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A supremacia de Amon e da tríade de Uaset

Para os antigos Egípcios, as acções dos seus deuses interferiam directamente sobre todos os aspectos da sua vida quotidiana. Daí que os membros da sociedade procurassem cumprir zelosamente a vontade das divindades e fazer de tudo para que o equilíbrio fosse mantido. Segundo as suas crenças, praticar algum acto que não fosse aprovado pelos deuses poderia trazer o Caos sobre as terras do Egipto.

De entre o elevado número de deuses, Amon, o “oculto” ou “invisível”, foi dos que mais se destacou pelo poder e influência que o seu clero deteve sobre a sociedade egípcia do Império Novo. De origem obscura, este deus tinha como animais sagrados o ganso (geb ou tjerep) da espécie Anser albifrons, cujo grasnar fazia lembrar o som criador da Primeira Vez (sep tepi)102, bem como o carneiro (bé) da espécie Ovis platyura aegyptiaca, com os seus característicos chifres retorcidos e cauda curta que símbolizava o movimento do mundo e a fertilidade103. Assumia também a forma de homem com barba postiça, de pele negra ou azul (por se tratar de um deus celeste).

Nas suas representações iconográficas, Amon tinha na cabeça um disco solar, com a típica cobra iaret, vulgarmente conhecida por uraeus,e duas plumas (kachuti). Cada uma destas plumas era dividida verticalmente em duas secções com sete segmentos horizontais, que reflectiam a visão dualista egípcia (rio/ deserto, vida/ morte/, céu/ terra). Na parte posterior da coroa poderia levar ainda uma fita vermelha. Na sua mão direita segurava

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Cf. Luís Manuel de ARAÚJO, “Os gansos do Antigo Egipto”, em Revista da Casa Pia de Lisboa, 15, Lisboa, 1995, pp. 56-60; Veronica IONS, Egipto, pp. 92-93; José das Candeias SALES, As divindades egípcias – uma chave para a compreensão do Egipto antigo, p. 215.

103 Este animal surgiu durante o Império Médio e possui o corpo e a pelagem menos forte do que a espécie Ovis longipes palaeoaegyptiaca, que era conhecida desde os tempos pré-históricos. Cf. George HART, The Routledge Dictionary of Egyptian Gods and Goddesses, p. 14; Barbara WATTERSON, Gods of Ancient Egypt, Bramley Books, 1999, p. 136.

geralmente um ankh e na esquerda o ceptro uas. Em resultado da sua associação ao deus Min, surgia também muitas vezes itifálico, com o seu falo erecto104.

Depois de um passado algo apagado, como mero deus local, Amon foi considerado o Demiurgo por excelência, “retirando” este atributo que pertencia anteriormente ao deus Ré. Em vez de tentarem suplantar pela força o outrora poderoso deus-Sol, os teólogos tebanos fizeram com que Amon assumisse as suas características solares, ou seja, que se sincretizasse, o que lhe conferiu um novo estatuto divino105. Assim, no Império Médio, mais precisamente durante a XII dinastia, Amon uniu-se com Ré. Este sincretismo (associação de deuses) possibilitou o surgimento da ideia de um “deus universal” e a formação de um numeroso grupo sacerdotal, que sobreviveu à invasão dos Hicsos e ao Segundo Período Intermediário106. Desta forma, não foi de estranhar que, no Império Novo, Amon-Ré fosse a divindade egípcia que mais se aproximava da concepção de um ser “todo-poderoso”, ao ponto de determinados textos religiosos o considerarem como:

Pai dos deuses,

que fez os homens, que criou o rebanho,

Senhor de tudo o que existe, que criou as árvores de fruto, que fez a forragem para nutrir o gado107.

Amon de Tebas mereceu bem os epítetos de “pai” (it) e de “rei dos deuses” (nesu- netjeru), pois por essa altura já o seu poder se fazia sentir desde Heliópolis (Iunu) até as

104

Cf. Henri FRANKFORT, Reyes y dioses – Estudio de la religión del Oriente Próximo en la Antiqüedad en tanto que integración de la sociedade y la naturaleza, Madrid, Alianza Editorial, 1976, pp. 187-189; Veronica IONS, Egipto, pp. 93; 108; José das Candeias SALES, As divindades egípcias – uma chave para a compreensão do Egipto antigo, p. 217.

105

Cf. Barry KEMP, Ancient Egypt – Anatomy of a Civilisation, London, Routledge, 1991, p. 198; José Nunes CARREIRA, Estudos de cultura Pré-Clássica - Religião e cultura na Antiguidade Oriental, Presença, 1985, p. 25; Manfred GÖRG, “Deuses e Divindades”, em Regine SCHULZ; Matthias SEIDEL (eds.), Egipto – O Mundo dos Faraós, p. 435.

106.José Nunes Carreira é da opinião que se deve utilizar aqui o termo “assimilação”, embora não seja tão perfeito como o de “in-habitação” (de um deus noutro, de maneira a transmitir-lhe transitoriamente a sua potência divina). Cf. José Nunes CARREIRA, “sincretismo”, em Luís Manuel de ARAÚJO (dir.), DAE, pp. 788-789.

107

“Grande Hino do Cairo”, I, 6, apud José Nunes CARREIRA, Estudos de Cultura Pré-Clássica - Religião e cultura na Antiguidade Oriental, Lisboa, p. 29.

terras de Assuão e da província de Kuch, na Núbia. Dada a sua influência, era costume no antigo Egipto haver uma figura de Amon em cada templo funerário real.

As muitas conquistas militares realizadas neste período, a que aludimos brevemente no Capítulo Primeiro, foram consagradas a tão poderosa divindade e ao seu respectivo clero, que passou a dispor de grandes parcelas dos tributos que chegavam regularmente ao País do Nilo vindos das áreas subjugadas108. Como afirmaram Étienne Drioton e Jacques Vandier: “L’enrichissement du clergé d’Amon, au Nouvel Empire, est un des faits les plus importants de cette époque, et l’influence qu’il eut sur l´histoire et l’évolution du pays fut considerable. La fortune d’Amon se composait surtout de terres et d’entrepôts de matières premières diverses. Celles-ci venaient, chaque année, s’amonceler dans les magasins de Karnak, et constituaient la part attribuée par le roi au dieu, sur les tributs annuels, envoyés en Égypte par les étrangers et par les colonies”109.

De acordo com o Papiro Harris I, actualmente no Museu Britânico (EA 9999/ 1), o templo de Karnak recebia ainda 62 % dos impostos em cereais, 86 % dos tributos em prata e o monopólio do ouro das minas da Núbia110. Contudo, nem uma divindade assim tão poderosa poderia ficar só. Formada pelos deuses Amon, Mut e Khonsu, a tríade tebana foi, porventura, a mais influente do Império Novo. Tratava-se de três divindades locais com diferentes origens, que se encontravam associadas em Tebas segundo o típico modelo familiar, para melhor preencherem o desejo dos teólogos tebanos de coordenarem os diferentes cultos que se praticavam na sua cidade.

Esposa de Amon-Ré e mãe adoptiva de Montu e Khonsu, a deusa Mut foi identificada com Nun , o oceano primordial111. Conhecida como a “Senhora de Icheru”, o nome Mut significa “mãe”, sendo por isso considerada a “Grande Mãe da Núbia”, aparecendo em inúmeras figuras mágicas compósitas. Esta divindade surge por vezes

108

Cf. Christian JACQ, O Egipto dos Grandes Faraós – A História e a Lenda, p. 145; Ian SHAW, The Oxford History of Ancient Egypt, pp. 203-217.

109

Cf. Étienne DRIOTON; Jacques VANDIER, La religion égyptienne, Paris, Press Universitaires de France, 1949,p. 469.

110

Cf. Adolf ERMAN; Herman RANKE, La Civilisation Égyptienne, p. 382. 111Na realidade, “Nun” é uma vocalização copta que deriva da expressão egípcia nni, que significa “inerte”.

Cf. Rogério Ferreira de SOUSA, “O Imaginário simbólico da criação do Mundo no antigo Egipto”, emEs- tudos de Homenagem ao Professor Doutor José Amadeu Coelho Dias, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006, p. 315.

antropomorfizada, com a dupla coroa branca e vermelha (pchent) colocada simplesmente na cabeça ou sobre um toucado em forma de abutre. O seu culto adquiriu uma maior importância na XVIII dinastia, quando o deus Amon se tornou mais popular, embora antes do aparecimento de Amon, Mut fosse já uma divindade de Tebas (Uaset). A sua presença junto do deus tebano Amon-Ré deve-se ao desejo de reforçar as características solares que foram outorgadas a este último112. Durante o festival de Mut, era colocada uma estátua da deusa numa barca que velejava em torno do seu lago sagrado Icheru, que tinha a forma de um crescente lunar (cf. Fig. 11)113.

O filho de Amon e Mut, Khonsu, era o deus da Lua, do tempo e do conhecimento. Denominado o “Conselheiro”, o “Errante” ou o “Navegante”, Khonsu foi adorado como deus não só no Egipto, mas também muito além das suas fronteiras. A sua aparência é por vezes confundida com o deus da guerra Montu devido a ambos serem hieracocéfalos e usarem os mesmos símbolos. Como era um deus ligado ao conhecimento e à cura, Khonsu

aparecia muitas vezes representado a jogar uma partida de senet com o seu rival Tot114. O rejuvenescimento de Amon encontrava-se intimamente ligado à regeneração do

próprio poder real. A visita do “deus vivo” a cada um dos seus representantes nos templos revitalizava o ka do soberano, fazendo com que ambos, deus e faraó, experimentassem o mistério de um rejuvenescimento divino115.

Quando os sacerdotes afirmaram que Amon era a própria “Colina Primordial”, Uaset passou a ser considerada como a primeira cidade (niut) que existiu no mundo e que,

por conseguinte, deveria servir como modelo a todas as restantes cidades egípcias. Deste modo, ao glorificar Amon, engrandeceu-se Uaset e esta converteu-se numa das capitais religiosas mais influentes e poderosas da sua época. As suas festas religiosas eram, em consequência, as mais destacadas e importantes no Império Novo. Símbolo de uma inquestionável demonstração de fé, o Festival de Opet, conhecido também como a “Festa

112

Cf. Veronica IONS, Egipto, pp. 100-101; José das Candeias SALES, As divindades egípcias – uma chave para a compreensão do Egipto antigo, pp. 230-231.

113

Cf. Richard FAZZINI; William PECK, “Excavating the Temple of Mut”, em Archaeology 36, 2, 1983, pp. 16-23.

114

Cf. Dietrich WILDUNG, O Egipto – Da Pré-História aos Romanos, p. 107;José das Candeias SALES, As divindades egípcias – uma chave para a compreensão do Egipto antigo, pp. 232-233; Barbara WATTERSON, Gods of Ancient Egypt, p. 150.

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do Harém de Amon”, constituía por si só um extraordinário evento de referência nacional e era vivido intensamente pelos participantes, que esperavam obter um número elevado de bençãos.