• Nenhum resultado encontrado

A Substância e a Noção de Fio Condutor

No documento S ER E V ERDADE (páginas 42-46)

1.1 A Questão

1.1.5 A Substância e a Noção de Fio Condutor

– 1051 b 3). É daí que Heidegger vê a possibilidade de compreender Aristóteles, ou melhor, a possibilidade de compreender a sua doutrina sobre o ser a partir da perspectiva da verdade do ser e não a partir da noção do ser como meramente presença, como um ente simplesmente dado.

Por que, todavia, o ser acabou sendo compreendido a partir dessa noção? O que tem a categoria de substância que lhe dá essa primazia a ponto de o próprio Aristóteles remeter por vezes os outros sentidos do ser às categorias como nessa passagem agora mencionada? Mas é caso de ele remeter à categoria de substância todos os outros sentidos do ser ou apenas tentar relacioná-los? Para se entender como Heidegger chega à idéia que abre a possibilidade de propor a verdade como o conceito condutor do sentido do ser em detrimento da noção de substância, precisa-se entender o que tem a ver uma categoria específica dentro dos modos de se dizer o ser, a saber, a substância, com o de muitos modos em sentido amplo.

quantidade, outros relação, outros ação ou paixão, outros lu-gar e outros tempo, o ser significa o mesmo que cada um des-tes. (7, 1017 a 23-28)20

Aristóteles se refere aqui também ao de muitos modos como o ser é dito. Mas agora o Estagirita estaria fazendo algo diferente. O de muitos modos parece se referir apenas a um dos modos mais gerais de como o ser é dito. Nesse de muitos modos, em certo sentido mais específico, por se referir a apenas um dos modos mais abrangentes de ser, o ser é dito conforme as figuras da predicação ou categorias. E, entre elas, Aristóte-les afirma, há uma em que o ser se diz em primeiro lugar: a ousia que significa a substância21.

De fato, a substância tem lugar principal porque é o que vem jun-to e sem o qual nada pode ser dijun-to. Ela está compreendida tacitamente no uso de cada ente. Mas isso implica, ao contrário de uma leitura rasa do Estagirita, que a substância não pode ser algo fora da relação com as outras categorias. Ela não é independente do uso do objeto a que se refere. Ela não aponta para algo estático, além da rede de significados a que se reporta. Quando, por exemplo, fala-se em saúde, tem-se em mente algo mais ou menos preciso. Pode ser no sentido de um certo estado do corpo (“um corpo sadio”), de uma certa propriedade de cura (“esta planta é sadia”), de um sinal de saúde (“a cor sadia do rosto”), de contribuir para a saúde (“o passeio é saudável”). O que se encontra aqui, segundo a leitura heideggeriana de Aristóteles, não é um gênero, como se existisse um único significado que subordinasse todos os outros

20 “Por sí se dice que son todas las cosas significadas por las figuras de la predicación; pues cuantos son los modos en que se dice, tantos son los significados del ser. Pues bien, puesto que, de los predicados, unos significan quididad, otros cualidad, otros cantidad, otros relación, otros acción o pasión, otros lugar y otros tiempo, el ser significa lo mismo que cada uno de éstos.’

21 A tradução de ousia por substância ou por essência é sempre controversa. Pode-se dizer que aqui o sentido empregado é o de substância (ver a seguir), aquilo que subsiste. ‘Acerca' dessa incerta tênue diferença, veja-se Angioni: “podemos reconhecer, nos textos aristotélicos, dois usos da palavra ‘ousia’: (a) um no qual ‘ousia’ designa, por oposição aos concomitantes, certo tipo de entidade capaz de subsistir separadamente por si mesma; nesse uso, temos sentenças como ‘Sócrates é uma ousia’, ‘plantas são ousiai’; (b) mas há outro uso, no qual ‘ousia’

designa a natureza essencial pela qual algo é precisamente o que é, ou seja, a causa que explica por que algo é precisamente o que é, etc.; de acordo com esse uso, temos sentenças como ‘a alma é a ousia dos animais’, ‘a função de serrar é a ousia do serrote’, nas quais o termo ‘ousia’

aparece com um complemento genitivo – ‘ousia de alguma coisa’. Nossa terminologia não estará em desacordo com o pensamento de Aristóteles se [...] adotarmos, para o uso (a), o termo ‘substância’ e, para o uso (b), o termo ‘essência’”. (ANGIONI: 2003, p. 247).

sentidos de saúde/saudável. O que se tem é justamente a noção de fio condutor, isto é,

Na significação “sadio” encontra-se uma unidade para os di-versos, e quiçá de tal modo que o primeiro significado – “sa-dio” como caráter do corpo – assume [übernimmt] a função de unificador dos restantes, na medida em que permite que esses restantes estejam de certo modo referidos a ele de ma-neira cada vez diferente. (HEIDEGGER: 2007, p. 46) O que acontece, entretanto, segundo Heidegger é que quando A-ristóteles subordina as demais categorias à primeira, ele abre a possibili-dade de pensar a substância não como o fundo sobre o qual as outras categorias estejam sustentadas, mas sim como se a substância pudesse se dar indiferente às outras categorias. Não há substância – abaixo da Lua, para Aristóteles – sem as outras categorias, que por vezes são, erronea-mente, compreendidas como acidentes22. Todavia, se as outras categori-as não são simplesmente anexadcategori-as externamente à categoria da substân-cia, esta também não é mais fundamento intocado do ente. O ser se mostra por meio de todas as suas categorias. Tanto é que o ser se diz enquanto categorias e não somente enquanto substância. É nas diversas categorias que o ser desse ou daquele ente se faz visível como aquilo a que sempre remete os vários sentidos que esse ente pode adquirir. Se saudável antes de qualquer coisa significa o ser saudável do corpo, não significa que a planta saudável ou a cor do rosto saudável se baseiem no saudável do corpo, mas antes que, em todo sentido de saudável, o ser saudável do corpo se põe como ponto de encontro dos outros significa-dos. É nesse sentido que todas as categorias são subordinadas à primei-ra.

Heidegger pensa que esse subordinar sentidos de palavras a ou-tros, como o faz nesse caso Aristóteles, não quer dizer que exista algo realmente como um corpo saudável ou uma cor de rosto saudável.

Antes, a aposta heideggeriana é que, no uso das palavras, se joga com os vários sentidos que as palavras assumem. A significação sadio como caráter do corpo assume [übernimmt] a função unificadora das restantes.

Onde uma significação pode assumir uma função? No uso das palavras.

22 É importante ressaltar que as outras categorias além da substância não são acidentes desta. É comum notar que se confunde acidente com “categorias que não a substância”, o que é um erro. O ser enquanto acidente é o contraposto ao ser por si. E um dos modos de dizer o ser por si é justamente se referindo a ele por meio de todas as categorias e não somente por meio da substância.

Apenas no uso (e isso já é bastante, lembre-se o lugar que o utensílio tem para Heidegger na constituição do mundo em Ser e tempo) é que se pode buscar o sentido das palavras e se pode fundamentar uma ontologi-a.

O que essa noção de fio condutor que é assumido no uso que se faz das palavras pode dizer acerca da doutrina do ser de Aristóteles? Foi visto que o ser se diz ao menos de quatro modos: acidentes; categorias;

ato e potência; e verdade e não falsidade. Mas além desses quatro modos, o ser se diz como algo a partir das figuras da predicação. Para Heidegger, quando Aristóteles fala do de muitos modos ele tem em vista dois tipos: um mais abrangente, e outro mais específico (Cf.:

HEIDEGGER: 2007, p. 25). O mais abrangente é aquele que se refere aos quatro modos de dizer o ser. Já o mais específico é o que toma um dos modos do de muitos modos mais abrangente e encontra neles uma outra ordem e, por assim dizer, hierarquia. O de muitos modos mais restrito se refere ao modo de ser enquanto categorias ou figuras da predicação.

O problema, e é isso que se queria aqui fundamentalmente mos-trar, é que quando não se atenta para a diferença entre os dois de muitos modos acaba-se confundido o mais abrangente com o específico e afirmando que a substância é o que se diz primeiro em relação a todos os modos de ser. Além disso, acaba por confundir as outras categorias do de muitos modos específico com aquilo que no abrangente é chamado de acidente. É nessa confusão, segundo Heidegger, que o ser foi pensado na história da filosofia: somente a substância se referiria à essência do ser, seu sentido; os outros modos de dizer o ser, pensados no de muitos modos mais abrangente, são relegados a meros coadjuvantes na compre-ensão do sentido do ser. Quando muito a noção de ato diz propriamente o ser, mas só na medida em que se aproxima da noção de substância.

Isso não procede para Heidegger. A substância se diz em relação às categorias e não em relação a todos os modos de dizer o ser, o que não impede que, em relação às categorias, ela tenha um papel funda-mental. Mas isso implica que os modos de dizer o ser enquanto ato e potência e enquanto verdade e não falsidade, possam ter, cada um deles, um sentido principal. Além disso, implica também que o ser em geral, o ser dito por Aristóteles de quatro modos, possa ter também ele mesmo um fio condutor.

A relação entre a substância e as demais categorias aponta para o modo de se dizer o ser enquanto categoria, enquanto de muitos modos específico, e não serviria para compreender o ser dito a partir do de muitos modos mais abrangente. Isso é o mesmo que dizer que a

substân-cia não pode servir para compreender todos os modos de dizer o ser.

Existiria algum fio condutor que levasse a entender o sentido do de muitos modos abrangente? Qual seria?

No documento S ER E V ERDADE (páginas 42-46)

Documentos relacionados