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“A Sustentável Leveza do Ser”

No documento O Humor nos Tempos de Cólera (páginas 165-200)

“Não há nada na nossa inteligência que não tenha passado pelos sentidos”

Aristóteles

- Prolegómenos . . . . . 166 3.1 - De Aristóteles até aos nossos dias. . . . 167 3.1.1 - O mistério do livro perdido . . . . 168 3.2 - O Humor enquanto mecanismo de escape . . . . 170 3.2.1 - Dos sonhos e do inconsciente . . . . 170 3.2.2 - A emergência do inconsciente . . . . 172 3.2.3 - Do inconsciente e dos sonhos . . . . 173 3.2.4 - Do inconsciente, dos sonhos e dos chistes . . . . 175 3.2.5 - Dos chistes e do cómico. . . . 177 3.2.6 - Contrariando Freud e o inconsciente . . . . . 182 3.2.7 - Uma proposta explicativa . . . . 183 3.3 - Do inconsciente à perspectiva de Bergson . . . . 185 3.3.1 - Cotejando Bergson e Freud . . . . 187 3.4 - A perspectiva Etológica . . . . 188 3.5 - A Segunda Tópica de Freud . . . . . 193 3.6 - Perspectivas recentes: “O Laugh Lab” . . . . 194 3.6.1 - Um aporte de Jung: O Dualismo e a Dualidade . . . . 196 3.6.2 - O auxílio das Neurociências . . . . . 198 3.6.3 - Penúltimas contribuições . . . . . . . . 201 3.7 - Em jeito de conclusão . . . . . 203

Prolegómenos

Acreditamos que falar de humor sem fazer humor é, além de foneticamente indissociável de outros interesses, uma incongruência que nos recorda L. Peter: “A Razão sem acção é um eunuco.” 1 A menção do eunuco

reforça a associação anterior e tem para o autor (desta dissertação) um interesse instrumental ao impelir-nos para uma tentativa de explicação interactiva, entre a exposição de algumas perspectivas sobre o humor e, concomitantemente, alguns exemplos concretos.

Por um acaso da fortuna (ou porque de facto o humor se constitui como uma função mental de algum alcance psicológico), a considerável maioria das anedotas e piadas que apresentamos, foi colhida no livro de Sigmund Freud “As

Anedotas e a Sua Relação com o Inconsciente” de 1905.

Ao seguir este caminho, pensamos poder fazê-lo de um modo científico, embora aqui e além temperado “cum grano salis”.2 Nesta acepção, iremos

manter a tendência para usarmos títulos de filmes e de obras conhecidas da Literatura, ora Portuguesa ora Universal, sempre que necessário, “adequados” à ideia a desenvolver.

Costumamos visualizar no fim de alguns programas de televisão, a advertência que se destina à protecção de autores potencialmente distraídos:

“esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com a realidade, terá sido mera coincidência.” Para o autor, esta é uma obra com ficção e, qualquer

semelhança com a realidade, atabalhoada e cegamente procurada é uma coincidência no mínimo feliz.

1 Laurence Peter, 1987, “O Receituário de Peter – Como Produzir, Confiar e ser Competente”. Lisboa; Caravela. p. 36.

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Conquanto estejamos intimamente convictos da razoabilidade da nossa opção, não resistimos a acrescentar uma ideia que julgamos tão pertinente quanto necessária e que encontrámos inscrita numa lápide inglesa3:

Aqui jaz Martin Englebrodde,

Tende piedade da minha alma, Senhor Deus, Como eu teria se fosse Senhor Deus,

E Vós fosseis Martin Englebrodde.

Iniciaremos com uma pequena resenha histórica, tentaremos apresentar as três perspectivas que consideramos mais clássicas sobre o humor e procuraremos entrelaçá-las, aferi-las para um contexto hodierno e dessa forma tentar validá-las para uma população em que pode caber a nossa amostra.

Iremos acrescentar uns contributos, alguns mais recentes provindos de fontes idóneas, bem como algumas vantagens que se recenseiam sobre o contributo do humor para a vida das pessoas.

3.1 – De Aristóteles até aos nossos dias

O Humor foi frequentemente objecto de estudo por pensadores e filósofos desde tempos longínquos, mesmo nos tempos em que os pensadores e os filósofos não se distinguiam grandemente. Existem relatos de histórias e ditos humorísticos, pelo menos desde 500 a.C., apesar de sobretudo compilados alguns séculos mais tarde. Há quem defenda que desde que a linguagem falada existe, houve sempre alguém a empenhar-se em dizer piadas para despertar o humor alheio. Os mais convictos crêem mesmo que desde que o ser humano é capaz de representar conceitos em imagens, houve quem as distorcesse e provocasse o riso.

3.1.1 – O mistério do livro perdido: “O Livro do Riso e do Esquecimento”

Em termos históricos, importa referir que o estudo alegadamente mais importante da antiguidade sobre o humor (o livro “Poética” de Aristóteles), jaze, incorruptivelmente morto, em cinzas ou naturalmente reciclado, eventualmente transaccionado no atro mercado, ou misteriosamente escondido, seguramente no limbo do mito e da fantasia. Ao certo não saberemos, não teremos engenho nem arte para buscar, nem meios para inquirir.

Segundo consta, o livro de Aristóteles sumiu-se, dele não havendo mais que dúbias referências, coisa propícia à imaginação romanesca. Talvez por isso, o linguista italiano Umberto Eco tenha feito com que este livro protagonizasse no seu romance “O Nome da Rosa”. Confessamos só termos tido contacto com a versão cinematográfica na qual, pudemos observar que numa abadia, no primeiro terço do século XIV, alguns monges que viviam principalmente do seu labor de copistas estavam proibidos de aceder a zonas específicas de uma imensa biblioteca, onde existia um livro particularmente sinistro. Chamamos-lhe sinistro em virtude do mistério que lhe estava associado pois, após a sua leitura perigosamente escondida, os incautos transgressores libertavam, rindo, todo o mal das suas entranhas o que lhes provocava uma estranha amnésia e os fazia esquecerem-se de respirar...

Com efeito, a “Poética” era realmente o misterioso “assassino” dos frades, por via do potente veneno embebido4 nas páginas do livro pelo monge

Jorge de Burgos, que carregava a bandeira da intolerância e não consentia que ninguém risse. Na Idade Média, a questão foi alvo de grande polémica. As regras monásticas consideravam o riso maléfico, pois acreditava-se que o mal fluía do interior do corpo e que os orifícios eram os seus filtros. Dessa forma a leitura de um livro que provocasse o riso com a intensidade que esse alegadamente provocava, tornava-o fonte de conspurcação dos outros e, consequentemente, motivo censurável e pecado nada venial. Em abono dessa tese, acrescentavam os puristas que nas Sagradas Escrituras não havia

4 Nunca tivemos o hábito de humedecer os dedos nos lábios para folhear as páginas de um livro como faziam os frades da história mas o facto é que a partir daí, decidimos nunca mais lamber sequer selos nem envelopes.

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qualquer referência à hipótese de Cristo ter alguma vez rido. Aliás na Bíblia, há pouquíssimos episódios em que o humor ou o riso sejam referidos. Um deles é o de Abraão e da sua mulher Sara, quando Deus lhes anunciou que iam ter um filho numa idade muito avançada: “Abraão prostrou-se com o rosto por terra, e

sorriu, dizendo para consigo ‘pode uma criança nascer de um homem de cem anos? E Sara, mulher de noventa anos, vai agora ter filhos?’” Quando um ano

depois a criança nasceu, chamaram-lhe Isaac que significa em hebraico “aquele

que traz alegria” 5.

Apesar de tudo, na Europa a parir do século XVII, foi possível retirar a carga altamentemente negativa associada ao humor mas, apesar disso, nos nossos dias de elevada estruturação e controlo social, o humor é considerado como de valia secundária face aos interesses dominantes.

Em termos pessoais, a perda do humor remonta à nossa infância. Tantas vezes nos avisaram para conter o riso – «muito riso pouco siso» – e para nos deixarmos de brincadeiras – «com coisas sérias não se brinca» – que a capacidade para observar os aspectos caricatos, excêntricos e até ridículos, nossos e dos outros, foi definhando lentamente. Restou-nos já adultos, integrar o “Clube dos Macambúzios”. Nele encontramos gestores, empresários, professores, pais, jovens, políticos, dirigentes e de todos os outros quadrantes e ocupações; muitos candidatos a úlceras, neuroses, frigidez e impotência sexual, velhice precoce, enxaquecas e outras eivas. Hirtos, circunspectos, taciturnos, têm vergonha em falar dos seus sentimentos, pudor em expressar as suas emoções e medo de partilhar os seus afectos.

Como veremos, o humor é essencialmente uma actividade grupal, pelo que a sua experiência proporciona o inter-relacionamento humano, em todas as suas vantagens e inconvenientes.

3.2 – O Humor enquanto mecanismo de escape: “Manha Submersa”

Uma das três perspectivas sobre o humor e seguramente a mais remota deve-se provavelmente a Aristóteles a qual preconiza que o riso – e indirectamente o humor – serve como mecanismo de escape ou, mais propriamente, como alívio de tensões. De uma certa forma, Freud retoma esta perspectiva do escape e do humor como potenciador do prazer enquanto paliativo do sofrimento, acrescentando-lhe, porém, características que ele encontrou nas suas pesquisas sobre o inconsciente.

Veremos então e de seguida, como relacionou Freud as anedotas e/ou os ditos de espírito, com os sonhos, bem como, com esse constructo oculto e abstracto que ele próprio baptizou de inconsciente. Começaremos por apresentar a questão dos sonhos e o inconsciente pois pensamos ser esse o melhor caminho a seguir.

Começaremos então pelo sono, abordaremos a problemática dos sonhos e tentaremos apresentar e “reinterpretar” o conceito de inconsciente.

3.2.1 – Dos sonhos e do inconsciente: “A Casa dos Espíritos”

“O sono recompõe-nos emocionalmente e restabelece o nosso sistema cognitivo e imunológico, (...) é simplesmente bom.” 6 Donald Dinges, director do Departamento de Psiquiatria Experimental da Universidade da Transilvânia7 é

peremptório quando estabelece serem oito horas e cerca de quinze minutos o período ideal de sono para um adulto comum. Acrescenta que o sono deve cumprir-se num espaço tranquilo e sem luminosidade. Num estudo em que é secundado por bastantes outros investigadores, verifica que a “burla ao sono” irá

6 Donald Dinges, in Brink (2001), p. 53.

7 O local correcto é Pennsylvania, mas este lapsus calami, não deixa de ser interessante, pois permite-nos recordar os inúmeros nativos da Transilvânia, que apesar de dormirem apenas durante o dia (embora em condições de completo isolamento luminoso), conseguem uma longa e proveitosa vida sendo-lhes ainda acreditadas, enormes capacidades auditivas, visuais e olfactivas, grande resistência ao stresse e ao cansaço, uma agilidade física e mental acima da média, bem como um sentido de humor mordaz e sibilino, pleno de ironia e verve jocosa. [Nota do Traidor: Vampiros]

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causar a médio prazo, epidemias de cancro, diabetes, obesidade, aumento de stresse, problemas de segurança, produtividade, etc. O grande problema, consideram, é que “talvez nós, seres humanos, nunca tenhamos sabido

realmente o que é estar completamente acordados.” 8

Não possuímos qualquer registo sobre a ideia de Freud acerca da quantidade de horas de sono necessárias a uma vida saudável, apenas podendo referir que o autor se preocupou bastante com o sono. Basta recordar que, para além de qualquer outra razão constitutiva essencial, Freud considerou que deveria existir uma função especializada do organismo, para assegurar a tranquilidade do sono; a saber: o sonho. O sonho disse, “é o guardião do sono” e para isso, em estreita colaboração com o inconsciente, o sonho cria um espectáculo extraordinariamente intrincado, que se propõe entreter e distrair o organismo, para preservar o sono.

Importa agora referir que o conceito de inconsciente provocou, aquando da sua apresentação, um considerável entojo, não só na comunidade médica quanto na sociedade em geral. É da mais absoluta justiça observar que apesar de mais de cem anos passados, o número de detractores – já sem contar o exponencialmente maior número de ignorantes do assunto – se cifra numa larga maioria absolutamente confortável. Tal não será propriamente de estranhar, se tivermos em conta a ideia do inconsciente como um caldeirão em ebulição, arcaico e biologicamente antigo, onde desejos libidinosos e pouco menos do que pornográficos, têm de ser refreados por um censor convenientemente treinado para o efeito.

No intuito de esclarecer os nossos leitores, concedemo-nos o dever de os ilustrar, por nossas palavras próprias, através de um esquisso aproximado da insigne lucubração do referido autor. Poder-se-ia dizer que o inconsciente funciona assim como que uma outra dimensão, onde os nossos pensamentos e ideias primordiais labutam incessantemente para nos proporcionar prazer e

consolação.9 Em jeito de uns espíritos evoluídos, tornaram-se involuntariamente

alvo de involução e foram “involucrados” num processo, no mais puro estilo

kafkiano, sendo por fim confinados no já referido caldeirão. Parecia um assunto

encerrado mas, encerrado vem a talhe de foice e atalhamos para dizer que o prestimoso e supra referido censor presume e se esmera na propositada e probitória tarefa, de prover no sentido de manter a tampa, predominante e convenientemente cerrada.

3.2.2 – A emergência do inconsciente: “O Último Suspiro do Mouro”

Convém (nos) realçar a singela subtileza10, com que o vosso narrador de

serviço fez emergir da prolixa e rebuscada descrição, esse sereno e singular adjectivo que, qual grão de areia, emperra toda a engenhosa engrenagem urdida para conter, em bom recato, os malfadados e malqueridos pensamentos – ainda conhecidos como recalcados – a saber: predominante. Não fora esse pequeno pormaior, e o caso estaria resolvido. Porém, predominante refere-se por oposição a permanente e justificaria toda uma série de epítetos aparentemente indecorosos a lancetarmos sobre o suspicaz censor. É que, na decorrência desse comportamento que poderia definir-se em torno do termo negligência, esse ajudante ao guardião do sono “distrai-se” (destapa) e permite que do sobrepressionado caldeirão, saia assim a modos que um flato.

Quando a tampa se remove, mesmo que mui ligeiramente, não é uma brusca e violenta torrente de lava que brota, pletórica e cega, é antes, um suspiro, um ai suave, breve e silencioso como o golpe de uma lâmina. Gélido e implacável, conspurca e alvitra o conspícuo pensamento, redefinindo num micro-segundo, toda a significação, benigna e largamente elaborada de um espírito saudável. Toda a longa e penosa marcha civilizacional, que transformou o homo-diabolu no homo-normalis se reverte; emerge o bruto, o labrego, o sarraceno, o arcaico; o que era um bordão que ampara o peregrino e o idoso (“o

9 …e refocilamento, jucundidade, gozo, volúpia (este dicionário é mesmo muito completo…) e satisfação (to get, get, get!).

10 Apenas comparável à discreta presença de um elefante com cio num dos depósitos de vidro da Marinha Grande.

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homem das três pernas”11), transforma-se num “phallu” ; qualquer fenda donde

brote comummente água pura da nascente é percepcionada como uma bainha, tal como qualquer receptáculo ou caixa.

3.2.3 – Do inconsciente e dos sonhos: “Morte de uma Crónica Anunciada” Importa esclarecer que, esta demonstração “a contrario sensu” se destina a desmontar os processos que encobrem e dissimulam uns tais «pensamentos oníricos latentes». Voltemos a Freud e vejamos o que este autor sintetiza na (para nós) obra de referência acerca dos sonhos:

“Sabemos de um sonho aquilo que, via da regra, se parece a uma lembrança fragmentária que nos ocorre depois de despertar. Tal lembrança aparece como uma miscelânea de impressões sensoriais, principalmente visuais, mas também de outros tipos, que simula uma experiência e à qual podem ser misturados processos de pensamento e expressões de afecto. O que desse modo, recordamos do sonho chamo «conteúdo manifesto do sonho». É frequentemente absurdo e confuso...” 12

Freud considera ter demonstrado o que muitos manifestam ser um claro, declarado e grosseiro equívoco: “que o estranho conteúdo «manifesto» dos

sonhos pode ser tornado regularmente inteligível como sendo a transcrição mutilada e alterada das estruturas psíquicas racionais, que merecem o nome de «pensamentos oníricos latentes»” 13

E ainda que “a comparação do conteúdo manifesto do sonho recordado

com os pensamentos oníricos latentes assim descobertos, dá à luz o conceito de ‘elaboração onírica’. A elaboração onírica é o nome de toda a soma de processos transformadores que convertem os pensamentos oníricos latentes em

11 Referência ao enigma da Esfinge de Tebas que inquiriu Édipo: “Qual é o animal que de manhã

anda com quatro pernas, ao meio-dia com duas e à noitinha com três?” A resposta não se pode

dizer que satisfez a Esfinge, visto ter-se sentido vencida e ter-se atirado ao mar mas estava formalmente correcta: “É o homem, que na infância anda de gatas, na maturidade caminha

erecto sobre os seus dois pés e na velhice se apoia a um bordão” (Appignanesi e Zarate, 1982, p.

59).

12 Sigmund Freud, 1905, pp. 151 – 152. 13 Idem, p. 152.

sonho manifesto. A surpresa com que inicialmente consideramos o sonho associa-se agora à elaboração onírica.” 14

Em suma, tudo o que pensávamos envolto em mistério e fantasia, não é mais do que um estratagema, velho e relho, já com barbas de metro, que a natureza tramou para nos entreter enquanto procura descansar. Nessa linha, sigamos para bingo:

“Os empreendimentos da elaboração onírica podem ser descritos como segue. Uma trama de pensamentos, usualmente muito complicada, elaborada durante o dia mas incompletamente manipulada – um ‘resíduo diurno’ – continua durante a noite a reter a quota de energia e ‘interesse’ que reclama, ameaçando perturbar o sono. Este ‘resíduo diurno’ é transformado em sonho pela elaboração onírica, tornado assim inócuo ao sono. Para fornecer um fulcro à elaboração onírica, o ‘resíduo diurno’ deve ser capaz de construir um desejo – o que não é condição muito difícil de se cumprir.* O desejo originário dos pensamentos oníricos forma o estágio preliminar e, mais tarde, o núcleo do sonho.” 15

Um dos muitos lapsos que temos vindo a comer é o de olvidar de mencionar, convenientemente, uma das características fundamentais que Freud atribui teleologicamente à actividade mental e que é o da tendência à economia, pelo que, a ideia de descarga livre da catexia é formulação recorrente e consistente na sua obra. À luz desta informação que nos (vos) havia sido subtraída, conjugando-a com as descrições acima reproduzidas, pode-se estabelecer uma norma geral e abstracta de funcionamento dos sonhos: «Por forma a proceder à perfeita protecção do sono, o sonho deverá produzir um desejo (“condição não muito difícil de se cumprir”) que será satisfeito por uma descarga sub-reptícia». Apesar da sua formulação genérica, descobre-se facilmente que não permite explicar a totalidade dos sonhos (em especial os sonhos repetitivos de ansiedade), sendo no entanto muito efectiva nos denominados sonhos molhados.

14 Sigmund Freud, 1905. p. 152. 15 Ibidem (*Sublinhado nosso).

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Freud estava consciente da problemática associada à questão que subjaz a toda esta estafa, e que é a da ‘realização do desejo’, como comprova o seu lamento na obra que analisamos quando referindo-se ao livro “A Interpretação de Sonhos” reclama:

...“sei que círculos maiores de leitores contentaram-se em reduzir o conteúdo do livro a uma fórmula (a dita) que pode ser facilmente recordada e convenientemente mal usada.” 16

3.2.4 – Do inconsciente, dos sonhos e dos chistes

Cumpre-nos agora referir, o que há nos sonhos e nos chistes e, o que distingue os sonhos dos chistes na acepção de Freud. Confirmaremos que no entender deste autor, há nos fenómenos dos chistes um certo prazer do retorno à infância dizendo para já que “nos sonhos há um retorno da mente a um ponto

de vista embrionário.” 17 Aproveitamos para acrescentar que “os chistes (...)

cumprem o mesmo efeito mergulhando o pensamento no inconsciente. Pois o infantil é a fonte do inconsciente e os processos de pensamento inconsciente são exactamente aqueles produzidos na terna infância. (...) O pensamento retroage por um momento ao estágio da infância de modo a entrar na posse, uma vez mais, da fonte infantil de prazer.” 18

Nos chistes, tal como nos sonhos, encontramos uma gramática própria da qual conhecemos alguns processos, como a condensação, o uso de

metáforas, o deslocamento, a metonímia, o raciocínio falho, o nonsense, a representação indirecta, seja pelo oposto, seja por símbolos ou analogia, seja

por alusões, seja ainda a formação por imagens. Porém, enquanto a

“elaboração onírica, (...) exagera esses métodos de representação indirecta além de todos os limites”, no “chiste (...) quando aparecem, usualmente respeitam os limites impostos a seu emprego pelo pensamento consciente”.19

16 Sigmund Freud, 1905. p. 151. 17Idem, p. 161.

18 Sigmund Freud, 1905, p. 160. 19 idem, p. 162.

Devemos continuar, informando que “o nonsense, o absurdo que

aparece com tanta frequência nos sonhos, condenando-os a desprezo tão imerecido, nunca ocorre por acaso, (...) cabendo-lhes representar nos pensamentos oníricos a crítica amargurada e a contradição desdenhosa. Aprendemos agora, ao analisar certos chistes tendenciosos, que o nonsense nos chistes destina-se a servir aos mesmos objectivos de representação.” 20

No entanto, há mais proximidades e dissemelhanças, no entender de Freud, que referimos sem no entanto concordar com todas elas em absoluto:

“podemos esperar que, afora a única conformidade já considerada, esses duas funções dissimilares revelem apenas diferenças. Destas a mais importante consiste em seu comportamento social. Um sonho é um produto mental completamente associal. (...) Não apenas não reservam qualquer lugar para a inteligibilidade, como devem de facto evitar serem compreendidos, pois seriam desta forma destruídos; só mascarados podem subsistir.21 Um chiste, por

outra parte é a mais social de todas as funções mentais que objectivam a produção de prazer. Convoca frequentemente três pessoas e sua completação requer a participação de alguém mais no processo mental iniciado. (...) Além do mais chistes e sonhos amadurecem em regiões bastante diferentes da vida mental e devem ser distribuídos em pontos, no sistema psicológico, bastante remotos uns dos outros. Um sonho permanece sendo um desejo, ainda que

No documento O Humor nos Tempos de Cólera (páginas 165-200)

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