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1.2. A Solidariedade Como Conhecimento e Princípio Educativo

1.2.2. A Solidariedade Como Sensibilidade e Conhecimento

Dentre vários autores que escolheram a solidariedade como tema central, e outros que a ela chegaram pelos caminhos de suas discussões específicas, escolhemos primeiramente a síntese de Assman (2000), estudioso brasileiro que, ao nosso ver, produziu um olhar mais amplo sobre a solidariedade, tratando-a como uma sensibilidade social que é também um saber, portanto, algo central na tarefa educativa. Segundo ele, a solidariedade é um valor que precisa estar articulado com a justiça, na garantia da dignidade, já que não podemos falar de solidariedade onde a dignidade humana está ameaçada.

Assman faz um percurso que vai à compreensão de que a solidariedade como uma sensibilidade é uma forma de saber melhorado, pois articulado com outras dimensões do humano além da razão vista apenas como racionalismo. Como nosso estudo está focalizado na prática pedagógica de uma experiência delineada a partir da noção de um movimento social que tem a solidariedade como princípio, a abordagem do referido autor nos fornece alguns elementos favoráveis à compreensão do objeto e de algumas inter-relações que estabelece.

O caminho traçado por Assman perpassa uma construção que retoma, desde o ponto de vista histórico, os sentidos do conceito de solidariedade. Sua abordagem reconstrói a dimensão da solidariedade como objeto epistêmico da sociologia e da filosofia, mas sua reflexão é enriquecedora porque busca construir uma passagem significativa para a educação. Todo o seu percurso é mediado por uma preocupação pedagógica24:

O agir pedagógico e o próprio conceito de aprendizagem e de construção do conhecimento supõem que se trata de um empreendimento humano que faz sentido para os seres humanos. Numa frase: educar, aprender e conhecer implicam numa aposta positiva na perfectibilidade e educabilidade “humanizante” do ser humano.

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Desta forma, ele examina as formas de construção do conhecimento na escola tradicional, tomada genericamente, e questiona o conhecimento disciplinar, condenando-o como produtor de uma forma de pensar que dificilmente contribuirá para um pensamento relacional, integrador, sistêmico, que seria, segundo ele, fundamental para que a consciência de “estar in solidum” se constitua como base ética.

A fragmentação do ensino em matérias entendidas como autônomas e independentes não passa do reflexo do parcelamento ocorrido no campo das ciências. Este parcelamento foi fruto, em certo sentido inevitável, do aumento de especialização frente à complexidade da realidade. (...) por trás dessa cosmovisão está a crença que concebe o todo como sendo composto de partes independentes. E estas partes teriam as suas verdades definitivas reveladas pelas ciências especializadas. (...).

Além desta segmentação da realidade, temos também a problemática crença de que é possível obter verdades definitivas e que as escolas são meios de transmitir estas verdades acumuladas aos/às alunos/as. Certezas levam a intolerâncias e à dificuldade de reconhecer os/as diferentes. 25

Partindo desse pressuposto, uma educação que aconteça inscrita em uma experiência de “todo educativo” poderia construir diferentemente essa relação com a construção do conhecimento e de formas de pensar mais integradoras. A prática de alguns movimentos sociais, e suas concepções a respeito de saber e educação, parecem dialogar com tal perspectiva.

No que tange à concepção de conhecimento como uma construção dada na vivência do sujeito, articulado com os sentidos de experiência (conforme Maturana, 2001), a abordagem epistemológica de Assman à solidariedade parece construir um caminho de coerências entre a crítica histórica dos movimentos sociais à abordagem tradicional do conhecimento e a compreensão da solidariedade em uma perspectiva emancipatória. O conhecimento de base experiencial propiciaria a construção de uma perspectiva relacional dos saberes, pois parte de

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um olhar integrador do real: “uma crise de percepção é mais do que uma simples crise de conhecimento, é uma crise na forma de viver e de organizar a vida humana e social”26.

Como forma de conhecimento, a solidariedade vem sendo tratada ora como princípio ético baseado em uma noção de racionalidade, ora pela perspectiva da afetividade, pela qual poderia ser caracterizada como sentimento. Embora não nos alonguemos nesse aspecto, destacamos o estudo de Tognetta (2003), como discussão que apreende a solidariedade, a partir de Piaget e sua teoria do desenvolvimento moral, enquanto uma virtude. Abaixo, Lisboa (2003, p. 245) expõe adequadamente este âmbito do debate:

Ora, quando vista pela sua condição de ser um sentimento, a solidariedade, obviamente, se encontra no domínio do pathos e não da razão abstrata e impessoal, repousando sobre uma vida intensamente compartilhada. Contudo, se a razão carece da solidariedade para não se desfigurar em irracionalismo destrutivo, entendemos que a moralidade não está segura nas mãos das emoções, isto é, a solidariedade precisa da razão para não se reduzir a mero sentimento narcisíco e paroquialista.

Ocorre que a solidariedade não é pura emoção, mas é também uma situação concreta que alimenta uma dimensão ontológica: como tudo está interconectado, também na vida social a reciprocidade é irremovível e faz parte da condição humana. Além do mais, a solidariedade humana é também atitude, compromisso político e ético com o destino comum que une a vida neste planeta.”

Segundo Assman, do reconhecimento das noções de interdependência e reciprocidade decorre a possibilidade da criação de uma sensibilidade solidariedade. Perceber a interdependência é reconhecer que fazemos parte de um todo com o qual temos uma parcela de responsabilidade. Entretanto, esse reconhecimento é prejudicado pela maneira como se dão as relações sociais contemporâneas, baseadas no individualismo, na lógica do interesse e na racionalidade fundada em relações de causalidade linear. Embora relações de competitividade e de apoio mútuo sejam ambas pertinentes à evolução humana (conforme apontou Kropotkin), nos alerta

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Lisboa (2003, p. 245) para o fato de que a “nossa sociabilidade não é naturalmente solidária”. Esta reflexão aponta uma das razões porque a solidariedade é um assunto para a pedagogia e para a educação, sendo importante não só à educação que é realizada no movimento social e por ele, mas para o próprio campo educacional como um todo. A definição de solidariedade apresentada por Assman (2000, p. 97) contribui para a nossa compreensão desse aspecto:

Solidariedade não é só uma questão temática a ser tratada por algumas disciplinas da área de humanas ou sociais ou então por temas transversais. Solidariedade tem a ver com o modo de ver o mundo e a vida. Solidariedade é uma relação inter-humana fundamentada na alteridade, que pressupõe o reconhecimento do/a outro/a na diferença e singularidade, atributos da alteridade. Reconhecer o/a outro/a na diferença pressupõe relativizar a si mesmo, as nossas certezas, enfim, todas as mesmices. Sendo assim, ensinar pressupondo a possibilidade de certezas é tender para uma negação da solidariedade com os/a que estão dentro-e-fora do sistema.

Assman desenvolve sua crítica da epistemologia tradicional questionando o paradigma representacional do conhecimento, fundado na oposição clássica sujeito-objeto. Partindo de uma concepção do conhecer como um ato simultâneo do desejo e da cognição, onde “conhecer é perceber possibilidades do sentido para mim e para outros”27 a oposição clássica, segundo ele, cria um processo de espelhamento baseado em uma relação confrontativa entre sujeito cognoscente e objeto por conhecer. Assman, apoiado em Varela, considera que “a dimensão desejante é, agora, concebida como uma busca relacional (uma busca da relacionalidade e a conectividade que constitui e atravessa o conhecimento) e não como um desejo concebido como confrontação.”28.

Isto implica uma discussão a respeito da forma como a própria pedagogia, como campo de referência da reflexão educacional, trata a questão. Segundo Assman, “para a pedagogia é de

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Ibid., p.247; 28

suma relevância que se tome em conta que nossos conhecimentos não surgem como encaixes de formas oriundas de fora, por via puramente transmissiva”29.

Interessante notar que a colocação da solidariedade como princípio também epistemológico propõe uma outra forma de significar inclusive os sujeitos da relação pedagógica, que são apresentados como parceiros de um processo de construção de sentidos para ambos, num processo dialógico propulsionado pelo desejo comunicativo e baseado no reconhecimento e legitimidade mútuos30.

Partindo dessa premissa, o autor aponta alguns princípios, por nós coletados em sua obra, a respeito de uma epistemologia solidária: o lugar da dúvida no processo de conhecimento; acostumar-se ao pluralismo teórico; sensibilidade como conhecimento; abertura ao outro a partir dele mesmo: aprender é abrir-se ao mundo e aos outros; aproximação respeitosa e dialógica; descobrir a pluralidade dentro da realidade; aprender a conviver com nossos próprios limites e com os alheios: aprender é transformar-se; construir um horizonte de esperança baseado no diálogo como reconhecimento mútuo.

Observamos que esses princípios de uma epistemologia solidária recuperam contribuições tanto das teorias da complexidade, quanto das pedagogias críticas do sujeito (ARROYO, 2004). Elas desenham também aspectos de condições epistemológicas cuja presença pode evidenciar a construção de uma prática pedagógica que contribua para a construção da solidariedade, em termos concretos e simbólicos.

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Ibid., p.254; 30

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