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A subordinação da renda camponesa pode ocorrer tanto na esfera produtiva como na esfera da comercialização, no momento da venda de seus produtos:

Quando o camponês, lidando com o limite de sua sobrevivência e de sua família, vende seus produtos por um preço por vezes inferior ao gasto que ele teve, ele está na verdade transferindo parte de sua renda para a sociedade como um todo (Oliveira, 1981)37, ou seja, o capital está extraindo o seu trabalho excedente; é o que se chama de sujeição da renda da terra ao capital (BOMBARDI, 2003, p.114)

Essa era a situação em que a ACRA se encontrava no ano de 1995 e que durou cerca de dez anos. Apesar dos agricultores buscarem outros lugares para venderem seus produtos, as possibilidades eram escassas, de maneira que a oportunidade que aparecia, os associados acatavam. Tentaram de tudo, do CEAGESP38 de São Paulo até o dono da quitanda da esquina do bairro e, nesse processo, se depararam com a desvalorização constante de seus produtos por parte, principalmente, de atravessadores:

Aí pegava a primeira (caixa) a dez (reais), a segunda a sete, e quando chegava a terceira ele falava assim que ele pegava uma caixa só a sete, falava que pegava duas por dez, fazê o que, cê tinha que entregar pra ele, cê não tinha mais jeito, cê já tava na mão dele. Aí veio o quiabo do memo jeito, abóbora do memo jeito, nesse memo sistema, os cara só desfazendo do cê. Aí veio a banana [...]. Aí começou a vende,

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Entrevista realizada com Davi Bispo da Rocha, no dia 08/06/2012, na ACRA. 37

OLIVEIRA, A. U. "Agricultura e Indústria no Brasil". In: Boletim Paulista de Geografia, n.58, São Paulo: AGB, 1981.

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31 vendemo, acho que o negócio de um mês vendendo banana, aí não virava nada, do memo jeito voltou a mema coisa, o cara começou a paga dez, voltou pra sete, e depois queria paga dez em duas. Aí, vamo parar com isso. E a banana ficou despencando no pé porque não tinha pra quem vender. [...] Aí meu cunhado (Sr.

João) falou: “Vou oferece a banana para aquele bananeiro lá pra ver.” [...] Ele começou a pegar a banana de nóis, aí começou a paga sete para nóis por caixa, aí foi, foi e ele falou: “Não dá mais pra paga sete por caixa não, vô paga cinco, tô

pagando cinco.” Aí foi, nóis cortava mais ou menos a cada 45 dias nós fazia uma colheita de banana, levava cinquenta e cinco caixa pra ele, uma viagem em um dia e no outro dia levava mais cinquenta e cinco caixa, cento e dez caixa [...]. Ele pagava mixaria. Aí foi um tempo ele falou assim “não, não dá pra paga nem isso aí que eu

tô pagando, tenho que paga quatro reais”. E nóis continuamo entregando a banana pro homem. Aí nóis tivemo uma quantidade grande, acho que chegou a quase duzentas caixa de banana [...]. Ele levou cinquenta dias pra paga duzentas caixa de banana para nóis a quatro reais. Oitocentos reais, quanto dinheiro ele não lavou em cima do dinheiro nosso? Porque ele vendeu e recebeu, certeza. Ai sofremo com a banana, aí a gente viu que não era nada disso.39

A fala acima pode ser considerada uma narração digna do processo de sujeição da renda da terra camponesa, e retrata bem a situação a que os agricultores estavam submetidos. É válido ressaltar a consciência que eles tinham da situação que ocorria, ou seja, não era um processo que se dava de forma alienada. As falas “cê já tava na mão dele” e “quanto dinheiro ele não lavou em cima do dinheiro nosso” evidenciam isso, e reforçam o fato da falta de opção para realizarem a venda.

Essa não era a primeira vez que o Sr. João passava por um processo como esse, de subordinação da renda da terra. Um episódio semelhante já acontecera com ele quando ainda estava no Paraná com sua família. Apesar de o fato ter ocorrido com o Sr. João, foi seu filho, Wenceslau, quem narrou o acontecido:

[...] porque aconteceu com o meu pai o seguinte, ele plantava, era bom, bonito, tinha fartura, mas ele plantava tudo e colhia, quando chegava no vendedor, no atravessador do armazém, o cara falava assim: não tem preço na mercadoria [...], hoje não tá pagando nada, vocês querem depositar aqui, tinha um depósito grandão, imagina um armazém [...] Descarregava lá, vinha embora e esperava dá preço. Ó, agora tá dando tanto, não tinha nem preço, agora tá pagando xis, o cara que tava lá

enforcado vendia.40

A palavra enforcado com toda a intensidade de seu significado, se ajusta para identificar uma situação de limite de sua sobrevivência e de sua família (BOMBARDI, 2003), em que os camponeses não tinham outra opção para a venda de sua produção, estavam reféns da situação. Fica evidente a manipulação dos camponeses da região por parte do dono do armazém, até o momento em que eles começaram a se sentir incomodados e a reclamar da situação com o próprio dono do armazém. Como resposta às queixas apresentadas, o dono se

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Entrevista realizada com Davi Bispo da Rocha no dia 08/06/2012, na ACRA. 40

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pronunciou da seguinte maneira: “cês tão reclamando comendo a folha do capim, e quando cês forem comer a raiz? Cês vão comer a raiz do capim!”41

A fala transcrita apresenta um tom extremamente ofensivo aos camponeses e sinaliza que a situação tenderia a piorar e não a melhorar, mediante a reclamação dos agricultores. Ou seja, não havia por parte do dono do armazém uma sensibilidade para a situação colocada, muito pelo contrário, havia ali o propósito capitalista assumido, do atravessador, representante do capital comercial, realizar lucro à custa do trabalho excedente dos camponeses.

Diante de tal intransigência, Sr. João tomou a decisão de não vender mais suas mercadorias, que consistiam em hortaliças e legumes, para o dono do armazém; não havia, porém, muitas outras opções de comercialização. Este fato, aliado a pressão que a expansão da mecanização e o uso de agroquímicos das propriedades vizinhas exerciam na pequena propriedade de Sr. João, o fez sair do Paraná. Uma vez em Americana, o Sr. João e sua família voltam a se deparar com o mesmo processo ocorrendo e, novamente precisam encontrar maneiras de contornar a situação.

A interrupção de fornecimento de alimentos para a merenda, em 1995, implicou em um rearranjo da produção e da comercialização. Algumas condutas, no entanto, ainda permaneceram, como por exemplo, a doação de alimentos para instituições carentes da cidade42 de Americana, prática presente desde o início da Associação. É possível dizer que tal conduta compõe o universo camponês na medida em que dialoga com um aspecto da ordem moral camponesa. A falta de vias de comercialização, contudo, acarretou na diminuição da produção e, consequentemente, na redução do volume de alimentos doados, atendendo, dessa forma, um número menor de pessoas.