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A sociedade do controle e a empresa capitalista

A ORQUESTRAÇÃO CAPITALISTA DA MODERNIDADE-MUNDO: UMA TENTACULÍSTICA

1.2. A sociedade do controle e a empresa capitalista

A necessidade de um salto a História da sexualidade, de Michel Foucault, explica-se pela relação que o filósofo estabelece entre um modelo de sociedade marcado pelo controle e o movimento capitalista de agenciamento dos fluxos, caracterizando como correlatos o surgimento do capitalismo e esse modelo de organização social. Antes de iniciar a discussão que lhe interessa propriamente, qual seja, a criação de um dispositivo de sexualidade que açambarca a modernidade-capitalista, Foucault faz um recuo estratégico, buscando compreender de que maneitra as relações de poder se davam nos modelos precedentes de sociedade que a vida do Ocidente já conheceu.

A sociedade da soberania, nessa perspectiva, seria marcada pela dicotomia da visibilidade versus invisibilidade, em que o soberano encontra-se invisível e o povo caracteriza-se por seu grau de extrema visibilidade, materializada no suplício público, se quisermos também passear por Vigiar e Punir. Encarado nesses termos, o soberano tem o direito de vida e de morte sobre seus súditos, um direito assimétrico do soberano que consiste em exercer seu poder de matar ou em contê-lo. Na sociedade soberana, o direito que vige circula, portanto, sobre a potência de causar a morte ou a de deixar que se viva.

Na sociedade disciplinar, reconhece-se um ardil diverso: sua marca é o confinamento, assinalado pela proliferação de instituições visando à docilização dos corpos. Em um dos extremos institucionais localizar-se-ia o presídio e, na outra ponta, o hospício. O que não é capturado nas instituições intermediárias, resvala, desse modo, para o crime ou para a loucura.

Quanto à sociedade do controle – e é precisamente esta a que nos interessa para pensar Lori Lamby –, está inscrita num horizonte em que não é mais preciso, como na sociedade disciplinar, domesticar os corpos, mas agenciá- los, geri-los. Oriunda de uma matriz econômica burguesa, a sociedade do controle

não opera mais por uma jurisdição impeditiva dos fluxos: ao contrário, opera por liberação das comportas. Trata-se, agora, de administrar os fluxos e produzir saber sobre eles – um saber capaz de canalizar tais fluxos rumo ao modelo de sociedade que se quer nesse momento histórico. E de que maneira isso se daria? Foucault perseguiu a genealogia da confissão e encontrou sua raiz no Concílio de Latrão. Desde então, o procedimento confessional ganhou diversas roupagens e foi investido de diversas intencionalidades. Na sociedade do controle, o discurso declarativo sobre o indivíduo atinge graus inimagináveis: tudo tornou-se sexo. É preciso confessar o que se faz, o que não se faz e por que não se faz, o que se gostaria de fazer, o que se pensou em fazer em termos sexuais e ainda mais. O poder se estabelece sobre a vida e não mais sobre a morte, num contexto, portanto, em que não é mais preciso oprimir, em primeira instância, os indivíduos, mas agenciar seus desejos. Com Foucault:

O segundo momento [o da sociedade do controle] corresponderia a essa época do capitalismo tardio, e em que a política do corpo já não requer a supressão do sexo ou sua limitação ao papel exclusivo da reprodução; passa, ao contrário, por sua canalização múltipla dentro dos circuitos controlados da economia: uma dessublimação super-repressiva, como se diz. (FOUCAULT, 2012, p. 107)

A evolução não é a marca do processo responsável pela metamorfose de um modelo de sociedade em outro. A rigor, nem mesmo se pode atestar uma total metamorfose. É por esta razão que há quem prefira denominar o momento atual da organização social como uma sociedade do controle integrado4, cujo traço seria a coexsitência dos modelos anteriores sob a forma de agenciamentos. Como vimos com Deleuze e Guattari, a marca do capitalismo é sua plasticidade para fagocitar, como um grande buraco negro, tudo o que se realiza, entendendo tudo como fluxos a serem agenciados. Desse modo, um agenciamento soberano ou disciplinar é perfeitamente praticável dentro dessa relação mais abrangente de fluxos, na medida em que é uma organização possível e que, segundo as conveniências, pode vir a ser favorável ao caminhar da empresa capitalista.

Não nos enganemos: o capitalismo é molecular – marcado por linhas maleáveis, rizomáticas, aloja-se primeiramente no domínio do que é indiscernível – e os modelos de sociedade da soberania e disciplinar partem de uma perspectiva molar – marcada por linhas duras, territórios determinados e planejados que organizam um porvir, em um modelo arborescente, marcado por sobrecodificações que erigem leis, valores, certezas, estabilidades. De que maneira se relacionariam? Ora, essa já parece, a esta altura, uma resposta evidente: a máquina capitalista não os encara senão como fluxos que, como tais, devem ser agenciados, podem existir nas circunstâncias convenientes para que o processo infinito de mais-valia continue se retroalimentando. As unidades discursivas, como veremos mais adiante, assim como a subjetividade materializada na identidade sexual são micro-Édipos que encontram correlatos na sociedade disciplinar, mas cujas ocorrências também se podem verificar num contexto de controle integrado. Podemos entender essas instâncias como territorializações sobre as quais, também, o capitalismo se constrói. O grande engenho capitalista habita a sagacidade com que lida com os movimentos de desterritorialização e reterritorialização. Se, por um lado, o diagrama de sua máquina é permissivo e liberador dos fluxos, por outro lado, operam-se territorializações dos fluxos que, longe de constituírem, para a máquina capitalista, um modelo rígido de operação, são fruto do cinismo inerente à máquina, que busca produzir mais-valia, e, embora não traga em si nenhuma estratificação a priori, posto que encara tudo como fluxo a ser expropriado, agencia até mesmo relativas verdades a priori, sob a forma desses estratos, na medida em que isso seja vantajoso. O complexo de Édipo, por exemplo, pode ser entendido como um agenciamento em nível molar, o estabelecimento de um regime significante dentro da plástica máquina capitalista e que faz tudo ricochetear sobre o triângulo papá- mamã-Édipo. Este é só mais um agenciamento, não há fundamento para ele, como não há para nada5, mas a máquina capitalista extrai também desse delírio

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familiarista sua mais-valia; é, portanto, uma ocorrência possível em sua vasta teia de arranjos.

Da sociedade do controle, o que gostaria de destacar – e o que será absolutamente imprescindível para a leitura que realizar-se-á dO caderno rosa de Lori Lamby, é a questão da confissão, base do apanhamento em uma sociedade agenciadora de fluxos. O caderno da menina tem, a princípio, um tom de revelação da intimidade, o que o coloca em diálogo com o procedimento confessional e, por extensão, com a sociedade do controle. Por se tratar de uma “confissão” de caráter sexual, o prosseguimento dessa discussão com Foucault revela já a sua pertinência: a confissão é o alicerce sobre o qual se traça uma biopolítica da população.

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