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A sustentabilidade socioeconômica dos empreendimentos populares e o papel do Estado

No documento Ocupação Solano Trindade (páginas 135-144)

A economia solidária e a reforma urbana: dois campos de luta e um princípio comum

2.2 A organização do trabalho coletivo na Ocupação Solano Trindade

2.2.3 A sustentabilidade socioeconômica dos empreendimentos populares e o papel do Estado

As experiências analisadas ao longo do capítulo suscitaram a necessidade de reflexão sobre as condições para a sustentabilidade socioeconômica desses empreen-

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dimentos. Não podemos cair, como afirmado anteriormente, na idealização da autossuficiência comunitária ou do “comum” que se estabelece além do Estado como condição para o trabalho emancipado. Para pensarmos qualquer possibilidade de transição para uma outra economia, ou ainda, as condições para a sustentabilidade socioeconômica dos empreendimentos populares autogestionários, o papel do Estado é central:

A lógica da economia doméstica, orientada pela reprodução ampliada da vida de seus membros, se transfere a uma multiplicidade de formas coletivas de organização do trabalho (cooperativo formal e informal, comunitário, redes de ajuda mútua, etc.) e, na democracia deveria colonizar as políticas estatais, antes que o Estado sirva, como no presente, de mediador do pensamento único, mercantilista, crematístico e individualista que responde a lógica de acumulação privada de capital. (CORAGGIO, 2006, p.4, tradução livre da autora)

Portanto, se partimos da perspectiva de uma economia social, onde o social e o econômico são indissociáveis, a política deve operar como ação transformadora para gerar estruturas que produzam e reproduzam outra sociedade, mais igualitária, socialmente eficiente, muito mais democrática que a atual (CORAGGIO, 2006, p.4). Coraggio acredita que as políticas redistributivas de educação, saúde, habitação, entre outras promovidas pelo Estado não são suficientes para uma transição de modelo econômico.

É preciso articular essa inversão em bens públicos com a construção consciente de outra economia, embasada em princípios organizadores que

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incluam a reciprocidade e a redistribuição estrutural não só de renda, mas também de recursos produtivos, capacidades e poder, para equilibrar o princípio hoje hegemônico de competição comercial (com maquiagem pontual de assistência social) (CORAGGIO, 2006, p.5, tradução livre da autora)

O autor compreende que assim como não se pode esperar que o crescimento econômico se transforme em justiça social, tampouco se pode esperar que um salário ou subsídio, ou que a maior e melhor provisão de bens públicos, por si mesmos, produzam uma sociedade com outras regras de coexistência “se a responsabilidade pela

economia não for socializada e democratizada de outra maneira, limitando o poder do comando estratégico capitalista nacional e internacional que a manipula”.

(CORAGGIO, 2006, p.5)

Outra questão importante trazida por Coraggio está relacionada ao papel do Estado na garantia das condições de sustentabilidade socioeconômica dos empreendimentos. O autor, inicialmente, problematiza a definição hegemônica de sustentabilidade econômica para propor um outro sentido para o termo:

O problema da sustentabilidade só ser formulado a nível de um empreendimento, ligado a outros ou a consumidores finais através de relações de concorrência/cooperação mediadas pelo mercado, e expressa, tal sustentabilidade, em uma conta simplificada de "capital" que registra em termos monetários as previsões dos movimentos e formas de recursos e fluxos econômicos. Está muito instalado no senso comum não apenas do público, mas também de técnicos e profissionais, bem como dos próprios empreendedores, de que sustenta-

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bilidade significa "fechar as contas" e, eventual- mente, deixar um equilíbrio monetário favorável entre receita e despesa. (CORAGGIO 2006, p.8, tradução livre da autora)

A sustentabilidade socioeconômica em Coraggio é o conceito próprio a uma economia social e solidária em processo de transição. A transição não dependerá principalmente ou somente de um saldo monetário, mas de reformas do Estado no sentido oposto àquelas alinhadas ao processo de globalização da economia mundial capitalista, incluindo, em especial, “a

reafirmação do seu papel de garantidor de direitos não só em termos de regulamentação, mas também em termos de facilitar o acesso efetivo às bases materiais para os exercer”. (CORAGGIO 2005, p.8). É por isso que a

sustentabilidade de um empreendimento não pode ser avaliada sem incluir a situação e a possível evolução do seu contexto local, regional, global, e das redes em geral.

Há fatores nem sempre redutíveis a valores econômicos que são fundamentais para a sustentabilidade socioeconômica. Coraggio nos aponta

alguns deles, destacando as políticas públicas, a

qualidade das redes de cooperação e coordenação de um

setor de trabalhadores relativamente autônomo ao

capital, a definição de qualidade de vida admissível

legitimada e a vontade e disposição dos atores

particulares, coletivos e públicos envolvidos no contexto. Uma análise dos contextos políticos nacionais e locais onde se inserem os empreendimentos de Solano Trindade deixa muito claro que as condições para sustentabilidade não estão dadas. O bairro de São Bento é marcado, assim como todo o município de Duque de Caxias, por uma visão hegemônica de desenvolvimento atrelada ao Pólo Gás Químico da Petrobras. As políticas

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locais estão subordinadas às estratégias da empresa em ampliar a economia do petróleo e derivados. A prática tem sido a de aquecimento produtivo local sem a incorporação de trabalhadores da cidade. Como consequência, os sindicatos do setor não desenvolvem ou atuam em nenhuma ação coletiva menos corporativa e mais dirigida ao bem-estar da região. (BARBOSA, 2010)

Em Solano Trindade a qualidade das redes de cooperação, que também poderiam contribuir para um caminho de sustentabilidade socioeconômica, também são bastante precárias. Sobretudo, no que diz respeito à relação da ocupação com o bairro, o que poderia ser estratégico na construção de redes importantes para a sobrevivência dos empreendimentos. A maioria dos moradores do bairro desconhece a existência da ocupação no local. O Movimento não possui um projeto político no bairro - ainda que isso esteja nos planos futuros -, talvez por receio de sofrer pressão de grupos paramilitares ou pela vulnerabilidade dada pela questão da terra, que ainda não foi resolvida. Nessas condições, os empreendimentos existentes na ocupação ficam restritos à rede da universidade que atua no local, além de pequenas redes de familiares e amigos dos ocupantes, o que torna quase impossível que a frente da cozinha ou um futuro restaurante, por exemplo, encontrem condições de se viabilizar enquanto frente permanente de geração de renda.

Por fim, os parâmetros de qualidade de vida legitimados no bairro de São Bento não contribuem, certamente, em qualquer nível, com as condições necessárias à sustentabilidade socioeconômica. De certa forma, a relação com a UFRJ contribuiu para que os próprios ocupantes tivessem possibilidade de reformular alguns desses parâmetros mínimos, fortemente legitima-

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dos e pré-estabelecidos no contexto onde estão inseridos. Entretanto, a alta rotatividade de integrantes nos empreendimentos autogestionários compromete até mesmo esse processo de reformulação.

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A cidade é entendida aqui como produtora e resultado do conflito entre diferentes modos de vida e interesses de classe (LAGO, 2016). Consideramos que as estratégias da classe trabalhadora, em sua vida cotidiana nos espaços populares periféricos são definidas a partir

da interseção de três sistemas: a vida privada (onde são

articuladas as estratégias domésticas, com trabalho reprodutivo e trabalho mercantil, orientados pela

reprodução da vida dos membros da UD), a vida pública

(permeada pelos conflitos de classe e pelas políticas

redistributivas do Estado), e a vida coletiva (que abriga

as práticas associativas e solidárias que analisamos nessa pesquisa. (CORAGGIO, 1999).

As diferentes formas de trabalho consideradas nessa análise, ou seja, o trabalho de reprodução (seja ele doméstico, comunitário, social ou de aprendizagem), assim como o trabalho mercantil (seja ele assalariado, independente ou coletivo autogestionário), refletem a complexidade da Economia Popular nos espaços periféricos e, por consequência, a maior dificuldade de apreensão das dinâmicas nesses espaços. Nesse sentido, é fundamental complexificarmos as nossas leituras através de instrumentos metodológicos que nos possibilitem identificar as práticas de solidariedade existentes nos espaços populares, que não são homogêneos.

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Quando comparamos as práticas solidárias identificadas na escala da Ocupação Solano Trindade com aquelas identificadas na escala do bairro São Bento, podemos perceber que as mesmas são mais presentes dentro do território da Ocupação. Tal constatação, nos leva a crer que as ocupações urbanas são espaços que acionam mais práticas solidárias em função dos princípios que as fundamentam e pela forma como se organizam a partir de ações coletivas, ainda que, assim como o bairro onde se localizam, estejam inseridas em um contexto de hegemonia capitalista. As ocupações de moradia, assim como outros espaços autogestionários, podem ser compreendidas enquanto extensão da lógica de reprodução particular da diversas Unidades Domésticas que a compõem, de modo a conformar organizações socioeconômicas dirigidas a melhorar as condições de reprodução da vida de seus membros.

“As Unidades Domésticas podem gerar extensões de sua lógica de reprodução particular mediante associações, comunidades organizadas, redes formais e informais de diversos tipos, consolidando organizações socioeconômicas dirigidas a melhorar as condições de reprodução da vida de seus membros. Em conjunto compõem o que chamamos de "Economia Popular" (Coraggio, 1999), que entra em relações de troca, dentro de uma economia mista sob a hegemonia do capital, com o subsistema das empresas de capital e com o subsistema das agências estatais.” (CORAGGIO, 2011, p.113, tradução livre da autora)

A solidariedade e reciprocidade reveladas pelas análises do trabalho coletivo reprodutivo e produtivo que, por sua vez, acionaram a (re)produção de espaços comuns na Ocupação Solano Trindade, confirmam a

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potência da articulação de diferentes dimensões da vida urbana nas práticas concretas dos movimentos populares no âmbito da luta pela desmercantilização da cidade. Reafirmam, portanto, a importância de ampliarmos a agenda da Reforma Urbana para além da produção da moradia em autogestão, articulando outros campos de luta anticapitalista por uma cidade orientada pelos princípios do bem-estar comum.

A fim de pensar caminhos possíveis para a ampliação da agenda da Reforma Urbana através da organização do trabalho coletivo, analisaremos no próximo capítulo uma pequena amostra de casos de ocupações urbanas e empreendimentos populares organizados, que vem articulando estratégias de trabalho. Pretendemos, assim, complementar nossa leitura da Ocupação Solano Trindade e acrescentar outros elementos para debater a ampliação da agenda da Reforma Urbana no Brasil.

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3.

A cooperação nos espaços comuns dos

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