedrich D. E. SCHLEIERMACHER. On religion: Speeches to its Cultured Despisers, p. 124. 139 Friedrich D. E. SCHLEIERMACHER. On religion: Speeches to its Cultured Despisers, p. 73. 140 Friedrich D. E. SCHLEIERMACHER. On religion: Speeches to its Cultured Despisers, p. 37. 141 M. Jamie FERREIRA. Love and the Neighbor: Two Ethical Themes in Schleiermacher´s Speeches.

Como observado, o homem só pode intuir o mundo e, portanto, ser religioso, à medida que encontra a humanidade. A humanidade, por sua vez, só pode ser encontrada através do amor142. Schleiermacher está extremamente comprometido com a necessidade da mediação através da comunicação das intuições, tal comunicação só se dá na medida em que ela é construída pela relação de amor entre os homens: “Não há relação imediata com Deus, e a relação que alguém pode ter é necessariamente mediada através do amor humano”143. Mas que tipo de amor Schleiermacher se refere? Fica claro que nos Discur- sos o amor a que ele se refere é entre irmãos que gozam da familiaridade de uma mesma

fonte de intuições

Quando nós percebemos nossas criaturas amigas na intuição do mundo e é claro para nós como cada uma delas, sem distinção, é a sua própria representação da humanidade justamente como nós somos, e como nós teríamos que prescindir intuir esta humanidade sem a existência de cada um, o que é mais natural que abraçar a todos com afeição e amor pro- fundos sem qualquer distinção de disposição e força espiritual?144

Nesta citação vemos o destaque que Schleiermacher dá para o valor da intuição do mundo “sem distinção”, pois somos todos iguais, somos todos irmãos em uma comu- nidade que está para além das instituições religiosas; uma comunidade que se fundamenta em uma relação mais fundamental que media individualidade e universalidade, isto é, o amor. Quanto mais o indivíduo é penetrado por aquela relação mais fundamental, mais ele reconhece a sua própria individualidade, seu lugar no Universo e, portanto, reconhece os mesmos elementos nos outros. Não é possível reconhecermos nosso lugar no Universo caso não reconheçamos o lugar dos outros irmãos. O amor é aquilo que liga o eu ao Uni- verso e ao reconhecimento da individualidade dos demais. O amor é, portanto, também o elo entre a individualidade e a sociabilidade. De acordo com Ferreira, ao se referir ao amor nos Discursos, Schleiermacher tem sempre em mente a ideia do próximo [Nächste]. O filósofo de Berlim afirma que o homem só é efetivamente homem quando está em contato com o seu próximo e, desta forma, encontra-se em uma ligação inseparável com o Todo. Devemos valorizar o próximo, pois nós possuímos uma relação especial de pa- rentesco com os demais, nós temos intuições para dividir uns com os outros. Nós somos

142 Friedrich D. E. SCHLEIERMACHER. On religion: Speeches to its Cultured Despisers, p. 37-38. 143 M. Jamie FERREIRA. Love and the Neighbor: Two Ethical Themes in Schleiermacher´s Speeches, p.

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constituídos por um elo que nos garante uma relação particular com o Universo, forma- mos uma comunidade na qual estamos essencialmente conectados145.

É somente na sociedade que o indivíduo se encontra em sua plenitude, e é somente na comunicação das intuições que o homem religioso é efetivamente religioso. A singu- laridade da intuição religiosa, tão defendida por Schleiermacher, não corre o risco de cair em um mero subjetivismo na medida em que se encontra em constante ligação com a singularidade dos demais e com o Universo. O procedimento de Schleiermacher nos Dis-

cursos terá um importante complemento um ano depois através dos Monólogos, pois a

busca pela comunhão com o infinito só pode ser plenamente realizada na medida em que o indivíduo cultiva sua vida interna; sem essa cultivação, não se pode saber nada sobre o Infinito.

145 M. Jamie FERREIRA. Love and the Neighbor: Two Ethical Themes in Schleiermacher´s Speeches, p.

CAPÍTULO3:ACONCEPÇÃOFILOSÓFICADESCHLEIERMA-

CHER

No documento vitorgomesdasilva (páginas 55-58)