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A Superposição de linhas de vida: A experiência de ilusão e o espaço potencial

CAPÍTULO 2. A Identificação na Constituição Psíquica segundo Winnicott

2.4. A Superposição de linhas de vida: A experiência de ilusão e o espaço potencial

Ao dedicar-se a melhor compreender os fenômenos transferenciais vividos junto a seus pacientes, Winnicott (1947/2000) percebeu que havia uma enorme diferença entre aqueles que haviam passado por experiências iniciais positivas, as quais eram posteriormente reeditadas na relação transferencial, e aqueles cujas primeiras experiências haviam sido tão deficientes que precisavam que o analista fosse a

primeira pessoa em suas vidas a fornecer-lhes algumas provisões ambientais essenciais. Apenas após essa nova relação, junto a alguém que ativamente se adapta e provém, é que os pacientes na situação transferencial – tal como os lactentes, no desenvolvimento emocional primitivo – poderão alcançar a experiência de ilusão de onipotência. Mas como isso acontece?

Winnicott (1975) defendeu que há um potencial criativo inato na natureza humana. Ressaltamos que, segundo o autor, a criatividade não é definida pelos seus resultados, isto é, pelas criações artísticas ou intelectuais sofisticadas. Para ele, o impulso criativo diz respeito à tendência a encontrar objetivamente, no mundo externo, os objetos que são concebidos subjetivamente. Portanto, a criatividade original relaciona-se com o estar vivo e deve ser considerada como uma coisa em si: “Está presente tanto no viver momento a momento de uma criança retardada que frui o respirar, como na inspiração de um arquiteto ao descobrir subitamente o que deseja construir” (p.100).

Como vimos, no padrão do desenvolvimento emocional saudável, primeiro deve-se estabelecer um fenômeno que diz respeito ao relacionar-se com o objeto subjetivo – o que, novamente, depende de o bebê contar com um seio que é, a partir de uma identidade de elemento feminino –, pois só assim este poderá ser concebido e permanecer no mundo interno do lactente. A criatividade está ligada à surpresa de descobrir (fora) o que já existe (dentro) e, assim, relaciona-se com a experiência de ilusão onipotente, em que o indivíduo cria o que já existe no mundo à espera de ser criado. Esses fenômenos contêm em si mesmos um paradoxo, e Winnicott (1959/1994) declara que se o bebê pudesse falar, diria: “este objeto faz parte da realidade externa e eu o criei” (p.45). Em outras palavras, para o bebê, é sua atividade

(sua necessidade, sua fome, seu amor) que cria o objeto (seio, mãe, etc.), enquanto que, para os observadores externos, o objeto já estava lá antes mesmo de o bebê vir ao mundo. Enquanto estudiosos, aprendemos a aceitar esse paradoxo e não fazer quaisquer reivindicações a respeito da procedência desse objeto para o lactente em desenvolvimento (Winnicott, 1951/2000).

Mas o que mais viabiliza a possibilidade de o bebê experimentar que criou o mundo mágica e onipotentemente? Já estabelecemos que o lactente precisa estar envolvido em uma relação de confiança a partir das sucessivas vivências que tem de estar sendo segurado física e psiquicamente. Também podemos pensar na importante mutualidade experimentada pela díade mãe-bebê – à qual a mãe só pode chegar por meio de sua sofisticada capacidade de identificação com o lactente a partir do bebê que ela já foi –, e na linha de vida que essas experiências tecem junto ao indivíduo, capacitando-o a deslocar-se para frente e para trás em seu desenvolvimento (Winnicott, 1961/1994). Nas palavras do autor:

Imagino esse processo como se duas linhas viessem de direções opostas, podendo aproximar-se uma da outra. Se elas se superpõem, ocorre um momento

de ilusão (...). Em outras palavras, o bebê vem ao seio, quando faminto, pronto

para alucinar alguma coisa que pode ser atacada. Nesse momento aparece o bico real, e ele pode então sentir que esse bico era exatamente o que ele estava alucinando. Assim, suas ideias são enriquecidas por detalhes reais de visão, sensação, cheiro (...). Deste modo ele começa a construir a capacidade de conjurar aquilo que de fato está ao alcance. A mãe deve prosseguir fornecendo ao bebê esse tipo de experiência (Winnicott, 1945/2000, p.227, grifos do autor).

A utilização da metáfora dessas linhas que se sobrepõem é pertinente para constituir uma imagem visual do espaço da díade mãe-bebê e dos constantes movimentos de oscilação que ocorrem entre o psiquismo maduro materno – que vai ao encontro do bebê e retorna para sua identidade de pessoa adulta – e o psiquismo primitivo do lactente – que transita entre os objetos subjetivos e a percepção objetiva

do mundo. Voltaremos a abordar essa questão no capítulo 3 deste trabalho, quando ela será discutida de forma mais aprofundada e problematizada no que tange à função desses movimentos de oscilação do psiquismo materno para o processo de constituição psíquica do bebê, entre outras dimensões dessa temática.

Aqui, parece-nos importante refletir sobre as características deste espaço entre mãe e bebê, tecido por estes fios de vida e de realidades que ora se sobrepõem, ora se diferenciam. Esse espaço, quando dotado de qualidades referentes à experiência de ilusão, isto é, quando dotado por linhas diferentes sobrepostas, é denominado por Winnicott "espaço potencial". E como essa qualidade se desenvolve? Segundo o autor:

No estado de confiança que se desenvolve quando a mãe pode desempenhar-se bem dessa difícil tarefa (não se for incapaz de fazê-la), o bebê começa a fruir de experiências baseadas num "casamento" dos processos intrapsíquicos com o controle que tem do real. A confiança na mãe cria aqui um playground intermediário (...), um espaço potencial entre a mãe e o bebê, ou que une mãe e bebê (Winnicott, 1975, pp.70-71).

Winnicott (1951/2000) chamou de espaço potencial essa área terceira, um espaço que não é nem dentro (mundo interno), nem fora (mundo externo), mas justamente entre esses dois. Dito de outra maneira, é esse campo de ilusão em que o bebê experimenta a criatividade, em que os objetos e fenômenos começam a ser psicoenergeticamente investidos (Winnicott, 1968a/1994) de uma qualidade que o autor nomeou transicional, pois fazem um trânsito entre o que é reconhecido pelo bebê como sendo "diferente de eu" e aquilo que ainda não chega a ser reconhecido como "não-eu".

O espaço potencial deve servir como um lugar de repouso para o indivíduo que se empenha em separar a realidade interna e externa, tentando, entretanto, mantê-

las inter-relacionadas (Winnicott, 1951/2000). Isso significa que ninguém deve questionar o bebê sobre a origem dos objetos ou comportamentos aos quais ele recorrerá nessa área de repouso, e que ninguém terá expectativas de que o lactente saiba ou preocupe-se em dizer de onde veio aquilo que constitui sua primeira posse não-eu. Vemos, assim, a entrada na “Fase Transicional” (Winnicott, 1951/2000, p.326, nota de rodapé).

2.5. Entre o mundo subjetivo e a percepção objetiva do mundo – a